sábado, 28 de fevereiro de 2015

NEUZA MACHADO - DO PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL

NEUZA MACHADO - DO PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL


II.10 - Psicanálise da Criação

II.10.1 - Da reprodução à autêntica criação

Em "São Marcos", narrativa do corpus de Sagarana, o Artista pré-anuncia as descobertas das perspectivas dialética e maravilhada, perspectivas estas que serão devidamente recriada nas páginas de Grande Sertão: Veredas. Em "São Marcos", o narrador, sob a orientação mágica da feitiçaria (plano mítico-substancial) e da desautomatização da linguagem, e além disso, procurando reorganizar esteticamente o real sertanejo, passa a ressaltar as belezas das serras e grotas, quase entrevendo o mundo fechado e de formas vagas do imaginário criativo.

"São Marcos" é uma narrativa que mistura o gênero ensaístico (o narrador como repórter de um lugar primitivo, mostrando as ideologias e superstições de um povo) com a capacidade de desautomatizar a linguagem, ou seja, utiliza-se de um linguajar insólito para descrever a natureza, portanto, já entrevendo a sua imaginação criadora, que está a caminho. No entanto, sob o simples comando da descrição, a poética da água145 já começa a se destacar, assim como o verde das folhas em meio ao colorido intenso e exterior de um mundo desconhecido e mítico.

Do lado da encosta e do lado do vale, temos a mata: marmelinho, canela, jacarandá, jequitibá-rosa; a barriguda, armada de espinhos, de copa redonda; a mamica-de-porca — também de coluna bojuda, com outros espinhos; o sangue-de-andrade, que é "pau dereito"; o esqueleto de um deixa-falar, sem uma folha, guardada apenas a grade resseca; e os jacarés novos, absurdos, de folhinhas finas, em espiguilha, que nem folhas de sensitiva, enquanto a casca se eriça em tarjas, cristas, listéis e caneluras, como a crista do dorso de um caimão.(...) E nas ramas, rindo, cheirosos epidendros, com longos labelos marchetados de cores, com pétalas desconformes, franzidas, todas inimigas, encrespadas, torturadas, que lembram bichos do mar róseo-maculados, e roxos, e ambarinos — ou máscaras careteantes, esticando línguas de ametista.(...) Mas, as imbaúbas! As queridas imbaúbas jovens, que são toda uma paisagem!... Depuradas, esguias, femininas, sempre suportando o cipó-braçadeira, que lhes galga o corpo com espirais contrictas. De perto, na tectura sóbria — só três ou quatro galhos — as folhas são estrelas verdes, mãos verdes espalmadas; mais longe, levantam-se das grotas, como chaminés alvacentas; longe-longe, porém, pelo morro, estão moças cor de madrugada, encantadas, presas, no labirinto do mato. (...) Pelas frinchas, entre festões e franças, descortino, lá em baixo, as águas das Três-Águas. Três? Muito mais! A lagoa grande, oval, tira do seu pólo rombo dois córregos, enquanto entremete o fino da cauda na floresta. Mas, ao redor, há o brejo, imensa esponja onde tudo se confunde: trabéculas de canais, pontilhado de poços e uma finlândia de lagoazinhas sem tampa. (...) E as superfícies cintilam, como raros jogos de espelho, com raios de sol, espirrando asterismos. E, nas ilhas, penínsulas, istmos e cabos, multicrescem taboqueiras, tabúas, taquaris, taquaras, taquariúbas, taquaratingas e taquarassus. Outras imbuíbas mui tupis. E o buritizal: renques, aléias, arruados de buritis, que avançam pelo atoleiro, frondosos, flexuosos, abanando flabelos, espontando espiques; de todas as alturas e de todas as idades, famílias inteiras, muito unidas; buritis velhuscos, de palmas contorcionadas, buritis-senhoras, e, tocando ventarolas, buritis-meninos.146

Por enquanto, o sonhador do sertão reproduz os sonhos retorcidos de sua meia-noite psíquica, imita o reflexo da paisagem sertaneja, saído das águas mágicas das lembranças. Ele reproduz linearmente as cores e as formas de uma natureza que sempre o encantou (aqui, o verbo encantar no seu sentido etimológico), pois a paisagem revisitada no decurso das lembranças (o reflexo da superfície da lagoa oval do brejo) "determina o devaneio que antecede a criação artística"147.

A grande obra, saída dos devaneios da vontade (Grande Sertão: Veredas), está por ora no porvir e reclama ser apreendida.

A narrativa "São Marcos" ressalta, além da descrição da natureza em seus aspectos míticos (matéria mítica), os cultos secretos oriundos dos escravos africanos e as antiquadas práticas de feitiçaria comuns no sertão. O narrador (citadino) reavalia a distância entre o pensamento do homem culto e o do homem inculto, descobrindo que os medos e superstições são inerentes a qualquer indivíduo, independentes de cor e casta. A mandinga do preto Mangolô é a via de acesso para que o branco letrado possa penetrar temporariamente (no ápice da narrativa) na caverna mágica da criação literária, local de iniciação, pois no Calango Frito, "até os meninos faziam feitiço"148. Desta forma, apesar dos avisos de Sa Nhá Rita Preta, a cozinheira, o narrador engeriza o Mangolô, pois só por meio da provocação conseguirá romper os limites da realidade e alcançar as imagens intermediárias da gruta (característica de narrativa mítico-substancial), que o levarão ao labirinto, subterrâneo e criativo, de Grande Sertão: Veredas.

As imagens da gruta pertencem à imaginação do repouso, enquanto as do labirinto pertencem à imaginação do movimento difícil, do movimento angustiante.149

O narrador de "São Marcos" retirou-se para o aconchego da gruta/sertão sob o comando das lembranças e, comodamente instalado nesse espaço, visita os pequenos detalhes que a compõem. Se no início sentiu medo, aos poucos acomodou-se à idéia de novamente conviver com uma realidade conhecida na infância, mas temporalmente perdida no passado e esquecida na maturidade. O retorno ficcional ao sertão, em seu aspecto diegético, é o retorno à gruta, ao útero, ao primitivo, qualquer que seja o termo que simbolize a recuperação de uma vivência primeira. Por isto, as imagens são naturais, verossímeis. O Artista reproduz aquilo que foi visto e sentido inúmeras vezes. Por isto, ele ainda não recria o Sertão, apenas aceita a perfeita criação da natureza. Engerizando o preto Mangolô, ele se obriga a penetrar no cerne da gruta/sertão, uma adesão que o faz sonhar interminavelmente, repousadamente, depois dos primeiros sintomas de medo, obrigatoriamente sintomas iniciais das futuras incursões em cavernas desconhecidas.

Bastam uns poucos minutos de permanência para que a imaginação comece a ajeitar a casa. (...) (O sonhador vê tudo) o recanto para o leito de samambaias, a guirlanda das lianas e das flores que decora e esconde a janela contra o céu azul. Essa função de cortina natural aparece com regularidade em muitas grutas literárias.150

O sonhador/narrador vê tudo: a mata e suas árvores, as ramas de epidendros e seus contornos poéticos, as imbaúbas jovens, tão femininas, tão verdes, tão moças cor de madrugada, encantadas; mas, é "pelas frinchas" (janelas?), "entre festões e franças" (cortinas?), que o narrador descortina, "lá em baixo, as águas das Três Águas".

Quando o Artista se deixa flagrar olhando a gruta, ele está olhando através da imagem da janela, que propicia "ver sem ser visto"151. O que ele deseja é registrar sua curiosidade, seu desejo de conhecer o segredo da procriação. O sertão, na narrativa analisada, é momentaneamente o espaço do recato, e a floresta é a virgem, que ali se refugia. O narrador, alter ego do Artista citadino do século XX, mas de origem sertaneja, é o invasor, que vai macular aquele espaço de pureza. O narrador registra despudoradamente esta intimidade, há séculos guardada a sete chaves. Pelas frinchas, entre festões e franças, ele se apodera da intimidade de uma família de buritis: buritis velhuscos, de palmas contorcionadas, buritis-senhoras e buritis-meninos.

Por esta perspectiva anulada (o termo perspectiva anulada, aqui, não possui caráter depreciativo), mas extremamente pitoresca e sedutora, seria possível analisar todas as narrativas de Sagarana anteriores a A hora e vez de Augusto Matraga. A partir de “O burrinho pedrês”, "A volta do marido pródigo", "Sarapalha" (em que o narrador experiente reproduz os sintomas da malária), "Duelo" (a estória de Turíbio Todo, seleiro, papudo, traído e vingativo, mas, além de tudo, vítima da própria vingança), "Minha gente" (retorno simbólico à terra natal), "Corpo fechado" (a estória das façanhas de Manuel Fulô, com certeza muito amigo do Doutor João Rosa, natural de Cordisburgo, pequena cidade incrustada nas Gerais, sertão de Minas152) e "Conversa de bois" (graciosa fábula sertaneja), haveria possibilidade de reunir e apresentar argumentos comprovadores, tais como realçar a reunião de árvores e animais, flores coloridas, conhecimentos variados; todas estas focalizações da perspectiva assinalada ansiando ultrapassar os limites do sensivelmente dado, como por exemplo a "finlândia de lagoazinhas sem tampa" (que lembra o espaço geográfico da Finlândia) e os "festões" (que lembram a França, em plena mata), e, enfim, seria possível provar, com o apoio da filosofia bachelardiana evidentemente, que a samambaia cresce em todos os cantos do mundo, e que as reminiscências da Europa permanecem vivas em um povo terceiromundista ainda ligado à metrópole européia que o concebeu.

Não seria demais repensar a afirmativa de Rosa:

Sabe também que uma parte de minha família é, pelo sobrenome, de origem portuguesa, mas na realidade é um sobrenome suevo que na época das migrações era Guimaranes, nome que também designava a capital de um estado suevo na Lusitânia? Portanto, pela minha origem, estou voltado para o remoto, o estranho. Você certamente conhece a história dos suevos. Foi um povo que, como os celtas, emigrou para todos os lugares sem poder lançar raízes em nenhum. Este destino, que foi tão intensamente transmitido a Portugal, talvez tenha sido o culpado por meus antepassados se apegarem com tanto desespero àquele pedaço de terra que se chama o sertão. E eu também estou apegado a ele...153

O Artista Ficcional do sertão está voltado para o remoto, para o estranho, porque sua origem antiqüíssima o atrai. Reencontrar seu início histórico, aventureiro, é algo impossível em meio à agitação da modernidade. A elaboração de uma ficção experiente produz bem estar, fá-lo recuperar o calor da antiga intimidade perdida e para-sempre desejada. O sertão do passado é o símbolo desse desejo de aconchego, é o refúgio para o abrigo de sua própria solidão modernizada. As imagens da gruta são repousantes, fazem parte de um território secreto, só acessível aos iniciados em rituais primitivos ou descendentes de raças antigas. O olhar está repousado e os encantos da natureza enfeitam sua propriedade particular, enfeitam as suas imagens fundamentais.

Para ficarmos bem sozinhos, é preciso que não tenhamos demasiada luz. Uma atividade subterrânea beneficia-se de uma mana imaginária. É preciso conservar um pouco de sombra ao nosso redor. É mister saber entrar na sombra para ter força de escutar a nossa obra.154

As imagens fundamentais do sertão da infância não poderiam jamais sair das mandingas do preto Mangolô. Este é apenas o indutor, o ponto de partida para a viagem retomada. O narrador, repousado, recupera a natureza, os cultos secretos, as superstições; reavalia a distância entre o pensamento do homem culto e o do homem inculto; descobre aproximações que independem de cor e casta; mas isto ainda é pouco para quem deseja recolher-se à própria solidão. Sob a luz intensa, os sonhos não podem ser concentrados, o narrador não poderá ouvir os sons de sua própria obra em germinação. Zombar do feiticeiro Mangolô, no momento, é seu único trunfo para alcançar o âmago de um espaço primitivo.

E eu abusava, todos os domingos, porque, para ir domingar no mato das Três Águas, o melhor atalho renteava o terreirinho de frente da cafua do Mangolô, de quem eu zombava já por prática. Com isso eu me crescia, mais mandando, e o preto até que se ria, acho que achando mesmo graça em mim.155

O ato de zombar do sagrado exige castigo. O narrador, submetido ao plano mítico-substancial, zomba do feiticeiro, para ser castigado e, com isto, sentir e desvendar os segredos de um espaço que ainda conserva formas anti-diluvianas.

Bem, ainda na data do que vai vir, e já eu de chapéu posto, Sa Nhá Rita Preta minha cozinheira, enquanto me costurava um rasgado na manga do paletó ("cozo a roupa e não cozo o corpo, cozo um molambo que está roto..."), recomendou-me que não engerizasse o Mangolô. Bobagem! No céu e na terra a manhã era espaçosa: alto azul, glácio, emborcado, só na barra azul do horizonte estacionavam cúmulos, esfiapando sorvete de côco; e a leste subia o sol, crescido, oferecido — um massa-mel amarelo, com favos brilhantes no meio a mexer.156

A claridade da manhã impede o acesso visual às coisas secretas; o Artista Literário experiente ainda não possui poder para alcançar o além dos limites conceituais; necessita perder a visão, ouvir o inaudível; carece ser castigado com a cegueira, e o Calango-Frito (povoado sertanejo), com seus feiticeiros, simboliza um dos últimos redutos de magia no avançado mundo tecnológico. O Artista se traveste de caçador e incrédulo, para desafiar as leis do desconhecido; traveste-se de caçador, porque não quer dividir com o povo (com a massa, com os cegos adeptos do cogito(1)) suas futuras descobertas.

Eu levava boa matalotagem na capanga, e também o binóculo. Somente o trambolho da espingarda pesava e empalhava. Mas cumpria com a lista, porque eu não podia deixar o povo saber que eu entrava no mato, e lá passava o dia inteiro, só para ver uma mudinha de cambuí a medrar da terra de-dentro de um buraco no tronco de um camboatã; para assistir à carga frontal das formigas-cabaças contra a pelugem farpada e eletrificada de uma tatarana lança-chamas; para namorar o namoro dos guaxes, pousados nos ramos compridos da aroeira; para saber ao certo se o meu xará joão-de-barro fecharia mesmo a sua olaria, guardando o descanso domingueiro; para apostar sozinho no concurso de salto-a-vara entre os gafanhotos verdes e os gafanhões cinzentos; para estudar o treino de concentração do jaburu acromegálico; e para rir-me, à glória das aranhas-d'água, que vão corre-correndo, pernilongando sobre a casca de água do poço, pensando que aquilo é mesmo chão para se andar em cima.157

A ultrapassagem do sensivelmente dado o guiará para um plano de autêntica solidão. No momento, o caminhante só visualiza uma saída: a adesão aos valores do Maravilhoso, ou seja, a submissão ao castigo do Mangolô, que o tornará momentaneamente cego. Para ficar sozinho no meio do mato (da gruta), é necessário abster-se da luz, o que proporcionará o ato de ouvir com atenção o rumor inicial da criação literária. A gruta selvagem é o reduto da pura intuição. O Artista Literário começa a intuir suas futuras formas de criação ficcional. A intuição provém de um Mundo ainda não-conceituado. E o xará do joão-de-barro, em sua caminhada para os cogitos superiores, procura zombar de João Mangolô, partícula das mil faces do Artista brasileiro: um somatório de raças, de crenças e de idades temporais.


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