quinta-feira, 1 de maio de 2014

O Processo de Trabalho ou o Processo de Produção de Valores de Uso



O Capital
O Processo de Trabalho ou o Processo de Produção de Valores de Uso
A UTILIZAÇÃO  da força de trabalho é o próprio trabalho. O comprador da força de trabalho consome-a, fazendo o vendedor dela trabalhar. Este, ao trabalhar, torna-se realmente no que antes era apenas potencialmente: força de trabalho em acção, trabalhador. Para o trabalho reaparecer em mercadorias, tem de ser empregado em valores-de-uso, em coisas que sirvam para satisfazer necessidades de qualquer natureza. O que o capitalista determina ao trabalhador produzir é, portanto um valor-de-uso particular, um artigo especificado. A produção de valores-de-uso muda sua natureza geral por ser levada a cabo em benefício do capitalista ou estar sob seu controle. Por isso, temos inicialmente de considerar o processo de trabalho à parte de qualquer estrutura social determinada.
Antes de tudo, o trabalho é um processo de que participam o homem e a natureza, processo em que o ser humano com sua própria ação impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza. Defronta-se com a natureza como uma de suas forças. Põe em movimento as forças naturais de seu corpo, braços e pernas, cabeça e mãos, a fim de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida humana. Atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a, ao mesmo tempo modifica sua própria natureza. Desenvolve as potencialidades nela adormecidas e submete ao seu domínio o jogo das forças naturais. Não se trata aqui das formas instintivas, animais, de trabalho. Quando o trabalhador chega ao mercado para vender sua força de trabalho, é imensa a distância histórica que medeia entre sua condição e a do homem primitivo com sua forma ainda instintiva de trabalho. Pressupomos o trabalho sob forma exclusivamente humana. Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha supera mais de um arquiteto ao construir sua colméia. Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que ele figura na mente sua construção antes de transformá-la em realidade. No fim do processo do trabalho aparece um resultado que já existia antes idealmente na imaginação do trabalhador. Ele não transforma apenas o material sobre o qual opera; ele imprime ao material o projeto que tinha conscientemente em mira, o qual constitui a lei determinante do seu modo de operar e ao qual tem de subordinar sua vontade. E essa subordinação não é um ato fortuito. Além do esforço dos órgãos que trabalham, é mister a vontade adequada que se manifesta através da atenção durante todo o curso do trabalho. E isto é tanto mais necessário quanto menos se sinta o trabalhador atraído pelo conteúdo e pelo método de execução de sua tarefa, que lhe oferece por isso menos possibilidade de fruir da aplicação das suas próprias forças físicas e espirituais.
Os elementos componentes do processo de trabalho são:
1) a atividade adequada a um fim, isto é o próprio  trabalho;
2) a matéria a que se aplica o trabalho, o objeto de trabalho;
3) os meios de trabalho, o instrumental de trabalho.
A terra (do ponto de vista económico, compreende a água) que, ao surgir o homem, o provê com meios de subsistência prontos para utilização imediata, (1) existe independentemente da acção dele, sendo o objecto universal do trabalho humano. Todas as coisas que o trabalho apenas separa de sua conexão imediata com seu meio natural constituem objectos de trabalho, fornecidos pela natureza. Assim, os peixes que se pescam, que são tirados do seu elemento, a água, a madeira derrubada na floresta virgem, o minério arrancado dos filões. Se o objecto de trabalho é, por assim dizer, filtrado através de trabalho anterior, chamamo-lo de matéria-prima. Por exemplo, o minério extraído depois de ser lavado. Toda matéria-prima é objecto de trabalho, mas nem todo objecto de trabalho é matéria-prima. O objecto de trabalho só é matéria-prima depois de ter experimentado modificação efectuada pelo trabalho.
O meio de trabalho é uma coisa ou um complexo de coisas, que o trabalhador insere entre si mesmo e o objeto de trabalho e lhe serve para dirigir sua atividade sobre esse objeto. Ele utiliza as propriedades mecânicas, físicas, químicas das coisas, para fazê-las atuarem como forças sobre outras coisas, de acordo com o fim que tem em mira. (2) A coisa de que o trabalhador se apossa imediatamente, - excetuados meios de subsistência colhidos já prontos, como frutas, quando seus próprios membros servem de meio de trabalho, - não é o objeto de trabalho, mas o meio de trabalho. Desse modo, faz de uma coisa da natureza órgão de sua própria atividade, um órgão que acrescenta a seus próprios órgãos corporais, aumentando seu próprio corpo natural, apesar da Bíblia. A terra, seu celeiro primitivo, é também seu arsenal primitivo de meios de trabalho. Fornece-lhe, por exemplo, a pedra que lança e lhe serve para moer, prensar, cortar etc. A própria terra é um meio de trabalho, mas, para servir como tal na agricultura, pressupõe toda uma série de outros meios de trabalho e um desenvolvimento relativamente elevado da força de trabalho. (3) O processo de trabalho, ao atingir certo nível de desenvolvimento, exige meios de trabalho já elaborados. Nas cavernas mais antigas habitadas pelos homens, encontramos instrumentos e armas de pedra. No começo da história humana, desempenham a principal função de meios de trabalho os animais domesticados, (4) amansados e modificados pelo trabalho, ao lado de pedras, madeira, ossos e conchas trabalhados. O uso e a fabricação de meios de trabalho, embora em germe em certas espécies animais, caracterizam o processo especificamente humano de trabalho e Franklin define o homem como"a toolmaking animal", um animal que faz instrumentos de trabalho. Restos de antigos instrumentos de trabalho têm, para a avaliação de formações econômico-sociais extintas, a mesma importância que a estrutura dos ossos fósseis para o conhecimento de espécies animais desaparecidas. O que distingue as diferentes épocas econômicas não é o que se faz, mas como, com que meios de trabalho se faz. (5) Os meios de trabalho servem para medir o desenvolvimento da força humana de trabalho e, além disso, indicam as condições sociais em que se realiza o trabalho. Os meios mecânicos, que em seu conjunto podem ser chamados de sistema ósseo e muscular da produção, ilustram muito mais as características marcantes de uma época social de produção, que os meios que apenas servem de recipientes da matéria objeto de trabalho e que, em seu conjunto, podem ser denominados de sistema vascular da produção, como, por exemplo, tubos, barris, cestos, cântaros etc. Estes só começam a desempenhar papel importante na produção química. (5a)
Além das coisas que permitem ao trabalho aplicar-se a seu objeto e servem de qualquer modo para conduzir a atividade, consideramos meios de trabalho em sentido lato todas as condições materiais seja como forem necessárias à realização do processo de trabalho. Elas não participam diretamente do processo, mas este fica sem elas total ou parcialmente impossibilitado de concretizar-se. Nesse sentido, a terra é ainda um meio universal de trabalho, pois fornece o local ao trabalhador e proporciona ao processo que ele desenvolve o campo de operação (field of employment). Pertencem a essa classe meios resultantes de trabalho anterior, tais como edifícios de fábricas, canais, estradas etc.
No processo de trabalho, a atividade do homem opera uma transformação, subordinada a um determinado fim, no objeto sobre que atua por meio do instrumental de trabalho. O processo extingue-se ao concluir-se o produto. O produto é um valor-de-uso, um material da natureza adaptado às necessidades humanas através da mudança de forma. O trabalho está incorporado ao objeto sobre que atuou. Concretizou-se e a matéria está trabalhada. O que se manifestava em movimento, do lado do trabalhador, se revela agora qualidade fixa, na forma de ser, do lado do produto. Ele teceu e o produto é um tecido.
Observando-se todo o processo do ponto de vista do resultado, do produto, evidencia-se que meio e objeto de trabalho são meios de produção (6) e o trabalho é trabalho produtivo. (7)
Quando um valor-de-uso sai do processo de trabalho como produto, participaram da sua feitura, como meios de produção, outros valores-de-uso, produtos de anteriores processos de trabalho. Valor-de-uso que é produto de um trabalho torna-se assim meio de produção de outro. Os produtos destinados a servir de meio de produção não são apenas resultado, mas também condição do processo de trabalho.
Excetuadas as indústrias extrativas, cujo objeto de trabalho é fornecido pela natureza (mineração, caça, pesca etc; a agricultura se compreende nessa categoria apenas quando desbrava terras virgens), todos os ramos industriais têm por objeto de trabalho a matéria-prima, isto é, um objeto já filtrado pelo trabalho, um produto do próprio trabalho. É o caso da semente na agricultura. Animais e plantas que costumamos considerar produtos da natureza são possivelmente não só produtos do trabalho do ano anterior, mas, em sua forma atual, produtos de uma transformação continuada, através de muitas gerações, realizada sob controle do homem e pelo seu trabalho. No tocante aos meios de trabalho, a observação mais superficial descobre, na grande maioria deles, os vestígios do trabalho de épocas passadas.
A matéria-prima pode ser a substância principal de um produto, ou contribuir para sua constituição como material acessório. O meio de trabalho consome o material acessório: assim, a máquina a vapor, o carvão; a roda, o óleo; o cavalo de tração, o feno. Ou o material acessório é adicionado à matéria-prima, para modificá-la materialmente: o cloro ao pano cru, o carvão ao ferro, a anilina à lá; ou facilita a execução do próprio trabalho: os materiais, por exemplo, utilizados para iluminar e aquecer o local de trabalho. A diferença entre substância principal e acessória desaparece na fabricação em que se processe uma transformação química, pois nesse caso nenhuma das matérias-primas empregadas reaparece como a substância do produto. (8)
Tendo cada coisa muitas propriedades e servindo em conseqüência a diferentes aplicações úteis, pode o mesmo produto constituir matéria-prima de processos de trabalho muito diversos. O centeio, por exemplo, é matéria-prima do moleiro, do fabricante de amido, do destilador de aguardente, do criador de gado etc. Como semente, é matéria-prima de sua própria produção. O carvão é produto da indústria de mineração e, ao mesmo tempo, meio de produção dela.
O mesmo produto pode no processo de trabalho servir de meio de trabalho e de matéria-prima. Na engorda de gado, por exemplo, o boi é matéria-prima a ser elaborada e ao mesmo tempo instrumento de produção de adubo.
Um produto que existe em forma final para consumo pode tornar-se matéria-prima. A uva, por exemplo, serve de matéria-prima para o vinho. Ou o trabalho dá ao produto formas que só permitem sua utilização como matéria-prima. Nesse caso, chama-se a matéria-prima de semiproduto, ou, melhor, de produto intermediário, como algodão, fios, linhas etc. Embora já seja produto, a matéria-prima original tem de percorrer toda uma série de diferentes processos, funcionando em cada um deles com nova forma, como matéria-prima, até atingir o último processo, que faz dela produto acabado, pronto para consumo ou para ser utilizado como meio de trabalho.
Como se vê, um valor-de-uso pode ser considerado matéria-prima, meio de trabalho ou produto, dependendo inteiramente da sua função no processo de trabalho, da posição que nele ocupa, variando com essa posição a natureza do valor-de-uso.
Ao servirem de meios de produção em novos processos de trabalho perdem os produtos o caráter de produto. Funcionam apenas como fatores materiais desses processos. O fiandeiro vê no fuso apenas o meio de trabalho, e na fibra de linho apenas a matéria que fia, objeto de trabalho. Por certo, é impossível a fiação sem material para fiar e sem fuso. Pressupõe-se a existência desses produtos para que tenha início a fiação. Mas, dentro desse processo ninguém se preocupa com o fato de a fibra de linho e o fuso serem produtos de trabalho anterior, do mesmo modo que é indiferente ao processo digestivo que o pão seja produto dos trabalhos anteriores do triticultor, do moleiro, do padeiro etc. Ao contrário, é através dos defeitos que os meios de produção utilizados no processo de trabalho fazem valer sua condição de produtos de trabalho anterior. Uma faca que não corta, o fio que se quebra etc. lembram logo o cuteleiro A e o fiandeiro B. No produto normal desaparece o trabalho anterior que lhe imprimiu as qualidades úteis.
Uma máquina que não serve ao processo de trabalho é inútil. Além disso, deteriora-se sob a poderosa ação destruidora das forças naturais. O ferro enferruja, a madeira apodrece. O fio que não se emprega na produção de tecido ou de malha, é algodão que se perde. O trabalho vivo tem de apoderar-se dessas coisas, de arrancá-las de sua inércia, de transformá-las de valores-de-uso possíveis em valores-de-uso reais e efetivos. O trabalho, com sua chama, delas se apropria, como se fossem partes do seu organismo, e de acordo com a finalidade que o move lhes empresta vida para cumprirem suas funções; elas são consumidas, mas com um propósito que as torna elementos constitutivos de novos valores-de-uso, de novos produtos que podem servir ao consumo individual como meios de subsistência ou a novo processo de trabalho como meios de produção.
Os produtos de trabalho anterior que, além de resultado, constituem condições de existência do processo de trabalho, só se mantêm e se realizam como valores-de-uso através de sua participação nesse processo, de seu contacto com o trabalho vivo.
O trabalho gasta seus elementos materiais, seu objeto e seus meios, consome-os, é um processo de consumo. Trata-se de consumo produtivo que se distingue do consumo individual: este gasta os produtos como meios de vida do indivíduo, enquanto aquele os consome como meios através dos quais funciona a força de trabalho posta em ação pelo indivíduo. O produto do consumo individual é, portanto, o próprio consumidor, e o resultado do consumo produtivo um produto distinto do consumidor.
Quando seus meios (instrumental) e seu objeto (matérias-primas etc.) já são produtos, o trabalho consome produtos para criar produtos, ou utiliza-se de produtos como meios de produção de produtos. Mas, primitivamente, o processo de trabalho ocorria entre o homem e a terra tal como existia sem sua intervenção, e hoje continuam a lhe servir de meios de produção coisas diretamente fornecidas pela natureza, as quais não representam, portanto, nenhuma combinação entre substâncias naturais e trabalho humano.
O processo de trabalho, que descrevemos em seus elementos simples e abstratos, é atividade dirigida com o fim de criar valores-de-uso, de apropriar os elementos naturais às necessidades humanas; é condição necessária do intercâmbio material entre o homem e a natureza; é condição natural eterna da vida humana, sem depender, portanto, de qualquer forma dessa vida, sendo antes comum a todas as suas formas sociais. Não foi por isso necessário tratar do trabalhador em sua relação com outros trabalhadores. Bastaram o homem e seu trabalho, de um lado, a natureza e seus elementos materiais, do outro. O gosto do pão não revela quem plantou o trigo, e o processo examinado nada nos diz sobre as condições em que ele se realiza, se sob o látego do feitor de escravos ou sob o olhar ansioso do capitalista, ou se o executa Cincinato lavrando algumas jeiras de terra ou o selvagem ao abater um animal bravio com uma pedra. (9)
Voltemos ao nosso capitalista em embrião. Deixamo-lo depois de ter ele comprado no mercado todos os elementos necessários ao processo de trabalho, os materiais ou meios de produção e o pessoal, a força de trabalho. Com sua experiência e sagacidade, escolheu os meios de produção e as forças de trabalho adequados a seu ramo especial de negócios, fiação, fabricação de calçados etc. Nosso capitalista põe-se então a consumir a mercadoria, a força de trabalho que adquiriu, fazendo o detentor dela, o trabalhador, consumir os meios de produção com o seu trabalho. Evidentemente, não muda a natureza geral do processo de trabalho executá-lo o trabalhador para o capitalista e não para si mesmo. De início, a intervenção do capitalista também não muda o método de fazer calçados ou de fiar. No começo tem de adquirir a força de trabalho como a encontra no mercado, de satisfazer-se com o trabalho da espécie que existia antes de aparecerem os capitalistas. Só mais tarde pode ocorrer a transformação dos métodos de produção em virtude da subordinação do trabalho ao capital e, por isso, só trataremos dela mais adiante:
O processo de trabalho, quando ocorre como processo de consumo da força de trabalho pelo capitalista, apresenta dois fenômenos característicos.
O trabalhador trabalha sob o controle do capitalista, a quem pertence seu trabalho. O capitalista cuida em que o trabalho se realize de maneira apropriada e em que se apliquem adequadamente os meios de produção, não se desperdiçando matéria-prima e poupando-se o instrumental de trabalho, de modo que só se gaste deles o que for imprescindível à execução do trabalho.
Além disso, o produto é propriedade do capitalista, não do produtor imediato, o trabalhador. O capitalista paga, por exemplo, o valor diário da força de trabalho. Sua utilização, como a de qualquer outra mercadoria, por exemplo, a de um cavalo que alugou por um dia, pertence-lhe durante o dia. Ao comprador pertence o uso da mercadoria, e o possuidor da força de trabalho apenas cede realmente o valor-de-uso que vendeu, ao ceder seu trabalho. Ao penetrar o trabalhador na oficina do capitalista, pertence a este o valor-de-uso de sua força de trabalho, sua utilização, o trabalho. O capitalista compra a força de trabalho e incorpora o trabalho, fermento vivo, aos elementos mortos constitutivos do produto, os quais também lhe pertencem. Do seu ponto de vista, o processo de trabalho é apenas o consumo da mercadoria que comprou, a força de trabalho, que só pode consumir adicionando-lhe meios de produção. O processo de trabalho é um processo que ocorre entre coisas que o capitalista comprou, entre coisas que lhe pertencem. O produto desse processo pertence-lhe do mesmo modo que o produto do processo de fermentação em sua adega. (10)



O Capital - Volume 1 - Parte III - Capítulo VII
Processo de Trabalho e Processo de Produção de Mais valia
Secção 1.
O Processo de Trabalho ou o Processo de Produção de Valores de Uso

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