quinta-feira, 15 de maio de 2008

CAPÍTULO ONZE

O BRAÇO ERGUIDO DE APOLO



- Pare o carro, disse Scholz para o cocheiro da sua vitória.
Os dois saíram do carro e começaram a caminhar debaixo daquelas sombras das árvores do largo de São Sebastião.
- Sim, disse Lima Silva, a estátua de Apolo ficaria em cima do arco do frontão.
- Que significam aquelas duas figuras no centro do arco? – perguntou Scholz, apontando para cima com a ponta do guarda-chuva.
- As belas artes e as artes liberais, respondeu o outro. O escudo no centro marca a data da inauguração.
- E por que não colocaram a estátua de Apolo? – perguntou Scholz, olhando fixamente para Lima Silva.
- Não sei. Dizem que não foi colocado sobre o frontão por excesso de peso, respondeu Silva. Mas tenho outra interpretação.
- Como assim? Que interpretação?
- Apolo era um colosso de quase cinco metros, na mão esquerda uma lira e a mão direita, levantada e estendida para trás, à altura da cabeça, recompensava as artes. Sentadas no chão, a seu lado, estavam duas figuras, a História e a Fama, respectivamente à direita e à esquerda. Alem disso, duas gigantescas liras ornamentais deveriam estar em cada canto superior da fachada frontal do teatro e também lá não foram postas.
- E por que o busto do Eduardo Ribeiro está ali? – perguntou de repente Scholz.
- Vaidade, tudo é vaidade. Vaidade do ex-governador, disse Silva. Ele está ao lado de Joaquim Manuel de Macedo, do compositor Enrique Mesquita, do ator João Caetano, do compositor Carlos Gomes, do ator Francisco Correia Vasques, do maestro Enrique Gurjão.
E depois de uma pausa:
- Substituiu José de Alencar.
- De quem é o projeto da fachada?
- De Crispim do Amaral, disse Silva.
- O homem dos sete instrumentos.
- Sim.
- E onde estão o grupo de Apolo e as duas grandes liras? Onde as puseram? – quis saber Scholz.
- No lixo!
O milionário abriu bem os olhos e olhou para o amigo.
- Que lixo? – perguntou.
- Estão abandonadas, há vários anos, no pátio da Usina de Bondes da Cachoeirinha... Nem sei se ainda existem.
- Por que abandonadas?
- Amigo, Apolo se tornou deus da música porque venceu Pan em torneio. A partir daí o deus vivia cercado das nove musas. Tocava lira. Aquela estátua foi causa de polêmica, desde que desembarcou em Manaus...
- Por quê?
- Primeiro porque o deus está nu, ou semi-nu, o que ofende à moral da terra: acharam que não ficaria bem colocar um homem nu no alto do arco, como símbolo não sabem de quê.
Riram-se.
- Depois, prosseguiu Lima Silva, há um fato mais sutil, delicado. A sociedade brasileira é extremamente machista. Se ali estivesse uma deusa nua, tudo bem. Em Manaus isto se agrava.
- Compreendo. Na Alemanha também é assim, disse o alemão.
- Além disso, Eduardo Ribeiro é solteiro e há boatos ferinos acerca de sua masculinidade pois, e nunca se soube que ele tivesse mulher. Fala-se de um filho, mas ninguém viu esse filho, até hoje. Ninguém questiona a masculinidade dele na sua frente, porque o baixinho é agressivo, mal humorado e truculento. Se aquela estátua estivesse no cimo do teatro logo alimentaria ilações caluniosas e ironias a respeito dele próprio.
Riram-se, divertidos.
- Mas há um fato mais grave.
- Ainda? - perguntou Scholz, interessado.
- Amigo, aquela estátua, aquele Apolo é muito feminino.
- Como feminino?
- Veja: Apolo segura a lira com o braço esquerdo da mesma forma que uma colegial carrega seus cadernos, abraçada contra a cintura.
- Sim.
- O outro braço, o direito, está horizontalmente estendido para trás, com a palma para baixo, num gesto de desprezo, de dádiva, de doação, de aborrecimento.
- Pois não.
- O braço está levemente erguido à altura da cabeça e a palma e o pulso caem como quem acaba de lançar um punhado de sementes na terra – afinal a estátua representa Apolo recompensando as musas, mas com desdém, com desprezo e ar blasé, com afetação, ele ali não dá importâncias às suas musas, as rejeita, não as leva em conta, e as recompensa como quem diz “peguem essas migalhas que é tudo o que merecem”.
- Continue, disse Scholz, já divertido.
- O punho para baixo e o movimento contorcido e dançante das pernas e do corpo feminino sem grande musculatura do deus que se retorce para algo que está atrás dele, embora ele esteja olhando para a frente, para o alto, e os cabelos compridos e a face feminina não fazem dele um homem, mas sim uma mulher, um eunuco efeminado.
- Sim.
- Por isso aquele Apolo teatral, saído de um cabaré de hetairas, desenhado por Crispim do Amaral para ser a culminância do nosso teatro, foi logo recusado, e rejeitado mesmo para ser colocado em praça pública aos olhos do povo: seria apedrejado! Aquele Apolo é um grande travesti. Seria motivo da chacota do povo.
- Como as pinturas masculinas do interior do teatro, não acha?
- Sim. Mas ali dentro aqueles efebos femininos estão entre mulheres que dançam, disfarçados entre virgens de corpos ágeis que se atropelam pressurosas aos pórticos do espetáculo.
- E as grandes liras, perguntou Scholz. Não há razão subjetiva para ser contra as grandes liras?
- Abandonadas. Sim, aqui não há explicação. Puro descaso. Eu as vi, Scholz, são belíssimas. Imensas, cerca de 3 ou 4 metros de altura. Como impressionantemente belo era o conjunto de Apolo entre duas deusas. Coisa de museu.
(Anos depois, dizem, o governador Álvaro Maia mandou destruir tudo).
- Arte e dinheiro jogados fora.
- Dinheiro público, disse Lima Silva. O grupo de Apolo e as liras de bronze custaram milhares de francos franceses, parece que 46 mil liras. Eram pesadíssimos e maciços, e foram fundidos em Paris, por Koch Frères, que é uma famosa fundição.
- Eu sei. Tenho trabalhos deles no meu jardim.
- Colocado no mais alto da cidade, Apolo condenaria todos os habitante à chacota e ofenderia a masculinidade universal.

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