quinta-feira, 31 de julho de 2008
Uns versos de Dogen
Rogel Samuel
Escreveu o mestre Dogen (1200-1253):
"Mind itself is buddha" -- difficult to practice, but easy to explain;
"No mind, no buddha" -- difficult to explain, but easy to practice.
Que "traduzo" desta forma, comentando: A própria mente é a iluminação, isto é difícil
de praticar, mas fácil de explicar. Quando não há mente, não há iluminação, isto é
difícil de explicar, mas fácil de praticar.
A iluminação não está na mente, mas a mente ela-mesma é a iluminação. Não vemos isto
porque estamos perturbados, porque buscamos algo fora da mente, num objeto fora. Se
a iluminação tem alguma base ela está ai, é isso que chamamos mente, que não tem
lugar, face, forma, e é pura e vazia e luminosa.
Se não vemos isso é porque estamos perturbados.
quarta-feira, 30 de julho de 2008
Os trinta raios da poesia
Rogel Samuel
O poema XI do “Tao te ching” assim o canta:
Trinta raios rodeiam um eixo
mas é onde o raio não raia
que roda a roda.
Vaza-se a vasa e se faz o vaso.
Mas é o vazio
que perfaz a vasilha.
Casam-se as paredes e se encaixam portas
mas é onde não há nada
que se está em casa.
Falam-se palavras
e se apalavram falas,
mas é no silêncio
que mora a linguagem.
É o Ser que faz a utilidade.
Mas é o Nada que dá sentido.
A tradução é do filósofo brasileiro Emmanuel Carneiro Leão, meu ex-professor de filosofia da linguagem. Os raios seguram e convergem na roda, mas não a são. No vazio do vaso é onde encontramos a água, posta em vasilha. A roda roda no vazio dos seus raios, o vaso envasa no vazio de seu bojo, entre as paredes há o espaço de nossa casa, as palavras se costuram na linha do discurso, em continuidade: mas a linguagem não tem som, tem sentido, e o que é expresso se encontra no seu conteúdo – no vazio do vaso da fala, na poesia da linguagem, o seu silêncio.
terça-feira, 29 de julho de 2008
Lao-Tzé
Rogel Samuel
Escreveu Lao-Tsé no seu famoso poema intitulado “TAO TE KING”:
As palavras jamais conseguem transmitir
a beleza de uma árvore;
para compreendê-la, você precisa vê-la
com seus próprios olhos.
A linguagem não é capaz de captar
a melodia de uma canção;
para compreendê-la, você precisa ouvi-la
com seus próprios ouvidos.
Assim acontece com o TAO;
a única maneira de compreendê-lo
é vivenciá-lo diretamente.
A verdade sutil do universo é
indizível e impensável.
No entanto, os mais elevados
ensinamentos são desprovidos de
palavras.
Minhas próprias palavras não são o remédio,
mas a receita; não o destino,
mas um mapa para ajudá-lo a chegar até
Ele.
Quando você chegar lá, tranqüilize a mente
e feche a boca.
Ao contrário, empenhe-se em vivê-lo:
silenciosa e integralmente, com todo
o seu ser harmônico.
Essa é uma “tradução” do poema. Fica distante do original. Lao Tze viveu no sexto Século antes de Cristo, se é que existiu. Seus ensinamentos eram orais, mas um guarda da fronteira o convenceu a escrever. O Tao significa (?) deixar a vida seguir o seu harmonioso curso. Sem tentar mudar, sem agir – o que representa um agir mais radical. Ouvir o rio da vida, no seu silêncio, fluir por dentro da floresta, sem interferir com a vontade, mas com uma espécie de sabedoria da não ação. E expressar com o silêncio, que é o máximo da expressão da voz.
segunda-feira, 28 de julho de 2008
O NARRADOR
ROGEL SAMUEL
Todo narrador de romance faz uma confidência ao contar uma estória. Escrever é
uma prática honesta, mas mentirosa, o narrador mente ao fazer-se e como disse Lacan faz-nos enganar por uma estória,uma ficção. “Fazer-nos, um ser de sua ficção, verdadeiramente enganar” (Lacan. Escritos, p. 28). “Ce serait bien là le cornble où pût atteindre 1’i1lusionniste que nous faire par un être de sa fiction véritablement tromper” (Lacan. Écrits 1, p. 31, ou, na tradução portuguesa assim feita: “Seria isso o máximo que poderia atingir o ilusionista: fazer-nos, um ser de sua ficção, verdadeiramente enganar”, p. 28, que é grifado nos dois textos. E nós nos enganamos conscientemente. Engano, de modo verdadeiro (verdadeiramente enganar), finge que nos ensina um segredo (do narrador), ou "um segredo" (do personagem).
O narrador nos narra, transforma-nos em ficção. Em lenda.
domingo, 27 de julho de 2008
MAS O AURORA
Rogel Samuel
É um velho bar. Tem mais de cem anos. O livro de Barthes, que já li, se torna maravilhoso, ali. Outro dia fui à Adega Flor de Coimbra, na Rua Teotônio Regadas, na Lapa. No mesmo lugar morou Portinari. Ao lado, a Sala Guiomar Novaes, e atrás a Sala Cecília Meireles. A adega era freqüentada por Villa Lobos, Manuel Bandeira. Na Sala Guiomar Novaes estão as "mãos", em bronze, da pianista. Constato que eram bem pequenas. Como pôde a grande pianista ter mãos pequenas? Hoje quem toca na sala é uma pianista famosa, não sei dizer por quê. Às vezes é boa. Outras vezes é "dura". Na minha frente estava um agradável senhor, com quem converso antes do concerto, sobre a iluminação, a acústica etc. Vejo que no programa havia uma certa "Terceira balada", de J. A. Almeida Prado, primeira audição mundial. Foi o melhor do programa. A balada era uma improvisação livre sobre um tema de uma música banal, ou mesmo vulgar: "Parabéns para você". Mas a "Terceira balada" era extraordinária. Depois vi que o autor era aquele agradável senhor com quem conversei sobre banalidades. Na volta não pude ir pela calçada e entrar no Metrô, como gostaria. A noite tinha caído. Afinal, o Rio de Janeiro é um lugar perigoso.
sábado, 26 de julho de 2008
No chão
Rogel Samuel
No Metrô, encontro a amiga X. e seus filhos. Conversamos rapidamente. A conversa seria interminável, se tivéssemos tempo. Adoro conversar. Continuo minha caminhada para Botafogo. Caminho pela Voluntários da Pátria. Há muito barulho. Entro numa velha loja de disco. Compro, usado, o CD da Sinfonia 9 de Schubert, a "grande", na magnífica interpretação de Solti, que já conheço. Georg Solti fez melhor do que
Bernstein. Solti foi um grande maestro, como Hermann Scherchen, como
Mravinsky. Mais adiante, na calçada, no chão, um sebo. Encontro um livro de
Barthes, que me custa CR$ 2,00. Continuo pela Marquês de Caravelas.
Entro no Aurora. Está vazio. A noite vai cair. Peço alguma coisa e me
ponho a ler Barthes. Ninguém me importuna. O livro é bom. É bom estar só, consigo mesmo. A noite cai. Ouço na imaginação a Sinfonia 9 de Schubert.
Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, grácil, na escuridão tranqüila,
— Perdida voz que de entre as mais se exila,
— Festões de som dissimulando a hora.
(Camilo Pessanha).
sexta-feira, 25 de julho de 2008
Pela cidade
Rogel Samuel
Caminho pela calçada. Atravesso a rua. Desço no Metrô. Todo Metrô se
parece. O do Rio não é triste. Nem lúgubre, como o de Paris. Parece o de
Frankfurt. No percurso encontro meu amigo H. Não o via há anos. Físico e
filósofo, ex-companheiro da FNFi. Estudamos juntos, depois trabalhamos
num Colégio Estadual. "Tenho traduzido a Metafísica de
Aristóteles do grego", ele diz. É verdade. Professor aposentado. Mal
vestido. Mal-tratado. Vive da aposentadoria. Sempre foi assim. Nunca
conseguiu uma conexão prática com a vida. Por isso penso como eram bons
os antigos mecenas. Há gênios que não podem viver sem mecenas. Meu
amigo foi um deles. Conversamos sobre Kant. Ele lê
Kant em alemão, Gorki em russo, etc. Nunca soube ganhar dinheiro. Anda
feito mendigo. Conheci muita gente assim, na minha geração. Um dia,
encontrei Anísio Teixeira e me dirigi a ele, pensando que fosse o
porteiro da Faculdade. Foi a primeira pessoa que encontrei, no Rio.
Anísio foi meu professor de Filosofia da Educação. O único professor
que, após as aulas, recebia palmas na classe. Nunca vi isso nem antes
nem depois. A última aula, já cassado, foi sobre o conceito de liberdade
na educação. Naquela faculdade assisti a Álvaro Vieira Pinto. Havia
efervescência cultural para a vida, na minha geração. Mas o mundo em que
vivíamos desapareceu em 64.
quinta-feira, 24 de julho de 2008
Verlaine
Rogel Samuel
Tenho tudo que posso de Guiomar Novaes. Os melhores discos são com
Kemplerer. Ela fez sucesso naquela época de ouro da música mundial.
Estavam todos vivos, os grandes: Rubinstein, Schnabel etc.
Minha amiga U.A. diz que minhas crônicas são "crônicas de saudade de
Manaus". Ela me mandou um poema sobre os seus 70 anos. Tomei um susto: não
podia acreditar. Sim, havia muitos discos de Guiomar Novaes na minha
infância. Assim como Bidu Sayão, cantando o terceiro poema de "La bonne
chanson", de Verlaine, que um dia traduzi livremente assim:
A lua branca
luzir no bosque
de cada ramo
parte uma voz
sob a folhagem...
Ó bem amada.
Lago reflete
profundo espelho
a silhueta
do colmo negro
o vento chora...
delírio, é a hora.
vasta e macia
tranqüilidade
sente descer
do firmamento
o astro irisa...
estranha é a hora.
quarta-feira, 23 de julho de 2008
A poesia de Sonia Sales
Rogel Samuel
“Enquanto eu estiver viva, faça-me
a única vontade, deixa-me ouvir minhas músicas
preferidas, no meu canto solitário, minhas margaridas repousantes, tão amigas, e as violetas em festa.
O meu cavalete encoberto de poeira e saudades, deixem ao meu lado, terei tempo e ainda sobra de fazer
mais um quadro, réplica de mim mesma, alegre
e sempre viva, de esperanças e anseios, escondendo
o que ficar feio, num sentimento de entrega
de uma alma ainda alerta.
Mesmo que o meu corpo esteja gasto e não mais
responda às suas mãos, faça-me a vontade,
a última, beija-me então.”
Leio com prazer a antologia de Sonia Sales: “50 poemas escolhidos pelo autor” (Rio de Janeiro, E. Galo Branco, 2007). Já no primeiro poema, ‘Última vontade”, transcrito acima, se revela o sentido da poesia de Sonia: poesia sobre a vida e a morte, poesia da sensibilidade feminina. Ali se descreve as últimas vontades, as vontades do poeta, suas músicas, suas margaridas e violetas, o cavalete de pintura, tão cheio de esperanças e desejos, desejos de uma alma inquieta, alerta, viva, ainda que o corpo gasto não mais responda à altura, não mais responda àquelas mãos amorosas. (”Acabou-se o carnaval, / foram-se os sonhos. Rasgamos / as fantasias”). Mesmo assim, ainda assim:
Na morte de minha face
fujo de mim
procurando em outros caminhos
encontrar sem lágrimas
a paz que tanto desejo
a alegria de cantar sem pressa
cabelos soltos de sol
pés calçados de mar
Como diz a poesia de Sonia Sales, “sem a esperança do eterno / não há o sentido da vida”. Poesia do sentido da vida.
terça-feira, 22 de julho de 2008
Amazônia
Rogel Samuel
Meu pai viajava pelos grandes rios da Amazônia e me levava com ele. Às
vezes, entrava num lago, ancorava, ali passava a noite, ao abrigo de
alguma tempestade. No Amazonas se chamava aquilo de lago, que se entrava
por um "furo", ligado ao grande Rio. Havia pássaros monstruosamente
belos como deuses coloridos, bailando entre as grandes árvores sagradas.
Antes da noite cair completamente, meu pai subia no teto da lancha e
tocava violino. O silêncio era tanto que o violino soava nas estrelas.
Certa vez, ele viajou muito tempo com um rapaz meio índio, que
fazia de marinheiro. Durante aquele tempo ele estudava, diariamente, e
durante várias horas por dia, certa música de Bach, uma Partita.
Muitos anos depois, um dia ele chegou num vilarejo onde havia uma festa com alguns músicos
tocando. Um dos músicos se aproximou dele e perguntou: "Sr. Samuel, o
senhor não se lembra de mim?" Era o jovem marinheiro. "O Sr. ainda toca
aquela musiquinha?" e o homem tocou, maravilhosamente, Bach ao violão...
domingo, 20 de julho de 2008
O piano
Rogel Samuel
Sim, Guiomar Novaes foi uma das melhores pianistas do Século XX e da
minha infância. Quando a Philips estava elaborando a coleção "Grandes
Pianistas", tentou inclui-la, mas esbarrou no problema da baixa
qualidade das gravações da Vox dos anos 20. Nelson Freire possui o
Steinway que pertenceu à grande dama. Segundo Freire, que está na
coleção - o único brasileiro na coleção - além de Guiomar, outros
brasileiros/as poderiam estar incluídos. Como Magdalena Tagliaferro e
Jacques Klein. Eu era vizinho de um, Arthur Moreira Lima.
Quando eu era menino acordava com a vizinha tocando Chopin. Não tocava
mal. Meu pai foi meu primeiro e último professor de piano. Não mais, não toco.
Desde cedo não toco, ouço. Gosto de ouvir e sonhar. Sonhar é voar na
imaginação das paisagens sonoras. Não posso imaginar como seria um mundo
silencioso, sem música. Não seria o meu mundo. Não seria silencioso, pois o silêncio
também é música.
sábado, 19 de julho de 2008
FOTOGRAFIA
Rogel Samuel
Foi num sebo aonde nunca tinha ido. No Catete. Em frente aqueles
prédios da Primeira República. Em frente ao Palácio. Aquele palácio
tinha sido a casa do Barão de Nova Friburgo, que tinha fazendas de café.
Em Nova Friburgo visitei, também, sua casa. Num parque belíssimo. No
sebo encontrei uma pilha da revista "Fotoarte". Era uma revista
dirigida por Francisco Aszmann, um dos maiores fotógrafos do mundo de
sua época. Um dos mais premiados no mundo inteiro. Ele foi meu professor
de fotografia, e o muito do que eu (pouco) sei de como ver um quadro se
deve a ele. Eu comecei a buscar o que procurava: a fotografia "Bois",
que eu já conhecia, e que sabia que estava num daqueles números. Eu
conhecia detalhes da foto, e de como Aszmann a tirara. Ele contou numa
das aulas que tinha ficado horas à espera da manada que entrava numa
estreita ponte. Tirou a foto e pulou da ponte pela ribanceira de dez
metros, na Hungria. A foto ficou anos esquecida, porque o boi da direita
estava ligeiramente desfocado: um crime para os padrões estéticos
daquela época. Mas em 1940 o conceito mudou e Aszmann pode ganhar
todos o títulos com uma única foto. Um dia eu ganhei um prêmio de
fotografia. Era uma competição coletiva, na ABAF, no Rio. Eu lecionava
no subúrbio carioca e tomava o trem, pela manhã. Ia com a câmera. Eu só
andava com ela. A tiracolo. Em plena Central do Brasil comecei a
fotografar uns garotos de rua, com tele-objetiva. Um deles tinha um
tampão branco, no olho, de esparadrapo. Quando revelei a foto, a criança
aparecia angustiada, atrás de uma monstruosa coluna (que na realidade
era um vão do prédio da Central), e por trás estava, desfocado, o grande
edifício do Quartel Geral das Forças Armadas. Ameaçador. Não deu outra:
tirei o primeiro prêmio - estávamos em pleno regime militar, e aquele
menino sujo esmagado num canto virou o maior símbolo. Minha foto fez
sucesso. Mas eu a perdi, ou melhor, a vendi. Aprendi com
Aszmann, o menino estava no "ponto ouro" do quadro
(o canto inferior esquerdo). O Brasil, que hoje tem Sebastião Salgado,
já teve Francisco Aszmann, o professor. Abandonei quase completamente a
fotografia, hoje. Talvez porque se tornou uma arte cara. Mas
principalmente porque já não tenho tempo nem laboratório em casa.
Fazíamos em casa as fotos em preto-e-branco. Um dia, talvez, vou partir
para a foto digital. Aí está a foto do mestre Aszmann "Bois".
sexta-feira, 18 de julho de 2008
Interpretar a Divina Comédia?
Rogel Samuel
Escreveu Otto Maria Carpeaux: “O próprio Dante distinguiu quatro níveis de interpretação e compreensão do poema: o sentido literal e histórico; o sentido alegórico e tipológico; o sentido topológico ou moral;e, enfim, o sentido analógico ou místico. Mas será este último jamais acessível a nós mortais?” (“Meu Dante”). Mas creio que o grande poema não necessita de interpretação, nem classificação. Basta-se a si próprio. Ou melhor, seu melhor sentido é “veja-me”, “eis-me”. Ou seja: “leia-me”. O poema máximo diz:”Veja como sou bem construído, perfeito”, pois Dante é muito bom de ler, afinal ele conta algo, uma estória, tem um “enredo”, é um livro de viagem, uma viagem fantástica, extraordinária, em versos de certo modo claros, bons de ler, onde se vai a algum lugar, a um certo fim, a uma finalidade, onde se espera chegar em paz, talvez à morte, ou ao eterno, pois vida é uma vereda perigosa, onde os rochedos desabam, desmoronam (...e poucos, só poucos podem dizer no fim: “e ao brilho caminhamos das estrelas”), e esta estranha estrada não diz aonde leva, aonde vai, nem que:
Se prosseguir agora vos apraz,
passai por esta grota, onde se abriu
uma vereda, e chegareis em paz.
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Interpretar a Divina Comédia?
quinta-feira, 17 de julho de 2008
Um tradutor de Dante
Rogel Samuel
A tradução em versos de Cristiano Martins da “Comédia” de Dante é extraordinária pela beleza e pela erudição, mas hoje pouco conhecida. Não sei por quê, já que está viva, muito viva no catálogo da Itatiaia. Martins é um grande erudito, político e poeta mineiro. Nasceu em 1912, foi professor universitário, secretário do Presidente Kubitschek, Procurador do Tribunal de Contas. Alceu Amoroso Lima disse que sua poesia era noturna. Como ensaísta foi elogiado por Mário de Andrade, Oscar Mendes, Sérgio Milliet, Otto Lara Resende e Aires da Mata Machado Filho. Mas sua obra-prima é a tradução da Divina Comédia de Dante, uma das mais importantes em todo o mundo. Mesmo na Itália não se encontra com facilidade uma edição do poema como esta, comentada como detalhes, estrofe por estrofe, com minúcia e erudição. Ele simplesmente explica o poema nas notas de pé de página, e acompanha o leitor elucidando todas as passagens difíceis. Como escreveu Dante (e ele traduziu):
Nova não é decerto esta ousadia:
Foi uma vez usada noutra porta,
Que depois nunca mais se fecharia.
quarta-feira, 16 de julho de 2008
T. S. Eliot
Rogel Samuel
O poema é longo. Não dá para acompanhá-lo aqui. Mas começa assim (depois de uns versos de Dante):
“Sigamos então, tu e eu,
Enquanto o poente no céu se estende
Como um paciente anestesiado sobre a mesa;
Sigamos por certas ruas quase ermas,
Através dos sussurrantes refúgios
De noites indormidas em hotéis baratos,
Ao lado de botequins onde a serragem
Às conchas das ostras se entrelaça:
Ruas que se alongam como um tedioso argumento
Cujo insidioso intento
É atrair-te a uma angustiante questão.
Oh, não perguntes: “Qual?”
Sigamos a cumprir nossa visita.”
As imagens chocam, “como um paciente sobre a mesa”. Aparecem “tu e eu”, tão inexplicáveis (serão poeta e leitor? serão Dante e Virgílio?). As ruas estão vazias, as casas são refúgios “sussurrantes”, como se houvesse guerra. É “A canção de amor de J. Alfred Prufrock” de T. S. ELIOT, precedida de uma epígrafe de Dante, na competente tradução de Ivan Junqueira. Estamos em visita, não se diz de quê (do inferno?). O próprio J. Alfred Prufrock seria um personagem solitário, vivendo em hotéis baratos. E não tem amor nenhum a quem cantar. O poema é famoso por causa disto, inaugura a poesia do caos, da solidão anestésica, da decadência urbana, da dúvida. Poema dito por um personagem que vem de uma estrofe de Dante:
“S’io credesse che mia ris posta fosse
A persona che mai tornasse ai mondo,
Questa fiamma staria senza piu scosse.
Ma perciocche giammai di questo fondo
Non torno vivo alcun, s’i’odo il vero,
Senza tema d’infamia ti rispondo.”
Dante Alighieri. La Divina Commedia, Inferno, XXVII, 61-66., cuja tradução de Cristiano Martins (a melhor que existe) assim o diz:
“Se eu pudesse supor que dirigida
minha palavra fosse a alguém do mundo
quedaria esta língua emudecida;
mas pois que em tempo algum cá deste fundo
ninguém pôde voltar, como aprendi,
falo-te, sem qualquer temor profundo”.
Era o famoso Guido de Montefeltro quem se encontrava ali, no Inferno. Era o Sr. J. Alfred Prufrock. Era realidade do inferno.
terça-feira, 15 de julho de 2008
O piano
Presença do piano
Antonio Olinto
Mestra internacional do piano, com toda uma vida dedicada à música, em recitais que deram fama a seu nome, nos mais importantes centros musicais dos Estados Unidos, da França, da Inglaterra, da Alemanha, da Áustria e da Suíça, com toda essa experiência resolveu Maria Augusta de Oliveira Morgenroth colocar agora num livro uma seleção das aulas de piano que tem dado e as "máster classes" ligadas a essas aulas, isto é, ao mergulho no íntimo do compositor e de sua obra, na penetração mesma das intenções da música e da importância do intérprete, no caso a pianista, "sentir" exatamente o que está tocando.
Falando sobre "Pour Elise" de Beethoven, a autora pergunta a uma aluna de onze anos se ela sabia que o título da música era "Para Elisa" e que Elisa foi namorada de Beethoven. A professora quer saber: "Você percebeu o "Colóquio amoroso" dessa música?; e explica: "Eu toco e você vai descobrir. Está ouvindo estas primeiras notas? São uma pergunta. As três seguintes são as respostas, formando o tema tão conhecido desta música, tão singela quanto apaixonante. "Compreendeu?"
Assim, com jovens alunos e alunas, descreve aulas e lições, estudando Johan Sebastian Bach (1685-1750), Beethoven (1770-1827), Schubert (1797-1828), Mendelsohn (1809-1847), Liszt (1811-1886), Chopin (1810-1849), Schumann (1810-1856), Brahms (1833-1897), Debussy (1862-1918), Ravel (1875-1937), Manuel de Falla (1876-1946), Villa-Lobos (1887-1958), Bella Bartok (1881-1945), Prokofiev (1891-1953), Rachianinoff (1873-1943).
Em cada aula, Maria Augusta analisa o músico citado, estuda-lhe a obra e realça aspectos da execução ao piano de cada partitura.
Consciente de que a experiência adquirida na Europa e nos Estados Unidos devia ser transferida, Maria Augusta resolveu, no Brasil, convidar a pianista para uma série de Master Classes no seu próprio estúdio, a fim de lhe transmitir o que aprendera com os grandes mestres: Helena de Figueiredo, Alexandre Sienkiewicz, Lorenzo Fernandez, Francisco Mignoni Villa-Lobos, Luiz Heitor Correia de Azevedo e, no exterior, Lili Kraus, Arthur Rubinstein, Marguerite Longw e Bruno Seidlhofer.
Do testemunho de críticos europeus sobre seus recitais constam opiniões como a do "Le Monde" de Paris: "Maria Augusta revela perfeita musicalidade, sonoridade e, sobretudo, uma perfeita compreensão das obras dos grandes mestres."
O crítico do "Algemeen Handelsblad" de Amsterdã se entusiasmou: "Arrebatador o debut de Maria Augusta. Todo mundo se surpreendeu com a perfeição técnica desta tão atrativa pianista. Seu concerto foi planejado e se realizou com todos os detalhes e o mais surpreendente é que tudo vinha d´alma. Isto ninguém pode ensinar ou aprender. É algo que tem de estar dentro da artista, por natureza.
Maria Augusta tocou o programa completo sem reduzir sua vitalidade, sem diminuir ao mínimo sua intensidade expressiva. Comparo-a a Tereza Careno. Desde 1917 o mundo está esperando sua sucessora. Maria Augusta efetivamente é da altura de Careno."
Na próxima sexta-feira, dia 18, das 18h às 21h, fará Maria Augusta palestra no Rio de Janeiro sobre a arte do piano, ilustrada pelo estudante Phelipe Martins e pelos pianistas Yako Shiiaco e Boris Marques, no Espaço Cultural Francisco Mignone (Rua Barata Ribeiro, 774, sala 1013).
"MASTER CLASSES" é um lançamento da Editora Europa. Coordenação Editorial de Walter Duarte. Diagramação e capa de Márcio Fructuoso. Digitação de Célia Guimarães.
Antonio Olinto
Mestra internacional do piano, com toda uma vida dedicada à música, em recitais que deram fama a seu nome, nos mais importantes centros musicais dos Estados Unidos, da França, da Inglaterra, da Alemanha, da Áustria e da Suíça, com toda essa experiência resolveu Maria Augusta de Oliveira Morgenroth colocar agora num livro uma seleção das aulas de piano que tem dado e as "máster classes" ligadas a essas aulas, isto é, ao mergulho no íntimo do compositor e de sua obra, na penetração mesma das intenções da música e da importância do intérprete, no caso a pianista, "sentir" exatamente o que está tocando.
Falando sobre "Pour Elise" de Beethoven, a autora pergunta a uma aluna de onze anos se ela sabia que o título da música era "Para Elisa" e que Elisa foi namorada de Beethoven. A professora quer saber: "Você percebeu o "Colóquio amoroso" dessa música?; e explica: "Eu toco e você vai descobrir. Está ouvindo estas primeiras notas? São uma pergunta. As três seguintes são as respostas, formando o tema tão conhecido desta música, tão singela quanto apaixonante. "Compreendeu?"
Assim, com jovens alunos e alunas, descreve aulas e lições, estudando Johan Sebastian Bach (1685-1750), Beethoven (1770-1827), Schubert (1797-1828), Mendelsohn (1809-1847), Liszt (1811-1886), Chopin (1810-1849), Schumann (1810-1856), Brahms (1833-1897), Debussy (1862-1918), Ravel (1875-1937), Manuel de Falla (1876-1946), Villa-Lobos (1887-1958), Bella Bartok (1881-1945), Prokofiev (1891-1953), Rachianinoff (1873-1943).
Em cada aula, Maria Augusta analisa o músico citado, estuda-lhe a obra e realça aspectos da execução ao piano de cada partitura.
Consciente de que a experiência adquirida na Europa e nos Estados Unidos devia ser transferida, Maria Augusta resolveu, no Brasil, convidar a pianista para uma série de Master Classes no seu próprio estúdio, a fim de lhe transmitir o que aprendera com os grandes mestres: Helena de Figueiredo, Alexandre Sienkiewicz, Lorenzo Fernandez, Francisco Mignoni Villa-Lobos, Luiz Heitor Correia de Azevedo e, no exterior, Lili Kraus, Arthur Rubinstein, Marguerite Longw e Bruno Seidlhofer.
Do testemunho de críticos europeus sobre seus recitais constam opiniões como a do "Le Monde" de Paris: "Maria Augusta revela perfeita musicalidade, sonoridade e, sobretudo, uma perfeita compreensão das obras dos grandes mestres."
O crítico do "Algemeen Handelsblad" de Amsterdã se entusiasmou: "Arrebatador o debut de Maria Augusta. Todo mundo se surpreendeu com a perfeição técnica desta tão atrativa pianista. Seu concerto foi planejado e se realizou com todos os detalhes e o mais surpreendente é que tudo vinha d´alma. Isto ninguém pode ensinar ou aprender. É algo que tem de estar dentro da artista, por natureza.
Maria Augusta tocou o programa completo sem reduzir sua vitalidade, sem diminuir ao mínimo sua intensidade expressiva. Comparo-a a Tereza Careno. Desde 1917 o mundo está esperando sua sucessora. Maria Augusta efetivamente é da altura de Careno."
Na próxima sexta-feira, dia 18, das 18h às 21h, fará Maria Augusta palestra no Rio de Janeiro sobre a arte do piano, ilustrada pelo estudante Phelipe Martins e pelos pianistas Yako Shiiaco e Boris Marques, no Espaço Cultural Francisco Mignone (Rua Barata Ribeiro, 774, sala 1013).
"MASTER CLASSES" é um lançamento da Editora Europa. Coordenação Editorial de Walter Duarte. Diagramação e capa de Márcio Fructuoso. Digitação de Célia Guimarães.
A praia de Matthew Arnold
Rogel Samuel
Matthew Arnold é um poeta inglês (1822-1888) que, junto de Tennyson e Robert Browning é um dos chamados autores vitorianos. Também foi pioneiro na crítica literária e da sociedade, considerado o primeiro moderno. Influenciou gente como Eliot e Allen Tate, e inaugurou a crítica sociológica. Como poeta, alguns o consideram o maior de sua geração. A sua visão de mundo é pessimista e sua poesia triste, cinzenta, como sua famosa “Praia de Dover”, de que transcrevemos parte:
O Mar da Fé
Também existiu, no passado, cheio, e em volta da praia do mundo
Estendia-se como as dobras de uma faixa desdobrada.
Agora, porém, somente lhe escuto
O bramido melancólico, longo, fugidio,
Que se aparta para as lufadas
Do vento noturno, escorrendo por vastas e horrendas costas
E pelos areais desnudos do mundo.”
“Ah!, amor, sejamos fiéis
Um ao outro.
Pois o mundo, que parece
Estender-se à nossa frente como uma terra de sonhos,
Tão diversas, tão formosas, tão novas,
Na verdade não tem nem alegria, nem amor, nem luz,
Nem certeza, nem paz, nem lenitivo para a dor;
E estamos aqui como numa planície penumbrosa,
Varrida de confusos alarmas de combate e de fuga,
Na qual exércitos ignorantes à noite travam batalha.”
O mundo que ali aparece é o nosso, em guerra, em destruição e guerra, varrido de balas e alarmes de combate, o mundo escuro, onde exércitos combatem às cegas, - o que parece uma terra de sonhos na verdade não tem luz. Há um vento escuro, na orla da praia, o ambiente é sinistro e deserto, estranho para um poema de amor. Este contraste é o que faz desse fragmento de poema um marco, o amor enquanto desastre, ou melhor, o amar no desastre entre as trincheiras da guerra!
Dá para lembrar “Waste Land” de Eliot, ou o seu famoso poema “A CANÇÃO DE AMOR DE J. ALFRED PRUFROCK”.
domingo, 13 de julho de 2008
A emancipação democrática
A emancipação democrática
Rogel Samuel
“A falta de esperança é, ela mesma, tanto em termos temporais quanto em conteúdo, o mais intolerável, o absolutamente insuportável para as necessidades humanas”, escreveu Ernst Bloch, em “O princípio esperança”, vol. 1, p. 15. Por isso, mesmo a fraude nos é estimulada e estimulante. Pois, o que o populismo, o demagógico, senão o aceno, ainda que vago, ainda que incerto, ainda que retórico do princípio da esperança de dias melhores, de um mundo melhor, de uma vida melhor e mais feliz? Isso não é auto-ajuda, mas marxismo puro: a crença no porvir, a crença de que as sociedades caminham para a emancipação. Trata-se de uma emancipação democrática, mas nem por isso menos revolucionária. Esse é o desejo de uma qualidade sincera dos povos, que aquilo-ainda-não-consciente se faça matéria verdadeira e consciente, como dizia Lênin: “o sonhar para frente”. “Diz-se que Varrão, na sua gramática latina, esqueceu o futuro”: significa aquela imobilidade, aquela propriedade que tenta “esquecer” o que virá, esquecer o para frente, que tenta excluir o novo, que não percebe a mobilidade e a mudança para o diferente e vê o mundo como a repetição do mesmo, do mesmo-outra-vez, como o reflexo do temor do outro, do desconhecido. É isso próprio das classes dominantes: tentam eternizar-se no mesmo poder.
sábado, 12 de julho de 2008
O Apolo de Holderlin
Rogel Samuel
Escreveu Holderlin este “Por de sol”, que leio na sempre bela tradução de Manuel Bandeira:
Onde estás? A alma anoitece-me bêbeda
De tôdas as tuas delícias; um momento
Escutei o sol, amorável adolescente,
Tirar da lira celeste as notas de ouro do seu canto da noite.
Ecoavam ao redor os bosques e as colinas;
Êle no entanto já ia longe, levando a luz
As gentes mais devotas.
Que o honram ainda.
O poeta se refere a Apolo, ao sol, ao deus da luz e do sol (“Êle no entanto já ia longe, levando a luz”), da verdade, da profecia, do pastoreio, da beleza, da medicina, da cura, da música (“Tirar da lira celeste as notas de ouro do seu canto da noite”), da poesia e das artes. Apolo é o deus dos adolescentes (“amorável adolescente”), ajudando na transição para a idade adulta. Assim, ele é sempre representado como um jovem que simboliza a pureza e a perfeição. O poeta está bêbado das delícias de Apolo, da beleza, da música, da poesia. Ao redor, os bosques e as colinas escurecem. O sol já vai longe, levado pelo deus da luz. Com ele iam também “As gentes mais devotas / Que o honram ainda”.
É Holderlin. Daí se vê porque Heidegger dizia que em Holderlin encontrou a essência da poesia, a linguagem poética como a linguagem autêntica do ser, e para ele a essência da poesia contém o ser. “A poesia é o fundamento que suporta a História”, disse Heidegger. “Na poesia os homens se reúnem sobre a base de sua existência”, escreveu o filósofo.
HOLDERLIN, 2
METADE DA VIDA
Heras amarelas
E rosas silvestres
Da paisagem sobre a
Lagoa.
Ó cisnes graciosos,
Bêbedos de beijos,
Enfiando a cabeça
Na água santa e sóbria!
Ai de mim, aonde, se
É inverno agora, achar as
Flores? e aonde
O calor do sol
E a sombra da terra?
Os muros avultam
Mudos e frios; ao vento
Tatalam bandeiras.
(Trad. Manuel Bandeira)
A rosa
Suave irmã!
Onde irei buscar, quando for Inverno,
As flores, para tecer coroas aos deuses?
Então será, como se eu já não soubera do Divino,
Pois de mim terá partido o espírito da vida;
Quando eu buscar prendas de amor aos deuses,
As flores no campo escalvado,
E te não achar.
(tradução: Paulo Quintela)
Heras amarelas
E rosas silvestres
Da paisagem sobre a
Lagoa.
Ó cisnes graciosos,
Bêbedos de beijos,
Enfiando a cabeça
Na água santa e sóbria!
Ai de mim, aonde, se
É inverno agora, achar as
Flores? e aonde
O calor do sol
E a sombra da terra?
Os muros avultam
Mudos e frios; ao vento
Tatalam bandeiras.
(Trad. Manuel Bandeira)
A rosa
Suave irmã!
Onde irei buscar, quando for Inverno,
As flores, para tecer coroas aos deuses?
Então será, como se eu já não soubera do Divino,
Pois de mim terá partido o espírito da vida;
Quando eu buscar prendas de amor aos deuses,
As flores no campo escalvado,
E te não achar.
(tradução: Paulo Quintela)
HOLDERLIN
POR DE SOL
Onde estás? A alma anoitece-me bêbeda
De tôdas as tuas delícias; um momento
Escutei o sol, amorável adolescente,
Tirar da lira celeste as notas de ouro do seu canto da noite.
Ecoavam ao redor os bosques e as colinas;
Êle no entanto já ia longe, levando a luz
A gentes mais devotas.
Que o honram ainda.
Trad. Manuel Bandeira
E pouco saber...
E pouco saber, mas muita alegria
É dada aos mortais,
Porquê, ó belo Sol, não me bastas tu,
Ó flor das minhas flores! no dia de Maio?
Que sei eu então de mais alto?
Oh, fora eu antes como as crianças são!
Que eu, como os rouxinóis, cantasse
A canção descuidada da minha delícia!
(tradução: Paulo Quintela)
A Natureza e a Arte ou Saturno e Júpiter
Alto tu reinas no dia e a tua lei
Floresce, tens na mão a balança, filho de Saturno!
E reparte as sortes e ledo repousa
Na glória das artes imortais do domínio.
Mas dizem os Poetas que para o abismo
O sacro Pai, o teu próprio, outrora
desterraste e que lá em baixo se chora,
Onde os Indómitos estão justamente antes de ti,
Inocente o deus da idade de ouro há já muito:
Outrora sem custo e maior do que tu, embora
Não tenha ditado nenhum mandamento
E nenhum dos mortais por nome o nomeasse.
Para baixo pois! ou não te envergonhes da gratidão
E se queres ficar, serve ao mais velho
E concede-lhe que antes de todos,
Deuses e homens, o Poeta o nomeie!
Pois, como das nuvens o teu raio, assim dele
Vem o que é teu, olha! dá dele testemunho
O que tu ordenas, e da paz
De Saturno cresceu todo o poder.
E quando eu no coração tiver algo de vivo
Sentido e alvoreça o que tu formaste,
E no seu berço tiver passado a dormir
Em delícia o tempo que muda,
Então eu te reconheço, ó Crónion! então te ouço, a ti
Sábio mestre que, como nós, um filho
Do Tempo, dás leis, e quanto
O santo crepúsculo esconde, anuncias.
(tradução: Paulo Quintela)
Um romance de Assis Brasil
Rogel Samuel
Em ”O prestígio do diabo” (São Paulo, Melhoramentos, 1988) Assis Brasil apresenta o panorama da vida da pequena classe média daquela época com maestria, pois o personagem Lázaro é escriturário, bem comportado, humilde, correto, calmo, preocupado com as aparências (“o que vão pensar?”, “começaram a olhar”, “podiam pensar que fosse um ladrão”), cuidadoso com a mãe e a irmã, tímido (nunca se declarou para Cacilda) e de repente, depois de algumas “quedas” (em que sentia que algo o empurrava ao chão) perde o emprego e começa a mudar. A alteração é lenta, quase imperceptível, mas vai assim até o seu surpreendente fim. O livro é muito bem construído, como todos os de Assis Brasil, e exibe a sociedade carioca das décadas de 60/70, o clima, o cotidiano, o centro da cidade, o subúrbio, no caráter humilde e bem comportado do jovem Lázaro (cujo nome é significativo). Sua mudança lenta e terrível, assim como foi a transformação moral da sociedade carioca. Há no livro um velado questionamento da luta do Bem contra o Mal, onde o “prestígio” do Mal vence.
O principal personagem, porém, é a sociedade carioca, a classe média pobre do Rio de Janeiro, a rua, a decadência das ruas, a vida, a corrupção do meio urbano. O romance é pessimista. Descreve com sutileza a loucura das grandes cidades. Abre a vida sem sentido, o aviltamento da moral brasileira, não só dos políticos ou da classe dominante, mas da sociedade como um todo, e principalmente a perda dos valores morais da classe média, o desvalorizar generalizado da vida privada, a sua favelização. O que está em jogo não é só vida pública, mas a contaminação do familiar, pois o mundo somos nós. O mestre Assis Brasil desse modo se faz herdeiro do romance machadiano.
TEATRO AMAZONAS, 4
A INAUGURAÇÃO
Rogel Samuel
No dia 31 de dezembro de 1896 se inaugurou o Teatro Amazonas, com “La Gioconda”, de Amilcare Ponchielli, sob a regência do maestro brasileiro Joaquim de Carvalho Franco, que foi diretor da Academia Amazonense de Belas Artes. Ele nasceu em Campinas, em 1858/59 e morreu em Manaus em 1927, onde se estabeleceu. Está enterrado no cemitério de São João Batista.
“La Gioconda” era uma novidade em 1896, e sua estréia fora em 1876 com grande sucesso. Foi a única das composições de Ponchielli (1834-1886) a ter sucesso e a manter-se no repertório dos teatros até hoje. Estreou no Teatro alla Scala de Milão, em 08 de abril de 1876 e Ponchielli revisou a obra pelo menos três vezes até o final da vida.
“La Gioconda” está na transição entre o romantismo e o realismo, reunindo elementos das duas escolas, no estilo da “grand-opera” francesa, carregada de melodrama, a ambientação exótica e um balé no meio do espetáculo – no caso a conhecida “Dança das Horas”, imortalizada por Walt Disney. A ópera revela grandiosidade, cenários luxuosos, efeitos de cena, como o incêndio do segundo ato, grandes número de coro, orquestração densa. Exige um elenco de 12 cantores, seis dos quais podem ser considerados principais, com pelo menos uma grande ária para cada um deles.
“La Gioconda” é precursora da escola realista da ópera italiana, com o vilão Barnaba, mais teatral e declamado do que cantado, e a violenta cena final, quando a protagonista comete suicídio num ato de extremo desespero.
O libreto é de Arrigo Boito, um dos artistas que fizeram a renovação do gênero. Boito não acreditou no sucesso da ópera, e preferiu assinar com um anagrama, Tobia Gorrio.
O soprano que interpreta Gioconda tem as partes mais difíceis do espetáculo, cheio de recursos emotivos, alternando sentimentos de ternura, amor, ódio e desespero. O soprano canta exaustivamente nos três primeiros atos, antes de enfrentar no fim o mais extremo esforço cênico e vocal, quando está no palácio em ruínas e prefere suicidar-se a ser morta.
É uma ópera cara e difícil.
A Gioconda era Líbia Drog, soprano dramática. Ela era uma italiana belíssima, famosa na Itália, na Espanha e em São Petesburgo. Ficou famosa porque no Metropólitan Opera House, em novembro de 1894, na ópera Guillermo Tell, esqueceu o texto da ária de Matilde –Selva opaca- pondo em perigo toda a função. Mas em Manaus teve uma de suas melhores atuações.
A multidão que assistia do lado de fora a entrada dos convidados à inauguração viu chegar o primeiro, Raul de Azevedo e sua esposa, Sara. O casal ficou a passear nos jardins do teatro antes de entrar. Raul aproveitou para fumar.
A seguir apareceram Afonso de Carvalho, a esposa e alguns amigos. Era um grupo animado. Entraram logo.
Logo veio Joaquim Cardoso Ramalho Junior, com o filho (a esposa adoentada não veio).
Quando apareceu Erico de Aguiar Picanço todas as pessoas que assistiam a entrada exclamaram um “oh!” de surpresa e admiração. Esmeralda Picanço portava as suas famosas esmeraldas: era um colar e brincos de esmeraldas e diamantes famosos na alta sociedade manauara, realçados pelo belo pescoço e o vestido de seda preta de sua dona. O vestido não tinha nenhum bordado nem enfeite.
E assim foram chegando os convidados, que a elite do Norte do Brasil.
Um dos últimos a chegar foi o Governado Fileto Pires Ferreira, com a esposa. E o último o ex governador Eduardo Gonçalves Ribeiro.
Eduardo Ribeiro como sempre vinha acompanhado por dois soldados. Entrou rapidamente, atravessou o hall sem cumprimentar as pessoas que encontrava no caminho, subiu as escadarias com velocidade e sumiu no camarote simples, ao lado daquele do governador. Os dois soldados ficaram de guarda na porta.
O Teatro ainda não estava ainda totalmente pronto, mas no “Salão Nobre”, em taças de cristal se servia o champanha La Grand Dame Veuve Clicquo e se conspirava. Conspirava-se contra o Governador Fileto Pires Ferreira, que já estava no camarote do Governo, e contra Eduardo Ribeiro, que se escondia na penumbra. Em sussurros no pé do ouvido algumas figuras diziam: “- Fileto vai viajar para Paris...”
- Agora que Fileto e o negro estão rompidos é hora de agir.
No início do espetáculo, o Governador Fileto Pires Ferreira falou. Inaugurou o Teatro. Seu discurso foi recebido friamente pela elite que já conspirava contra ele. E embora tivesse de relações rompidas com o ex-governador, anunciou:
- Temos a satisfação de ver entre nós o grande realizador da obra, o construtor deste imponente Teatro, o Governador Eduardo Ribeiro.
Neste momento irrompeu uma grande vaia, vinda de todos os lados. E no meio da “Dança das horas” ouviu-se alguém gritar:
- É preciso eliminar o negro!
(Risos).
Eduardo Ribeiro nunca mais voltou àquele teatro.
TEATRO AMAZONAS, 3
JOSÉ PARANAGUÁ - 1882
Rogel Samuel
O Presidente da Província José Paranaguá andava de um lado para outro, nervoso, com aqueles papéis e um leque nas mãos. Era um homem inquieto, nervoso, irritadiço, meio gago. Naquele momento tinha o projeto da construção do teatro de alvenaria nas mãos.
Na sua frente, o deputado Fernandes Júnior o olhava com admiração e reverência. Paranaguá era de uma das famílias mais poderosas do país. O deputado aguardava, apoiado na mesa. Parecia clamo, sorridente, gentil, servil, e esperava que Paranaguá não tivesse um ataque de nervos, na sua frente.
No forte calor da tarde, o governador suado agitava os papéis, o leque, levantando os braços no ar.
- Você tem razão, meu caro, disse Paranaguá, ainda andando. “Você tem razão”. Ele tinha o hábito de repetir a mesma frase duas vezes e gostava de falar andando. “Peripatéticamente”, dizia ele.
- Mas... – disse ele.
E não concluiu.
Apertou a mão do deputado e o conduziu, empurrando-o, até a porta.
- Eu o manterei informado, concluiu ele, conduzindo o outro pelo braço, dando-lhe amistosas tapinhas nas costas, enquanto punha Fernandes Junior gentilmente para fora.
José Paranaguá era um homem ilustre, e poderoso em todo o império.
- Mas o quê, Excelência? – perguntou o deputado, já com o corpo todo fora do gabinete.
- O seu projeto é muito modesto... muito modesto!
E voltando a abrir a porta do gabinete gritou:
- Eu o manterei informado. Eu o manterei informado!
Logo que o deputado saiu, entraram João Antony e Leovegildo Coelho. O governador os fez sentar e passou-lhes às mãos o projeto de construção do Teatro Amazonas.
O Teatro Amazonas estava ali, posto em papel, nascendo para ser uma casa de diversões de gente rica. Havia uma sociedade recentemente enriquecida que necessitava canalizar suas energias em festas, reuniões, diversão.
Logo após, em junho de 1882, quando o gigantesco teatro ainda era um sonho, José Paranaguá sancionou a lei n◦ 567 de 10 de maio de 1882 que despendia 10 contos de réis (uma fortuna!) com o contrato de uma companhia dramática.
Mas ainda não havia teatro.
José Lustosa da Cunha Paranaguá era filho do Marquês de Paranaguá, Presidente do Conselho de Ministros do Brasil. Foi Presidente da Província do Amazonas por dois anos.
Chegou em Manaus no dia 17 de março de 1882. No dia 28 de maio do mesmo ano foi explorar a região de Itacoatiara, acompanhado por Thaumaturgo de Azevedo e João Antony.
Thaumaturgo de Azevedo estudou na Escola Militar de realengo, no Rio, e na Faculdade do Recife. Militar engenheiro e advogado, chegou a general e a governador. Teve vida política agitadíssima, cheia de altos e baixos.
João Antony era um engenheiro amazonense de ilustre família. Foi político, desenvolveu uma carreira brilhante e honesta. Era pai do poeta Américo Antony.
Em 1882 a comitiva de José Paranaguá saltou em Amatari à procura do cemitério dos índios Miracauuêra. Em 12 de julho subiu o Rio Negro. Explorou o rio Cuieires à procura dos índios Arauquis, dizimados em 1669 pelo Capitão Favela.
Em 12 de setembro explorou o Baixo Amazonas, acompanhado por comitiva da qual fazia parte José Veríssimo.
Em novembro explorou o Purus.
O governador era um explorador. Detestava burocracia.
Foi na administração dele, José Paranaguá, que se começou a construir o suntuoso Teatro Amazonas.
A lei n◦ 593, de 29 de maio de 1882, sancionada por ele, chamava concorrentes para a execução da planta e dotava 30 contos de réis para o início das obras, não mais orçadas em 60, nem em 120, mas em 250 contos de réis.
Aquilo ficou esquecido durante o resto do ano.
No ano seguinte, numa tarde de março de 1883, estava reunida a comissão administrativa para a construção do teatro numa sala do segundo andar do prédio da prefeitura. A comissão, nomeada por Paranaguá, era constituída por Leovegildo Coelho, João Antony e Charles Brisbin.
Sentado na cabeceira da mesa estava o presidente, Leovegildo, com a xícara de café na mão.
- Há dois orçamentos para examinar, começou ele.
Leovegildo Coelho era um tipo grande, baiano forte, aparência militar. Era engenheiro. Nasceu pobre, foi criado por uma família adotiva e nunca conseguiu saber o nome de seus pais. Estudou em Salvador, depois foi para o Rio de Janeiro, para a Escola Militar. Foi Alferes, serviu no Amazonas e incorporado à “expedição científica”, sob a chefia de Gonçalves Dias, que morou na rua Barroso onde hoje existe o prédio da Biblioteca Pública. Gonçalves Dias depois passou a inspetor escolar e Leovegildo Coelho indicado para verificar o canal do Rio Negro do ponto de vista de sua navegação e fazer sua cartografia.
Leovegildo Coelho era mulato e foi um dos auxiliares do governador negro Eduardo Ribeiro na construção de Manaus. Foi delegado de polícia, deputado, senador e um dos signatários da Constituição Brasileira de 1891. Participou do governo de Floriano Peixoto, de quem era confidente e conselheiro. Deixou um alentado diário íntimo, ainda inédito e nunca publicado, em três volumes, com informações secretas da vida da República.
- Há dois orçamentos, disse Coelho. Um de Celeste Saccardi, de 249 contos; outro do Gabinete Português de Engenharia de Lisboa, de 500 contos.
João Antony ouvia em silêncio, o lápis rodopiando na mão. A seu lado estava o gordo Charles Brisbin, sofisticado, perfumado, com um polpudo lenço na lapela, cofiando o bigode grisalho.
Eles tinham de decidir da planta e orçamento da construção do teatro.
- Acho o projeto Saccardi o melhor e mais barato, disse Coelho, estendendo o pescoço com um puxão.
João Antony pôs-se a examinar o projeto Saccardi.
Depois de algum tempo, disse:
- Faltam fachadas laterais, - falou, dirigindo-se para Coelho.
Brisbin pôs o pincenê de ouro e se aproximou, e os dois passaram a examinar aquelas folhas.
- Sim, falta também a fachada posterior, disse Brisbin.
- Sim, respondeu Antony.
Leovegildo Coelho aproximou-se de onde estavam os dois, e começou a balançar a cabeça, concordando.
- Também não vejo no orçamento o emboço, o reboco e a pintura do edifício.
Examinaram os três.
- Falta o soalho e forro da platéia...
- E o ladrilho da entrada e do saguão...
- O preço da mão de obra da cúpula...
Sucessivamente os defeitos Saccardi foram aparecendo:
- O preço do ferro não é esse, está muito baixo, disse Brisbin, que era dono de uma construtora em Lisboa.
- O da alvenaria também, acrescentou Coelho.
Depois de um tempo, disse Antony:
- Mas como apoiar este projeto português, que custa o dobro?
- Quanto custa?
- Quinhentos contos.
No dia seguinte foram os três ao gabinete do Presidente da Província José Paranaguá.
Depois de ouvir a argumentação, disse o Governador:
- Como não, como não! – exclamou efusivo José Paranaguá, batendo leque na palma da mão e assobiando uma polca. Vamos aproveitar as condições prósperas da província, não vamos adiar a obra, é uma necessidade desta capital.
E depois de rodopiar pelo gabinete:
- Precisamos de um teatro. Precisamos de um teatro! – e assobiou a polca com mais força.
E logo andando de um lado para outro, como sempre fazia, disse em tom de discurso solene:
- Vamos aceitar esta planta portuguesa, vamos aceitar, vou tocar as obras vou tocar. Pagarei um conto de réis pela planta.
E depois de mais uma caminhada de um lado para o outro, agitando os braços, abanando o leque e assobiando a polca:
- Vamos agora escolher, imediatamente, o lugar onde construiremos o nosso teatro! Vamos escolher! Agora! Vamos escolher!
E começaram a discutir entre si e depois escolheram. Mas escolheram mal, como se verá.
Foi assim que obras começaram, mas não em 60, nem em 120, nem em 250, mas em 500 contos de réis.
E depois subiram a milhões.
TEATRO AMAZONAS, 2
NATAL DE 1900
Rogel Samuel
Noite escura.
Jovem para seus 55 anos, Francisco Ferreira de Lima Silva naquela escura noite vinha subindo a escadaria do imponente palacete onde morava Waldemar Scholz e que muitos anos depois foi transformado no “Palácio Rio Negro”, sede do Estado do Amazonas, no governo de Alcântara Bacellar.
Lima Silva envergava terno de linho bege, chapéu de palhinha, gravata borboleta de seda azul-claro, sapatos de verniz, pretos. Elegante.
Vinha pensando, distraído, imaginando no que o velho Waldemar Scholz lhe tinha reservado, pois o riquíssimo Scholz era generoso, e na noite de Natal dava presentes caros. Trazia para o dono da casa um livro de contos, o “Diferentes”, de 1895, de Quintino Cunha, que ainda morava em Manaus e depois publicaria, em Paris, o seu famoso livro de versos “Pelo Solimões”, em 1907, pela Livraria J. Aillaud. Quintino Cunha tornou-se amigo de Aillaud e de outros intelectuais franceses, como Faguet, da Academia Francesa
Para ambos não passarem o Natal só, Scholz convidara o amigo para a ceia. Era um grupo seleto: Lima Silva, que estava novamente separado da mulher; o maestro Adelelmo do Nascimento, mulato, cultíssimo, violinista, estava em Paris; Antonio Bittencourt, pai do professor Agnello Bittencourt, que não pudera vir; e poucos outros.
Lima Silva era jornalista e fez carreira política em Manaus. Escreveu “Efemérides do Amazonas”, em 1884, gigantesca obra que permanece inédita e talvez se tenha perdido. Escreveu também um livro sobre os movimentos revolucionários. Foi deputado estadual, federal e participou do movimento de deposição de Gregório Thaumaturgo de Azevedo, Governador do Amazonas, quando Lima Silva saiu ferido. Homem de oposição, de luta, da esquerda da época. Thaumaturgo foi deposto, Guilherme Moreira assumiu, pois era o primeiro vice, e em poucos dias entregou o governo para Eduardo Ribeiro, o segundo vice.
A paixão dominava Lima Silva. Apesar de casado, pai de duas filhas, o amor por Marinalva o enlouquecia, cabocla pequena, leviana e sensual. Silva não sabia o que fazer. Marinalva o traía. “Até com os trapixeiros!”, pensava Silva, com ódio.
Ao chegar à porta do palacete Scholz parou e esperou que lhe abrissem.
Um empregado, caboclo forte, meio índio, veio abrir:
- Pode entrar, disse o homem.
Na noite anterior, Silva estivera com Marinalva. Junto dela perdoava tudo. Era capaz de beijar seus pés, que aliás eram bonitos. Marinalva tinha os cabelos negros lisos, a pele morena bronzeada, seios pequenos. Olhos de índia, de onça, cor que variava pelo amarelo-ouro-esverdeado, cor indefinível, falsa, perigosa. Marinalva, ela dizia que se chamava assim. Mas como tudo nela era possível, ele não sabia se era verdade. Ela dizia que tinha vindo do Amatari. Não tinha documento. Quando Silva mandava fazer os documentos dela, Marinalva os perdia. Silva a cobria de presentes, roupas e jóias, dizia que queria casar-se com ela, abandonar a esposa, e de fato seria capaz de tudo para ficar com ela. Ela se ria, jurava que sim, e no dia seguinte sumia na orgia da noite, voltava bêbada e louca na manhã seguinte para aquela casa que Silva tinha alugado para ela, na Cachoeirinha. Silva se desesperava, se odiava, jurava que ia abandoná-la, deixava de vê-la, mas quando Marinalva estava sem dinheiro aparecia no Foro, ou na Câmara, ou mesmo na porta da casa dele. Fazia escândalo. Silva segurava o seu braço e a tirava dali, e tudo acabava na cama, ela gemendo por cima dele, ele extasiado de prazer e amor. Não, não tinha cura. Por duas vezes separou-se da esposa, D. Cacilda, mulher de boa família, rica, que tinha voltado para a casa dos pais por causa da Marinalva.
Lima Silva foi entrando no hall de entrada. Deixou o chapéu. Viu ali a famosa escadaria de madeira encaixada, famosa em todo o mundo porque não tem coluna e se sustenta até hoje milagrosamente. Foi para a sala contígua, onde Scholz costumava receber os visitantes e onde, anos depois, se faziam as reuniões de governo.
A decoração era impressionante. Os quadros, os móveis, tudo revelava luxo e bom gosto.
Da janela se via a vivenda de pássaros amazônicos, de que Scholz tanto gostava. Eram pássaros raros, que ele colecionava, junto com as orquídeas. Um dia, como ele se aproximou demais, uma garça do viveiro perfurou-lhe o olho esquerdo e o cegou.
Quando Scholz apareceu, viu que Lima Silva parecia estar à vontade, contemplando a noite. Era uma escura noite de Natal de 1900, pouco tempo depois da morte do Governador Eduardo Ribeiro, em circunstância misteriosa. Eduardo Ribeiro foi o grande construtor do Teatro Amazonas. Foi o construtor de Manaus. Um dos maiores estadistas do Brasil.
Scholz apareceu de roupa leve e branca e pince-nez de ouro. Sentou-se solene em sua frente e disparou, à queima roupa:
- Lima Silva, quem matou Eduardo Ribeiro?
Quando saiu, já de madrugada, do palacete Scholz, Lima Silva foi para casa de Marinalva.
Ela não estava.
Ordenou ao táxi que o levasse à praça de São Sebastião.
Em frente ao Teatro Amazonas parou e saltou. A igreja já estava fechada e a praça vazia.
Quando o táxi partiu, Lima Silva sentou-se na escadaria do Teatro e começou a chorar.
De longe, de bem longe, dos limites da fímbria do horizonte, apareceu um vento úmido e morno vindo da Floresta que passou como um fantasma, uivando nas alamedas do Teatro.
Caía uma chuva fina.
Chorando, Lima Silva foi caminhando, abandonado e só, em direção àquela passagem do aterro onde depois se pavimentou a avenida Eduardo Ribeiro.
Chorava a morte de Eduardo Ribeiro. Chorava a morte de tudo.
Poucos anos depois a economia do Amazonas entrou em decadência e ruína. Manaus quase foi transformada numa cidade fantasma. O manto negro de uma recessão a cobriu durante cinqüenta anos, povoando suas ruas uma legião de mendigos.
O Teatro Amazonas fechou as portas por meio século e durante algum tempo se transformou em depósito de borracha crua.
Todos os espelhos de cristal, os quadros, as estátuas, as cortinas de veludo, os lustres, os tapetes de linho, os jarros de porcelana, os móveis de luxo, as mesas e cadeiras móveis foram roubados.
A Floresta Amazônica ameaçava, na noite escura.
TEATRO AMAZONAS, 1
TEATRO AMAZONAS
Rogel Samuel
1. O TEATRO VAZIO.
Elegante como sempre, na faiscação de seu anel de brilhante, o deputado Fernandes Júnior chegou cedo ao prédio da Assembléia Legislativa Provincial, que ainda estava fechado, pelo que ele teve de entrar pela porta lateral, reservada aos faxineiros, secretários, auxiliares administrativos.
Era uma bela manhã de maio de 1881.
Ele trazia consigo o rascunho do texto que mudaria a história do Amazonas. O deputado prometera à sua mulher, D. Auxiliadora de Nazaré, que naquele mesmo dia levantaria o pleito de se construir um teatro de alvenaria na cidade de Manaus.
Aquela cidade só dispunha de três espaços para espetáculos: o “El Dorado”, o “Éden-teatro” (um barracão de madeira) e uma sala no Edifício da Beneficência Portuguesa, onde se representou “São Benedito”, uma peça popular.
O deputado logo que chegou ao gabinete começou a revisar a redação do texto de seu projeto.
Na noite anterior, no Éden, a exigente D. Auxiliadora assistira “Ghigi”, de Gomes de Amorim. Anos atrás, a “Justiça”, de Camilo Castelo Branco, em 1869.
A vida em Manaus era exuberante, elegante e rica, e bem alegre, já naquela época. Era o início do apogeu de uma sociedade que enriquecia rapidamente, com a extração da borracha. Fernandes Junior e sua mulher, elegantes, viviam em festas, piqueniques e espetáculos teatrais. Os salões de sua casa se abriam todas as semanas, nas noites das sextas-feiras, para receber amigos. E nos domingos, numa grande mesa sob o caramanchão do jardim, era oferecida uma tartarugada, ou uma peixada, almoço festivo regado a vinho português, sucos de diversas frutas, complementado com várias compotas de doces amazônicos e banhos nas águas limpas do igarapé que passava atrás da casa.
Aquilo ia até ao anoitecer: Lima Bacuri, Alarico José Furtado (presidente da província do Amazonas), Emílio Moreira, João Coelho e outros freqüentavam aquela mesa, acompanhados pelas esposas, filhos, babás e empregados, congestionando a rua da Conceição, onde morava o alegre deputado. Entre os convidados, o rico comerciante Manuel de Oliveira Palmeira de Menezes, chefe da casa Menezes, Gomes & Cia, o primeiro contratante da obra de construção do teatro, que depois passou para Alexandre Dantas que passou para Rossi & Irmãos da Itália, todos impossibilitados de realizar a obra pelos 493 contos contratados.
Fernandes Júnior era um dândi, simpático, educado, conhecia Paris, tinha certo refinamento, elegância e alguma cultura, alguma leitura, principalmente de autores portugueses.
Seu projeto era bem modesto, apenas 60 contos de réis, para a construção de um teatro. Aprovaram em 120 contos. Mas as obras pararam. Quase dez anos. E chegaram a milhões de contos de réis. Foi uma obra faraônica, uma das maiores e mais dispendiosa obra da República, até hoje.
O deputado Antonio José Fernandes Junior faleceu no Maranhão no dia 24 de abril de 1894, treze anos depois de ver o seu desejo de construção do Teatro realizado, ainda que com grandes, gigantescas modificações. Chegou a ver o Teatro Amazonas “erguido e em pleno apogeu”, como escreveu sobre ele o grande historiador Mário Ypiranga Monteiro.
Um século depois, estando Paravotti no Brasil em 1995, fez questão de ir a Manaus apenas para conhecer o Teatro, que foi aberto só para ele. E cantou para o Teatro Vazio. Em 1996, foi a vez de José Carreras.
O Teatro estava entretanto lotado.
Em 29 de março de 1990, escreveu Paulo Francis: “- Rio de Janeiro - Leio no suplemento do "Sunday Telegraph" que alguém chamado Mário Ypiranga Monteiro conta (em três volumes...) a história da decadência do Teatro Amazonas, com "grande escrupulosidade", nota o autor do artigo, Nicholas Shakespeare, que é o editor de livros do jornal e convidou Ivan Lessa para resenhar um livro chamado "Samba", de uma gringa, que esta semana, por sinal, está escrevendo sobre a derrota dos sandinistas na "New York". Esqueci o nome da bicha, mas não tem maior importância. Depois eu conto. Pelo nome, é morena como você...
“Monteiro, descrito por Shakespeare como professor (hum... lá vem "outrossim") de literatura, pequeno e de pernas arqueadas, diz ter começado a obra em 1932, e que sua versão é a verdadeira e que a Enciclopédia Britânica errou. Bem, se ele mandar o livro à Folha para mim, prometo ler e resenhar.
“Estreei em teatro no Teatro Amazonas, em 1951 ou 1952, fazendo o frei Lourenço, em "Romeu e Julieta", daquele outro Shakespeare, em tradução em verso de Onestaldo Pennaforte, que, assim, de lembrança, de orelhada, me pareceu bastante boa. Nos ensaios, minha voz não chegava ao fundo do minúsculo teatro Duse, em Santa Tereza, Rio, de propriedade de Paschoal Carlos Magno, crítico e incentivador do teatro brasileiro, que mantinha o Teatro do Estudante. Quando entrei em cena no Teatro Amazonas ouvi uma voz ribombar: "não tarda o sol". É a primeira fala de Frei Lourenço e a voz era a minha que, misteriosamente, soltou-se para sempre. O teatro é belíssimo, apesar de esculhambado como tudo no Brasil. Mas sempre quis saber dessa aventura amazônica de Ford e de outros tipos. Me diverti lá. Mas cá entre nós, o calor é... amazônico. Só me lembro de coisa semelhante na minha breve passagem por este país "gângster", o Iraque, em que um inglês, ao nos despedirmos no hall do hotel, me disse "você vai acordar amanhã às 5 da manhã". Não dei importância, até que acordei às 5 da manhã, porque lá o sol nasce a essa hora e faz 50 graus à sombra. Estive em Manaus, bebi todos os sucos, passeei pelo rio Amazonas, e, Waaal, trabalhamos em várias peças, "Espectros", de Ibsen, "Hécuba", de Eurípides etc. Um massacre, ocasionalmente aliviado pelo talento individual de uns e outros.
“Esta é uma das histórias mais engraçadas da minha vida. Um amigo, Marcelo Aguinaga, e eu estávamos com problemas em casa e resolvemos atender a um anúncio no "Correio da Manhã", pedindo candidatos a atores para uma viagem ao Norte e Nordeste. Tal boca livre, porque jamais pagando, nos atraiu ao já referido teatro Duse, em Santa Teresa, parte da casa de Paschoal Carlos Magno. Isso faz quase 40 anos. Esperávamos, Marcelo e eu, segurar lanças como soldados em algumas produções, em suma, trabalhar como extras, valendo-se da nossa altura incomum no Brasil, e nada mais. Saímos da casa de Paschoal com cinco papéis, cada um, em produções diversas. Fiz bons amigos nessa viagem de quem nunca mais ouvi falar, mas lembro deles com saudades.”
Rogel Samuel
1. O TEATRO VAZIO.
Elegante como sempre, na faiscação de seu anel de brilhante, o deputado Fernandes Júnior chegou cedo ao prédio da Assembléia Legislativa Provincial, que ainda estava fechado, pelo que ele teve de entrar pela porta lateral, reservada aos faxineiros, secretários, auxiliares administrativos.
Era uma bela manhã de maio de 1881.
Ele trazia consigo o rascunho do texto que mudaria a história do Amazonas. O deputado prometera à sua mulher, D. Auxiliadora de Nazaré, que naquele mesmo dia levantaria o pleito de se construir um teatro de alvenaria na cidade de Manaus.
Aquela cidade só dispunha de três espaços para espetáculos: o “El Dorado”, o “Éden-teatro” (um barracão de madeira) e uma sala no Edifício da Beneficência Portuguesa, onde se representou “São Benedito”, uma peça popular.
O deputado logo que chegou ao gabinete começou a revisar a redação do texto de seu projeto.
Na noite anterior, no Éden, a exigente D. Auxiliadora assistira “Ghigi”, de Gomes de Amorim. Anos atrás, a “Justiça”, de Camilo Castelo Branco, em 1869.
A vida em Manaus era exuberante, elegante e rica, e bem alegre, já naquela época. Era o início do apogeu de uma sociedade que enriquecia rapidamente, com a extração da borracha. Fernandes Junior e sua mulher, elegantes, viviam em festas, piqueniques e espetáculos teatrais. Os salões de sua casa se abriam todas as semanas, nas noites das sextas-feiras, para receber amigos. E nos domingos, numa grande mesa sob o caramanchão do jardim, era oferecida uma tartarugada, ou uma peixada, almoço festivo regado a vinho português, sucos de diversas frutas, complementado com várias compotas de doces amazônicos e banhos nas águas limpas do igarapé que passava atrás da casa.
Aquilo ia até ao anoitecer: Lima Bacuri, Alarico José Furtado (presidente da província do Amazonas), Emílio Moreira, João Coelho e outros freqüentavam aquela mesa, acompanhados pelas esposas, filhos, babás e empregados, congestionando a rua da Conceição, onde morava o alegre deputado. Entre os convidados, o rico comerciante Manuel de Oliveira Palmeira de Menezes, chefe da casa Menezes, Gomes & Cia, o primeiro contratante da obra de construção do teatro, que depois passou para Alexandre Dantas que passou para Rossi & Irmãos da Itália, todos impossibilitados de realizar a obra pelos 493 contos contratados.
Fernandes Júnior era um dândi, simpático, educado, conhecia Paris, tinha certo refinamento, elegância e alguma cultura, alguma leitura, principalmente de autores portugueses.
Seu projeto era bem modesto, apenas 60 contos de réis, para a construção de um teatro. Aprovaram em 120 contos. Mas as obras pararam. Quase dez anos. E chegaram a milhões de contos de réis. Foi uma obra faraônica, uma das maiores e mais dispendiosa obra da República, até hoje.
O deputado Antonio José Fernandes Junior faleceu no Maranhão no dia 24 de abril de 1894, treze anos depois de ver o seu desejo de construção do Teatro realizado, ainda que com grandes, gigantescas modificações. Chegou a ver o Teatro Amazonas “erguido e em pleno apogeu”, como escreveu sobre ele o grande historiador Mário Ypiranga Monteiro.
Um século depois, estando Paravotti no Brasil em 1995, fez questão de ir a Manaus apenas para conhecer o Teatro, que foi aberto só para ele. E cantou para o Teatro Vazio. Em 1996, foi a vez de José Carreras.
O Teatro estava entretanto lotado.
Em 29 de março de 1990, escreveu Paulo Francis: “- Rio de Janeiro - Leio no suplemento do "Sunday Telegraph" que alguém chamado Mário Ypiranga Monteiro conta (em três volumes...) a história da decadência do Teatro Amazonas, com "grande escrupulosidade", nota o autor do artigo, Nicholas Shakespeare, que é o editor de livros do jornal e convidou Ivan Lessa para resenhar um livro chamado "Samba", de uma gringa, que esta semana, por sinal, está escrevendo sobre a derrota dos sandinistas na "New York". Esqueci o nome da bicha, mas não tem maior importância. Depois eu conto. Pelo nome, é morena como você...
“Monteiro, descrito por Shakespeare como professor (hum... lá vem "outrossim") de literatura, pequeno e de pernas arqueadas, diz ter começado a obra em 1932, e que sua versão é a verdadeira e que a Enciclopédia Britânica errou. Bem, se ele mandar o livro à Folha para mim, prometo ler e resenhar.
“Estreei em teatro no Teatro Amazonas, em 1951 ou 1952, fazendo o frei Lourenço, em "Romeu e Julieta", daquele outro Shakespeare, em tradução em verso de Onestaldo Pennaforte, que, assim, de lembrança, de orelhada, me pareceu bastante boa. Nos ensaios, minha voz não chegava ao fundo do minúsculo teatro Duse, em Santa Tereza, Rio, de propriedade de Paschoal Carlos Magno, crítico e incentivador do teatro brasileiro, que mantinha o Teatro do Estudante. Quando entrei em cena no Teatro Amazonas ouvi uma voz ribombar: "não tarda o sol". É a primeira fala de Frei Lourenço e a voz era a minha que, misteriosamente, soltou-se para sempre. O teatro é belíssimo, apesar de esculhambado como tudo no Brasil. Mas sempre quis saber dessa aventura amazônica de Ford e de outros tipos. Me diverti lá. Mas cá entre nós, o calor é... amazônico. Só me lembro de coisa semelhante na minha breve passagem por este país "gângster", o Iraque, em que um inglês, ao nos despedirmos no hall do hotel, me disse "você vai acordar amanhã às 5 da manhã". Não dei importância, até que acordei às 5 da manhã, porque lá o sol nasce a essa hora e faz 50 graus à sombra. Estive em Manaus, bebi todos os sucos, passeei pelo rio Amazonas, e, Waaal, trabalhamos em várias peças, "Espectros", de Ibsen, "Hécuba", de Eurípides etc. Um massacre, ocasionalmente aliviado pelo talento individual de uns e outros.
“Esta é uma das histórias mais engraçadas da minha vida. Um amigo, Marcelo Aguinaga, e eu estávamos com problemas em casa e resolvemos atender a um anúncio no "Correio da Manhã", pedindo candidatos a atores para uma viagem ao Norte e Nordeste. Tal boca livre, porque jamais pagando, nos atraiu ao já referido teatro Duse, em Santa Teresa, parte da casa de Paschoal Carlos Magno. Isso faz quase 40 anos. Esperávamos, Marcelo e eu, segurar lanças como soldados em algumas produções, em suma, trabalhar como extras, valendo-se da nossa altura incomum no Brasil, e nada mais. Saímos da casa de Paschoal com cinco papéis, cada um, em produções diversas. Fiz bons amigos nessa viagem de quem nunca mais ouvi falar, mas lembro deles com saudades.”
quinta-feira, 10 de julho de 2008
Bacellar recebe pensão
Rogel Samuel
“O poeta Luiz Bacelar terá uma pensão do governo do Estado. A matéria foi votada pelos deputados durante a sessão desta quarta-feira” disse o Blog do Holanda. Ele é o maior poeta do Amazonas. Fico muito feliz, ele não recebe nenhuma aposentadoria, mora miseravelmente num quarto alugado no centro de Manaus, tem 80 anos e é um gênio.
O ex-governador Amazonino é seu admirador. Um dia fomos, Bacellar e eu, a um concerto no Teatro Amazonas. Na saída eu disse, curioso: “Vamos esperar a saída do Governador” – “Eu lá quero saber dessa gente!”, respondeu ele, de má vontade. Mas esperamos do outro lado da rua. Na saída, Amazonino o viu, atravessou a rua, veio até ele e estendeu-lhe a mão: “Mestre Bacellar!” Eu disse: “Não foi você quem cumprimentou o Governador, mas o contrário!”. Ele resmungou qualquer coisa, mal humorado como sempre.
Bacellar (ele faz questão dos “ll”) é contraparente de Claudio Santoro. Nasceu em Manaus, 4 de setembro de 1928. Foi jornalista, portuário, comerciário, professor de Literatura e História da Música. Participou da criação do Clube da Madrugada (1954), cujo nome sugeriu. “Frauta de Barro” ganhou, em 1959, o Prêmio Olavo Bilac da Prefeitura do antigo Distrito Federal, de cuja comissão julgadora faziam parte Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade. Seu segundo livro, “Sol de Feira”, é considerado por Benedito Nunes um dos mais importantes da literatura brasileira na região Norte. Membro da Academia Amazonense de Letras. Escreveu “Quatro movimentos” (Manaus, 1975), “O Crisântemo de cem pétalas” (Manaus, 1985) e “Satori” (Manaus, 1999, com meu prefácio). Também escrevi um prefácio para a quarta edição de “Frauta de Barro”.
Leia o “Soneto da Caixa de Fósforos”:
Minha cápsula de incêndios,
meu cofre de labaredas!
Meu pelotão de alva farda
e altas barretinas pretas:
se só num níquel quem vende-os
lhes aquilata o valor,
teus granadeiros da guarda
não se inflamam de pudor!
Fiat Lux do meu verso,
símbolo vivo do amor:
qualquer fricção te incendeia,
te arranca estrelas de dor,
minha gaveta de chamas
com sementes de calor.
("Frauta de Barro", 1963)
quarta-feira, 9 de julho de 2008
Recife
Rogel Samuel
Notícias de Recife por mensagens de email. Minha amiga se encontrou com alguém, etc. É uma amizade recente. O Recife é uma vaga lembrança na memória. Por trás da casa estava a praia velha, onde uns poucos barcos dormiam e uns muros caiados me falavam de João Cabral. Depois de uma reta, a subida bem suave para chegar a Olinda, de onde o mar ao luar transparecia como uma toalha de luminosa seda branca. Naquela noite, alguns bares abertos e um vento que vinha do mar batia nos sinos da igreja e pediam perdão. O mundo se apagava no fim da rua e novos cânticos subiam até nós que comemorávamos o fim de um grande enredo que terminou no final do Leblon. Entre o alto de Olinda e o final do Leblon há uma ponte invisível que registra uma história secreta que vai terminar em Frankfurt, na Alemanha. Ainda contarei essa novela e dez capítulos e dez soluços perdidos no tempo em que se ouviam os sinos assobiar no limo do veludo que vinha do oceano distante, no vento que nos vinha salgar, nos ventos que ouviram nossos últimos suspiros e nossas últimas falas de um amor abafado. O Recife assistiu a tudo aquilo. O Recife de pedra suportou tudo. Pode ser que tenhamos vivido aqueles dias em vão, que não era preciso tanto sofrimento. Mas a angústia acumplicia o amante como sua sombra. Minha nova amiga de Recife nem sabe em que solo sagrado está pisando hoje, quando lá deixamos o rastro quase sangrento de nós mesmos.
Os pássaros imaginários
Rogel Samuel
Jorge de Lima, em “Invenção de Orfeu”, produziu um poema certamente eterno, que é o “Canto 1, 26”, que leio sempre com o mesmo antigo prazer:
“Qualquer que seja a chuva desses campos
Devemos esperar pelos estios;
E ao chegar os serões e os fiéis enganos
Amar os sonhos que restarem frios.
Porém senão surgir o que sonhamos
E os ninhos imortais forem vazios,
Há de haver pelo menos por ali
Os pássaros que nós idealizamos.
Feliz de quem com cânticos se esconde
E julga tê-los em seus próprios bicos,
E ao bico alheio em cânticos responde.
E vendo em torno as mais terríveis cenas,
Possa mirar-se as asas depenadas
E contentar-se com as secretas penas”.
Qual o sentido desse estranho início: “Qualquer que seja a chuva desses campos / Devemos esperar pelos estios?” – É esperar que a juventude passe, que os estios da solidão e da velhice apareçam, o poeta sonha a juventude que deve passar e suas possibilidades devem passar e na velhice é quando devemos amar os sonhos que ainda ficarem na memória, os sonhos verdadeiras lembranças e os sonhos inventados, os que nunca tivemos, ou seja, os amores tidos e desaparecidos, fracassados, e os outros, ou que nunca tivemos, e por isso nunca fracassaram, e se não surgirem da memória os grandes amores da juventude que não tivemos, devemos inventá-los, devemos criá-los, devemos vestir e fantasiar a nossa alma com esses sonhos do que poderia ter tido e sido e não foram ou tivemos, pois o amor sonhado, imaginado e mentido vai esconder e vestir o deserto da solidão das lembranças com as muitas flores de um paraíso inexistente que só vai existir na nossa imaginação, inventado de uma ficção poética, e nesses campos imaginados podemos descansar habilitar nossas lembranças de uma felicidade que não tivemos, que nunca conhecemos.
terça-feira, 8 de julho de 2008
O abismo do amar
Rogel Samuel
O belo e doloroso poema de Clarisse de Oliveira “Alceu” é um dos mais fortes poemas de amor da via dolorosa que é o amar, cheia de ficares na estrada, que segue, Via Dolorosa de uma cidade tão velha quanto Jerusalém, da Porta de Santo Estevão até a Igreja do Santo Sepulcro naquela parte ocidental da cidade velha de nossas almas, cuja tradição foi traçar por este caminho a nossa cruz, com suas nove estações da cruz, ou estrada de ferro em brasa, de barro de brasa, de brado, de infidelidades confirmadas e perenes, de abismos de lugares esquecidos do Bardo, do espaço infernal e mortal do já morto, do após-vida, do depois da morte, cheio dos sopros e vendavais daquelas vozes mentirosas e dos grandes gritos dos monstros que nos perseguem, a nós que ainda amamos, que amamos sem esperança, que amamos para perder, que abandonados amantes até mesmo do perdido:
“ALCEU
“Você ficou numa estrada vendo se adiantarem amores, confirmações de fidelidades perenes, e nessa estrada que corta quatro abismos, como um local esquecido do Bardo, o vento sopra levando essas vozes mentirosas enroladas pelos sopros de Monstros Irresponsáveis.
“Os ventos eram tão fortes, que eu, por mais bem intencionada que fosse, não conseguia permanecer perto de você, para, gritando o mais possível, lhe dar
esperanças que os ventos enrolavam, enrolavam...
“Os Monstros esqueceram da Vitória que conquistou ali, sozinho na Estrada e eu sendo arrastada pelos Ventos ainda não havia tido toda a visão da sua Grande Realidade Conquistada...
Clarisse de Oliveira,
http://clarissedeoliveira.blogspot.com/
segunda-feira, 7 de julho de 2008
Música do ar
Rogel Samuel
Armando Freitas Filho é um extraordinário poeta como se pode ler neste seu poema compacto, composto na metafísica das madeiras, mas nada daquilo que na orquestra se chama de som delicado, suave e bucólico: as madeiras compostas por Flautas, Clarinetas, Oboés e Fagotes, mas nem violinos, violas, violoncelos, contrabaixos, harpas, sopros, flautas, clarinetas, oboés, fagotes, ou seja, música, música de árvores, nada disso, mas o bater do machado bruto, áspero, cortador, pancada de estaca, ou bate-estaca, no crescimento da cidade de concreto em direção estelar:
AR
Música de árvores.
Não a das folhas e ramos.
Mas a outra, para percussão solo.
Madeira, raízes, cascas, nós, galhos.
Tudo que pede machado, corte, pancada.
O que é duro - áspero - bate, e estaca.
O que estala e cresce da terra contra as estrelas.
Armando Freitas Filho, “Cabeça de homem”, Editora Nova Fronteira, 1991
domingo, 6 de julho de 2008
A ceia dos imortais
Rogel Samuel
Contam que um dos fatos literários mais bizarros e hilariantes da literatura brasileira foi aquela eleição de um escritor para a Academia Brasileira de Letras, pois no dia da eleição é costume os outros acadêmicos irem à casa do eleito parabenizá-lo, e alguns até recebem os cumprimentos em casa de um amigo. Mas o apartamento onde morava o novo imortal era um quarto-e-sala num prédio proletário, sujo e de má-fama, a salinha logo cheia e os imortais se espremiam no corredor e davam o fora, pois os vizinhos de porta aberta faziam uma festa e gritos se ouviam pelo corredor do prédio e quando os imortais – ministros, Presidente da República, juristas, ricos empresários - chegavam à casa do novo acadêmico tinham de passar ao som daquela comemoração de uma festa e assim que os acadêmicos chegavam alguém dizia: “É por aqui, senhores!” e encaminhavam os convidados!
sexta-feira, 4 de julho de 2008
O policial
Rogel Samuel
Eles formavam um extravagante casal ou eram mesmo doidos e tudo o que um dizia o outro concordava e um dia ele disse para a esposa que ia deixar o em emprego no banco, no que ela imediatamente concordou, e ele saiu do emprego e vendeu a casa e o carro, comprou um jipe velho, e foram os dois acampar numa praia muito distante e muito deserta levando com eles o filho de três anos. Com o dinheiro apurado também puderam viver muitos anos e depois que o dinheiro acabou venderam o jipe e viveram outros tantos anos comendo somente arroz integral e legumes. Depois, sem mais dinheiro, passaram a vender artesanato na feira dominical e ainda hoje estão lá, vivos, felizes e saudáveis.
O filho, entretanto, cresceu, entrou no Exército e hoje é policial.
Incêndios ameaçam milhares de casas na Califórnia
Agência AFP
WASHINGTON - Mais de mil focos de incêndios ameaçam oito mil casas na Califórnia, nos Estados Unidos. Meio milhão de acres da área rural do Estado já foi devastada pelo fogo.
Um dos maiores focos atingiu cerca de 50 mil acres da floresta na região costeira conhecida como Big Sur, entre São Francisco e Los Angeles. Um bombeiro morreu.
Membros da Guarda Nacional da Califórnia foram chamados para ajudar no combate às chamas.
A estátua pensa
Rogel Samuel
O pensador de Gabriela Mistral, na tradução de Manuel Bandeira:
Apoiando na mão rugosa o queixo fino,
O Pensador reflete que é carne sem defesa:
Carne da cova, nua em face do destino,
Carne que odeia a morte e tremeu de beleza.
E tremeu de amor toda a primavera ardente,
E hoje, no outono, afoga-se em verdade e tristeza.
O "havemos de morrer" passa-lhe pela mente
Quando no bronze cai a noturna escureza.
E na angústia seus músculos se fendem sofredores.
Sua carne sulcada enche-se de terrores,
Fende-se, como a folha de outono, ao Senhor forte
Que o reclama nos bronzes. Não há árvore torcida
Pelo sol na planície, nem leão de anca ferida,
Crispados como este homem que medita na morte.
“O pensador de Rodin” começa com a mão rugosa que apóia o queixo fino daquele homem-estátua que pensa a morte, daquela estátua pensante que é de carne em bronze, carne-cadáver e morbígena, na morbidez de tudo que pode desaparecer, ou carne cova, infensa, nua sobre seu destino – o Pensador morituro – a filosofia amortalhada, entorpecido no seu cismar da morte que odeia e que ali está eternizada em bronze, ele que tremeu de beleza na juventude e hoje, velho e na verdade e na tristeza pensa destruição e ruína eternizada em arte. E a carne se encrespa e franze, se contrai e se crispa de espasmódico sofrimento, como nenhuma árvore morta o fez ao sol, como nenhum leão moribundo gemeu na contorção planície, da sofrida própria carne cheia de terrores, na aflição introspectiva do pensamento do fim.
quarta-feira, 2 de julho de 2008
Sobre a liberdade
Rogel Samuel
A Internet sempre me lembra o conceito de Fromm para a liberdade, “objetivo cobiçado para uns e para outros uma ameaça”. Como a web é um espaço livre, onde você vê, lê diz e ouve o que quer, muitos a temem. Há os que só podem viver na submissão (de uma religião, de uma lei, de uma autoridade, ou da polícia) para serem éticos. Em grego, “ethos” significa caráter, ou seja, modo de ser. Refere-se ao juízo do bem e do mal social. É uma ciência do relacionamento. As ditaduras odeiam a Internet. A China impunha uma fiscalização e controle rigoroso até nos hotéis. Recentemente decidiu criar uma nova internet, alegando que a estrutura atual da rede mundial de computadores não vai dar conta do número de usuários entrando na internet ao mesmo tempo, principalmente em países muito povoados, como a China, onde atualmente há mais de 120 milhões de internautas, com um potencial de crescimento do tamanho de sua população de mais de 1,2 bilhão.
Talvez seja uma desculpa. Talvez não.
Mas a rede mundial de computadores que hoje usamos nasceu no governo americano, no poderio militar americano. Era um projeto da década de 70, chamado Arpanet, que passou para o meio acadêmico, acabando no que a gente tem hoje, a internet comercial, democrática (com algumas exceções, como a da China), mesmo assim ligada ao governo americano e, claro, às empresas americanas. Até hoje, o ICANN, que é a entidade internacional que “controla” o endereçamento na internet, continua sob o “domínio” do Departamento de Comércio Americano que, jurando neutralidade, agregou representantes de todos os países que queiram participar, inclusive o Brasil.
Mas como escreveu o webjornalista Elis Monteiro, isto pode ser somente a ponta do iceberg de uma revolução que pode vir a explodir a qualquer momento.
Ou de uma guerra virtual.
O cântico do universo
Rogel Samuel
Os buracos negros cantam, dizem os astrônomos.
Eles são regiões do espaço com tanta densidade e força de atração gravitacional que sugam a luz ao redor, por isso só podem ser “vistos” com o que ocorre ao redor.
Acreditam os astrônomos que a maioria das galáxias, inclusive a nossa Via Láctea, contém esses buracos no seu centro. (Será que não seremos nós um dia sugados por seu centro? Não será isto o Inferno?).
Imagine a região central da galáxia Perseus:
- Há uma estranha sinfonia ali. Em tom menor. Um buraco negro pode estar ali, há bilhões de anos, entoando o seu misterioso canto em si bemol.
Sua freqüência é inaudível para os humanos, afirma Andrew Fabian, do Instituto de Astronomia de Cambridge, na Inglaterra.
Penso que o “buraco” funciona como uma imensa tuba, com a freqüência de cerca de 57 oitavas abaixo da nota dó, que fica no meio do teclado do piano.
Isto deve ter inspirado Beethoven, que naquele tempo já era surdo, no seu concerto no4 para piano. A música das esferas.
A música do Universo.
Só ele ouvia.
terça-feira, 1 de julho de 2008
O porvir
Rogel Samuel
“Pensar é transpor”, disse Bloch. Por isso, seu princípio da esperança não é o da “espera”, mas do “avanço” – ou seja, a esperança, ali, já não significa a passividade do esperar, do receber do milagroso céu, do acontecer ao acaso, mas da construção do futuro, ativo alcance da transposição daqueles obstáculos que eterna e repetidamente aparecem na nossa frente. É a construção do futuro. Projetamos um objetivo, ou o buscamos no horizonte infinito? Que queremos nós? Bloch introduz no pensamento marxista este novo cosmorama com esta sua teoria prospectiva. Não existe senão o aqui e agora e o avanço para o futuro. Nós temos de extrair o futuro de suas profundezas misteriosas. E para isso precisamos de nos tornar ao futuro, na aceitação do novo. É este o signo, a chave dessa teoria do progresso social, dessa teoria da revolução própria do princípio da esperança. No que não existe, o sonhar para a frente.
Quem começou este tema fundamental da filosofia foi o russo Dimitri Pissarev (1840-1868) citado por Lênin em “Que fazer?” (São Paulo, Hucitec, 1988, p. 132) que escreveu: “Com o que devemos sonhar? (...) O desacordo entre o sonho e a realidade nada tem de nocivo se, cada vez que sonha, o ser humano acredita seriamente em seu sonho, se observa atentamente a vida, compara suas observações com seus castelos no ar e, de uma forma geral, trabalha conscientemente para a realização de seu sonho. Quando existe contato entre o sonho e a vida, então tudo vai bem”.
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