A NOITE SOBRE A NOITE
ROGEL SAMUEL
É o poema 'Pedra e
água', de Murillo Mendes:
Toda vez que se lê
este poema se tem dele outro sentido, diferente lógica.
O texto se abre para todos
os lados, todos os cantos, e tudo, cada um leitor, pode ler-se ali, ver-se
ali, retratar-se ali e ir
por ali para um ponto seu mesmo mas desconhecido.
Esta mulher sem fim e a noite sobre a noite
E esta fome de ti, meu Deus talvez de mim.
Quem sabe eu já morri, meu esqueleto eterno
Em pé nos séculos e nas ondas me reveste.
O mar, a escuridão, esta fome de amor,
Esta noite sem fim e o X de Deus
Que em nós todos vive, morre e renasce
Espuma do mar eternamente e a pedra
O que é esta
'mulher sem fim'?
Será a mulher
sempre e infinitamente amada? Ou a mãe, natureza eternamente produtiva
e úbere, de vida renovável,
abundante, cascatarante e oceânica, que em ondas nos inunda do
infinito universo de seus múltiplos seres coloridos de flores
frutos sabores novos e eternamente renascidos, renovados sempre porque
sempre morrendo, multiplicando-se no tempo e na
temporalidade do espaço largo e amplo quanto o sem-fim do começo
das estrelas, na escuridão luminosa do Universo?
Ou é a mulher
básica, buscada, retratada na memória, a mulher futura, possível,
a que vive dentro de nós mesmos como
o Outro, no Obscuro e Insaciável, aquela que não existe
no mundo, porque no externo não está mais do que no aquém
do
objeto, do lado de cá, no amante e não no amado?
Que mulher é
essa, que é sem fim e, portanto, sem começo, que tudo o que
termina começou um dia, e se não tem
término não nasceu, a não-nascida, a que não
é ainda porque não está lá, nem ainda virá,
se virá, a ser, a aparecer, a crescer?
Oh amada infinita,
quem és? Onde estás? Em que céu ou em que terra tu
te encontras? Por quem és, responde,
acontece, mostra-nos o mapa e o rosto da tua rota e a via o link de
acesso da tua realidade, oh infinita amada?
Esta mulher sem fim
não será aquela de uma única noite, mas a que sobreviverá
a todas as noites, nas noites insaciadas
sobre outras noites, as noites sobre as noites, aquelas que se sobrepõem,
sem o espaço intermediário de um dia, aquela
escuridão noturna que nunca amanhece, que nem termina, nem se
esgota senão em si mesmo e se renova e se refaz e não se
retira nunca?
Porque ela é a musa,
o motivo poético, o amor em pessoa, a onda do mar, a fonte do ser,
a oriunda matriz, o ventre da
fecundidade, o abrigo da maternidade nunca perdida, o leito da vida
e da morte, o refrigério do cansaço e da proteção,
a
criadora, a mãe e o socorro.
'Essa mulher sem fim, e a
noite sobre a noite'.
Só, em si mesma, é
uma incógnita esclarecedora de todas as nossas vicissitudes e vivências,
de todas as nossas lástimas e
alegrias, das sexuais às espirituais porque também são
gozosas.
Oh, Amada imortal!
Oh, Pátria de meu espírito e de minha inspiração!
Por isso me calo.
Por isso apenas fico
no primeiro verso.
Porque ali mesmo esgoto
a minha condição de possibilidade de ler.
Porque dali não
passo, que dali não posso.
Sim, essa mulher é
a fome de Deus, a fome de amor, a fome, o amor. Morrer é mergulhar
no fundo do seu ser e no mar
de sua absorção, na escuridão de sua benfazeja
fosforescência e nas profundezas de suas instabilidades, nas suas
carícias e nas
suas idas, nas superfícies e sedas, nas redes máscaras
e laços dos seus cabelos e tranças, seus sonhos e necessidades.
Somos todos descendentes dessa mulher sem fim, dessa maternidade
original e nunca esquecida, dessa raiz funda que mora
no coração de nossa matéria e de nossa sensibilidade,
de nossa familiar solidão.
Caminhamos a passos largos
nesses rumos, navegamos nas vagas desse mar e nas rotas desse trafegar
oceânico pelos
descaminhos de nossas aspirações, esquecimentos e mitos.
Essa mãe é
a natural beleza da nossa moldura, pátria e lar.
Espuma do mar eternamente
e a pedra.
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