terça-feira, 12 de novembro de 2013

TEATRO AMAZONAS


 TEATRO AMAZONAS


Rogel Samuel





2. NATAL DE 1900
 



Ao chegar à porta do palacete Scholz parou e esperou que lhe abrissem. Um empregado, caboclo forte, meio índio, veio abrir:

- Pode entrar, disse o homem.

Na noite anterior, Silva estivera com Marinalva. Junto dela perdoava tudo. Era capaz de beijar seus pés, que aliás eram bonitos. Marinalva tinha os cabelos negros, lisos, brilhantes, a pele bronzeada, os seios pequenos. Olhos de índia, de onça, a cor variava pelo amarelo-ouro-esverdeado, cor indefinível, falsa, perigosa. Marinalva, ela dizia que se chamava assim. Mas como tudo nela era possível, ele não sabia se era verdade. Ela dizia que tinha vindo do Amatari. Não tinha documento. Quando Silva mandava fazer os documentos dela, Marinalva os perdia. Silva a cobria de presentes, roupas e jóias, dizia que queria casar-se com ela, abandonar a esposa, e de fato seria capaz de tudo para ficar com ela. Ela se ria, jurava que sim, e no dia seguinte sumia na orgia da noite, voltava bêbada e louca na manhã seguinte para aquela casa que Silva tinha alugado para ela, na Cachoeirinha. Silva se desesperava, se odiava, jurava que ia abandoná-la, deixava de vê-la, mas quando Marinalva estava sem dinheiro aparecia no Foro, ou na Câmara, ou mesmo na porta da casa dele. Ameaçava fazer escândalo. Silva segurava o seu braço e a tirava dali, e tudo acabava na cama, ela gemendo, ele extasiado de prazer e de genuíno amor. Não, não tinha cura. Por duas vezes separou-se da esposa, D. Cacilda, mulher de boa família, rica, que tinha voltado para a casa dos pais por causa da Marinalva.

Lima Silva no hall de entrada deixou o chapéu. Viu ali a famosa escadaria de madeira encaixada, famosa em todo o mundo, sem coluna para sustento. Foi para a sala contígua, onde Scholz costumava receber os visitantes e onde, anos depois, se faziam as reuniões de governo.  A decoração era impressionante. Os quadros, os móveis, tudo revelava luxo e bom gosto. Da janela viu a vivenda de pássaros amazônicos, de que Scholz tanto gostava. Pássaros raros, junto com as orquídeas. Um dia, como ele se aproximou demais, uma garça do viveiro perfurou-lhe o olho esquerdo e o cegou.

Era uma escura noite de Natal de 1900, pouco depois da morte do Governador Eduardo Ribeiro, em circunstância misteriosa. Eduardo Ribeiro foi o construtor do Teatro Amazonas. Foi o construtor de Manaus. 

Scholz apareceu de roupa leve e branca, pince-nez de ouro. Sentou-se solene em sua frente e disparou, à queima roupa:
 - Lima Silva, quem matou Eduardo Ribeiro?
Quando saiu do palacete Scholz já de madrugada, Lima Silva foi para casa de Marinalva. Ela não estava. Ordenou ao táxi que o levasse à praça de São Sebastião.  Em frente ao Teatro Amazonas parou e saltou. A igreja já estava fechada, a praça vazia.  Ele sentou-se na escadaria do Teatro. De longe, de bem longe, dos limites da fímbria do horizonte, apareceu um vento úmido e morno, vindo da Floresta, que passou como um fantasma, uivando nas alamedas do Teatro.  Caía uma chuva fina.
 Lima Silva foi caminhando, abandonado e só, em direção à passagem do aterro onde depois se pavimentou a avenida Eduardo Ribeiro.
Era a morte de Eduardo Ribeiro. A morte de tudo. Poucos anos depois, a economia do Amazonas entrou em decadência e ruína.  Manaus foi transformada numa cidade fantasma. O manto negro de uma recessão a cobriu durante cinqüenta anos, povoando suas ruas uma legião de mendigos. O Teatro Amazonas fechou as portas por meio século. Transformou-se em depósito de borracha crua. Os espelhos de cristal, os quadros, as estátuas, as cortinas de veludo, os lustres, os tapetes de linho, os jarros de porcelana, os móveis de luxo, as mesas e cadeiras móveis foram roubados.  A Floresta Amazônica ameaçava, na noite escura.
 


Nenhum comentário: