ROGEL SAMUEL
Foi assim que este soneto de natal de Machado de Assis passou a figurar em todas as nossas nobres antologias históricas, desgraçadamente mal compreendido, mal lido, mal interpretado, sem que ninguém visse o que nele se esconde: a mediocridade, a critica da mediocridade nacional, escrita pelo mais mordaz dos críticos, que fica a rir da nossa ignorância e besteira:
Um homem, — era aquela noite amiga,
Noite cristã, berço do Nazareno, —
Ao relembrar os dias de pequeno,
E a viva dança, e a lépida cantiga,
Quis transportar ao verso doce e ameno
As sensações da sua idade antiga,
Naquela mesma velha noite amiga,
Noite cristã, berço do Nazareno.
Escolheu o soneto . . . A folha branca
Pede-lhe a inspiração; mas, frouxa e manca,
A pena não acode ao gesto seu.
E, em vão lutando contra o metro adverso,
Só lhe saiu este pequeno verso:
"Mudaria o Natal ou mudei eu?"
O que acontece é que o famoso “Soneto de natal”, de Machado de Assis, exibe a marca de algumas de suas mais famosas e misteriosas ironias: - Machado nunca está dizendo o que aparentemente diz - sempre possue algo escondido, ou melhor, aquilo que está ali precisamos verter para a sua outra verdade, que é a do (entre-)texto, procurando lá a real significação do que ele quer, no texto, apontar, - o sub-texto dos sentidos ocultos, possíveis, falíveis, omissos, mas cabíveis, ao leitor desconfiado de que Machado está traindo, escondendo o jogo, de que está ausente-presente ali, por trás dos óculos, a rir, a gargalhar, ironicamente, da nossa burrice nacional, da nossa incapacidade de ler aquele soneto “corretamente”, e da sua própria incapacidade de escrevê-lo, nesse Bin Laden dos poemas de natal.
* * *
O tal soneto começa com um indefinido: “um homem”... Um homem não é
um poeta. Quem é senão a própria figura oculta de Machado? Se um certo
homem resolve escrever um certo poema de natal, ou escrever um poema no
dia de natal, lembrando-se da infância, e “a viva dança, e a lépida
cantiga”, esse deve ser uma fotografia poética do autor - caso contrário
o soneto não teria nenhum sentido estruturante.
* * *
Ora, um homem, quer dizer, um poeta, o poeta Machado - depois de
lembrar-se da infância, ou por causa disso, resolve escrever um poema de
natal no dia de natal, e não consegue, e nada sai, nem um verso, apenas
a reflexão de que nada conseguiu, de que é incapaz de compor o mínimo
poema de natal - seja porque sua lira se encontra em baixa, seja porque
era mesmo Machado de Assis quem estava ali, e ele era verdadeiramente
ateu, não acreditava em natais, nem naquela estória piedosa de “noite
cristã etc” que só pode ser pura ironia do velho materialista - não se
fie o leitor nessa estória comovente de “verso doce e ameno”, isso é
pura galhofa do velho Machado - o que ali se tem é mesmo o “metro
adverso”, a velhice, portas da morte, do nada, da folha em branco da
morte, - a morte da inspiração, da juventude, do frescor musical de seus
versos, da inspirada sensualidade juvenil - aquilo tudo que não mais
existe, e em seu lugar a secura da voz, sem musicalidade nem poesia,
apenas reflexão árida, cerebral, seca, vazia, amorfa, vinda do mofo
interno, da mediocridade de almanaque: "Mudaria o Natal ou mudei eu?"
* * *
Mas o pior - e o mais grave, ou mais engraçado - é que a maioria dos
leitores brasileiros, e os escolares, pelo tempo agora, mais de século,
tem lido o soneto às avessas, ao contrario, vendo nele uma singular
beleza que ali não há, que não está lá, que ele não tem, de que não
dispõe, nem quis ter - pois o soneto é uma decepção, e é a expressão
desta, a voz da mediocridade - pois o soneto é a escrita da incapacidade
e da ausência, da insuficiência, e da não-poesia, do não-poético, pois
Machado intencionalmente ironiza a incapacidade de escrever um belo
soneto de natal por falta de fé, mas escrevendo um péssimo soneto sobre a
sua própria falência de fazê-lo, e aquilo vem cheio de uma aparente
“beleza” perfumada e barata, piegas e popular, que se traduz naquela
“noite amiga”, naquela “noite cristã”, naquele “berço do Nazareno”,
quando “sabemos” ou desconfiamos de que Machado não está falando sério,
de que ele presumia que o leitor vulgar já ia achar o soneto
maravilhoso, antológico, e realmente foi assim que o desgraçado soneto
se tornou um clássico da literatura nacional, e foi assim mesmo que
passou a figurar em todas as nossas nobres antologias históricas,
desgraçadamente mal compreendido, mal lido, mal interpretado, sem que
ninguém visse o que nele se esconde: a mediocridade, a critica da
mediocridade escrita pelo mais mordaz crítico da mediocridade que foi
Machado de Assis, que está a rir da nossa ignorância nacional
brasileira...
* * *
E foi assim que este soneto se tornou um clássico.
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