quarta-feira, 20 de novembro de 2013

CRÔNICA DE MACHADO DE ASSIS



3 DE JULHO DE 1864.

 

Um jornal desta Corte deu, há dias, aos seus leitores uma notícia tão grave quão sucinta. É nada menos que a predição de uma catástrofe universal.

 

Diz a folha que o professor Newmager, de Melbourne, prediz que em 1865 um cometa passará tão próximo à terra, que esta corre sérios riscos de perecer.

 

Renovam-se, pois, os sustos causados pela profecia do cometa 13 de junho, sustos que, por felicidade nossa, não foram confirmados pela realidade.

 

A terra, que tem escapado a tantos cometas — aos celestes, como o de Carlos V - aos terrestres, como o rei dos Hunos — aos marinhos, como os piratas normandos — a terra acha-se de novo ameaçada de ser absorvida por um dos ferozes judeus errantes do espaço.

 

O vulgo, que não entra na apreciação científica das probabilidades de tais catástrofes, estremece ouvindo esta noticia, reza uma Ave-Maria e trata de preparar a alma para o trânsito solene.

 

Também eu, apesar de já descrer até dos cometas, não pude ler a frio a notícia deste próximo cataclisma, e fiquei dominado por um sentimento de tristeza e desânimo.

 

Pois que! — disse eu comigo — dar-se-á caso que o Criador não esteja contente com os homens? Logo, é certo que somos grandemente velhacos, imensamente egoístas, profundamente hipócritas, tristemente ridículos. Logo, é certo que esta comédia que representamos cá em baixo tem desagradado à divindade, e a divindade, usando do princípio de Boileau, lança mão de uma pateada solene e estrondosa?

 

Estávamos tão contentes, tão tranqüilos, tão felizes, — iludíamo-nos uns aos outros com tanta graça e tanto talento, — abríamos cada vez mais o fosso que separa as idéias e os fatos, os nomes e as coisas, — fazíamos da Providência a capa das nossas velhacarias, — adorávamos o talento sem moralidade e deixávamos morrer de fome a moralidade sem talento, — dávamos à vaidade o nome de um justo orgulho, — usávamos o nome de cristãos e levávamos ao juiz de paz o primeiro que nos injuriasse, — dissolvíamos a justiça e o direito para aplicá-los em doses diversas às nossas conveniências, — fazíamos tudo isto, mansa e pacificamente, com a mira nos aplausos finais, e eis que se anuncia uma interrupção do espetáculo com a presença de um Átila cabeludo!

 

A ser exata a profecia do professor Newmager, percamos as ilusões e estendamos as mãos à palmatória. Fomos mais longe do que nos era lícito, e agravamos as coisas com a mania de dar nomes eufônicos e bonitos às nossas maldades e aos nossos vícios.

 

Compreende-se que esta notícia, apanhado-nos de supetão, nos deixe profundamente abalados.

 

Ainda se a profecia fosse para daqui a 20 ou 30 anos, então sim, ira o caso diverso. Se nos fosse impossível arrepiar carreira, procederíamos de modo a conjurar o mal, isto é: — os hipócritas, sem despir dos ombros a capa mentirosa, ensinariam contudo aos filhos que é uma coisa imoral e ridícula fascinar as consciências com virtudes ilusórias e qualidades negativas; os velhacos, continuando a lançar poeira nos olhos dos outros menos velhacos, diriam, todavia, aos filhos que nada dá maior glória ao homem do que a consciência da sua integridade moral; os egoístas, sem abandonar o culto da própria individualidade, aconselhariam contudo aos filhos a observância desta virtude cristã, que é o resumo e a base de todas as virtudes: amemos a nosso próximo; os vaidosos, os intrigantes, os ingratos, e assim por diante.

 

Que resultava desta tática? É que no prazo fixado aparecia o cometa, lançava os olhos cá para baixo, e vendo no mundo um ensaio de paraíso, tornava a enrolar a cauda e ia passear.

 

Mas, daqui a um ano, daqui a poucos meses, como escapar ao choque, como evitar o cataclisma, anunciado pelo professor Newmager?

 

É verdade que o professor Newmager deixa um lugar à esperança e acrescenta que, se não houver cataclismo, haverá uma coisa inteiramente nova e única desde a criação do mundo. Durante três vezes 24 horas não teremos noites, estando a atmosfera banhada por uma luz difusa mais brilhante que os raios do sol.

 

É o que se chama arriscar tudo para tudo ganhar ou tudo perder — ou morte violenta e universal, ou um dia de 72 horas, mais claro que os dias ordinários.

 

Diante de tais predições já me lembrei de que em todo este negócio talvez não haja outro cometa senão o próprio professor Newmager, cometa que aparece no céu da curiosidade pública, querendo tudo abalar e sacudir com a longa cauda da sua ciência astronômica. Varri esta idéia do espírito, por ver que esta é a segunda predição recente do mesmo gênero, e que a ciência popular tem um provérbio para estes casos: três vezes cadeia, sinal de forca.

 

Se escaparmos ao cataclismo ficaremos livres por algum tempo, e então naturalmente esquecidos dos cometas vingadores, prosseguiremos na comédia universal, sem coros nem intervalos, assistindo ao mesmo tempo às comédias parciais e políticas, à comédia dinamarquesa, à comédia polaca, à comédia peruana, à comédia francesa, etc., etc. Basta lançar os olhos a qualquer ponto da carta geográfica para achar com que divertir o tempo.

 

A propósito de carta geográfica, julgo que se deveria mandar uma de presente aos redatores do Siècle, folha que se publica em Paris.

 

Eis o que diz aquela folha em data de 15 de maio:  “A terrível tragédia de Santiago quase se renovou ultimamente em Montevidéu, no Brasil. Durante a semana santa, etc.”.

 

Não podendo supor nestas palavras uma insinuação de anexação do território oriental ao brasileiro, inclino-me a crer antes que o ilustrado noticiarista do Siècle conhece tanto a geografia da América como os leitores conhecem a geografia da lua.

 

Neste caso, uma carta geográfica será um presente de grande valor e digno de ser apreciado pela redação do Siècle.

 

Se em coisas destas que, por mui come-sinhás, todos devem saber, se escreve na Europa tanta barbaridade, o que não sai de falso e de imaginoso quando entram lá na apreciação da vida íntima dos povos desta banda?

 

Isto veio como “a propósito”, e eu não posso terminar a parte relativa às surpresas da semana, sem noticiar outra, muito de passagem.

 

Retirou-se a fragata “Forte”, de gloriosa memória, e veio substituí-la na estação da América do Sul a nau a vapor “Bombay” — uma adiçãozinha de força. Nisto é que está a surpresa, e em outra circunstância mais veio no  “Bombay” o almirante Elliot, casado com uma irmã de Lord John Russell, e acha-se com sua esposa a bordo da nau.

 

Oh!

 

É o caso de fazer uma pequena correção ao grande cômico: “Que vient-elle faire dans cette galère?”

 

Deve supor-se que o almirante Elliot é um íntimo do Lord John Russell, um eco fiel das suas intenções e dos seus desejos na qualidade de cunhado do ilustre estadista. Ora, esta última circunstância provará “anguis in herba”, ou reproduz simplesmente o passo da epopéia em que a deusa de Cípria faz abrandar, com o gesto gracioso e soberano, as iras dos deuses reunidos?

 

Esperemos os resultados das negociações pendentes; e vamos fundando a nossa verdadeira independência e soberania.

 

Foi no dia de ontem que a Bahia festejou a sua independência, naturalmente como de costume, com ardor e entusiasmo.

 

Também ontem tivemos por cá a nossa festa, festa mais particular, mas de grande alcance, — a festa da inauguração de uma sociedade literária.

 

É de grande alcance, porque todos estes movimentos, todas essas manifestações da mocidade inteligente e estudiosa, são garantias de futuro e trazem à geração presente a esperança de que a grandeza deste país não será uma utopia vã.

 

A sociedade a que me refiro é o Instituto dos Bacharéis em Letras; efetuou-se a festa em uma das salas do colégio de D. Pedro II. À hora em que escrevo, nada sei ainda do que se passou; mas estou certo de que foi uma festa bonita; entre os nomes dos associados há muitos de cujo valor tenho as melhores notícias, e que darão ao Instituto um impulso poderoso e uma iniciativa fecunda.

 

Tenho agora mesmo diante dos olhos um exemplar da  “Revista Mensal dos Ensaios Literários”. Ensaios Literários é a denominação de uma sociedade brasileira de jovens inteligentes e laboriosos, filhos de si, reunidos há mais de dois anos, com uma perseverança e uma energia dignas de elogio.

 

Que faz esta sociedade? Discute, estuda, escreve, funda aulas de história, de geografia, de línguas, enfim, publica mensalmente os trabalhos dos seus membros. É uma congregação de vocações legítimas, para o fim de se ajudarem, de se esclarecerem, de se desenvolverem, de realizarem a sua educação intelectual.

 

Toda a animação é pouca para as jovens inteligências que estréiam deste modo. Se erram às vezes, indique-se-lhes o caminho, mas não se deixe de aplaudir-lhes tamanha perseverança e modéstia tão sincera.

 

Creio que já tive ocasião de fazer um cômputo das diversões e festas que se prometem ao Rio de Janeiro. Como a nossa capital nem sempre conta destas felicidades, vamos esfregando as mãos e agradecendo a fartura que se nos dá.

 

 “No hay miel sin hiel”, dizem os espanhóis. A chegada de Emília das Neves coincidiu com a retirada de Gabriela da Cunha, para S. Paulo. Foi na noite de quinta-feira que esta eminente artista, a instâncias, segundo se anunciou, da sua ilustre irmã de arte, representou nesta corte pela última vez.

 

O teatro escolhido foi o de S. Januário e a peça foi a comédia de V. Sardou,  “Os Íntimos”.

 

O público sabe com que distinção, com que verdade, com que arte, Gabriela da Cunha desempenha o papel de Cecília naquela comédia. Desde os primeiros sintomas de um amor, que não nasce de súbito que resvala devagar na doce intimidade da conversa e do passeio, até ao lance terrível em que, na luta da paixão e do dever, o dever triunfa e a mulher salva-se roçando pelas arestas do abismo — toda esta escala de sentimentos — amor, arrependimento, ódio do amante, desprezo por si — tudo isto é reproduzido de modo a arrancar da platéia aplausos entusiásticos.

 

A noite de quinta-feira foi para Gabriela da Cunha uma das suas mais felizes e gloriosas noites, e o público, aplaudindo-a calorosamente, fez plena justiça a um talento, tão celebrado quão verdadeiro.

 

Emília das Neves confundiu os seus aplausos com os do público, e tal foi a tocante despedida de Gabriela da Cunha.

 

À exceção de dois ou três artistas, o pessoal da última representação dos “Íntimos” foi o mesmo das primeiras representações no antigo Ateneu Dramático. Todos, porém, fizeram convergir os seus esforços para que aquela representação não desmerecesse das anteriores; pede a justiça que se mencione o bom êxito desses esforços e o reconhecimento caloroso do público.

 

E a justiça pede ainda que se faça menção de outro artista, tão aplaudido sempre no papel que lhe coube, e para quem concorria igualmente a circunstancia de representar em despedida. Foi o Sr. Lopes Cardoso, no papel de Tolosan. Tenho manifestado mais de uma vez a minha opinião sobre este artista, ainda novo, mas dotado de talento e incontestável aptidão. O papel de Tolosan é dos seus melhores e mais brilhantes papéis. Dizer isto é fazer-lhe o melhor elogio, porque desempenhar Tolosan é empregar mil qualidades de artista, das mais difíceis e das mais raras.

 

Não vejo anunciada nenhuma outra novidade de teatro, a não ser “Os Ourives”, de Porto-Alegre, ainda em ensaios no teatro de S. Januário; e não é com essa comédia portuguesa em 3 atos, que se representa hoje, no Ginásio.

 

Falarei domingo a este respeito com os meus leitores.

 

Já tinha lançado no papel as minhas iniciais, mas sou obrigado a incluir ainda algumas linhas no folhetim.

 

“— Dize aos teus leitores, escreve-me agora um amigo, que, se querem ver um demoninho louro, — uma figura leve, esbelta, graciosa, uma cabeça meio feminina, meio angélica, uns olhos vivos, — um nariz como o de Safo, — uma boca amorosamente fresca, que parece ter sido formada por duas canções de Ovídio, — enfim a graça parisiense, “toute purê”, vão.........”                         

 

Adivinhem os meus leitores aonde quer o meu amigo que eu os mande ver este idílio?  “.... ao Alcazar: é Mlle. Aimée”.

 

Vejam os leitores até que ponto tem razão o comunicante. Lembro-lhes, ao concluir, que não percam da lembrança a terrível profecia do professor Newmager, de Melbourne.

 

 

 
 
 

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