3 DE JULHO DE
1864.
Um jornal desta Corte deu, há dias, aos seus
leitores uma notícia tão grave quão sucinta. É nada menos que a predição de uma
catástrofe universal.
Diz a folha que o professor Newmager, de Melbourne,
prediz que em 1865 um cometa passará tão próximo à terra, que esta corre sérios
riscos de perecer.
Renovam-se, pois, os sustos causados pela profecia
do cometa 13 de junho, sustos que, por felicidade nossa, não foram confirmados
pela realidade.
A terra, que tem escapado a tantos cometas — aos
celestes, como o de Carlos V - aos terrestres, como o rei dos Hunos — aos
marinhos, como os piratas normandos — a terra acha-se de novo ameaçada de ser
absorvida por um dos ferozes judeus errantes do espaço.
O vulgo, que não entra na apreciação científica das
probabilidades de tais catástrofes, estremece ouvindo esta noticia, reza uma
Ave-Maria e trata de preparar a alma para o trânsito solene.
Também eu, apesar de já descrer até dos cometas,
não pude ler a frio a notícia deste próximo cataclisma, e fiquei dominado por um
sentimento de tristeza e desânimo.
Pois que! — disse eu comigo — dar-se-á caso que o
Criador não esteja contente com os homens? Logo, é certo que somos grandemente
velhacos, imensamente egoístas, profundamente hipócritas, tristemente ridículos.
Logo, é certo que esta comédia que representamos cá em baixo tem desagradado à
divindade, e a divindade, usando do princípio de Boileau, lança mão de uma
pateada solene e estrondosa?
Estávamos tão contentes, tão tranqüilos, tão
felizes, — iludíamo-nos uns aos outros com tanta graça e tanto talento, —
abríamos cada vez mais o fosso que separa as idéias e os fatos, os nomes e as
coisas, — fazíamos da Providência a capa das nossas velhacarias, — adorávamos o
talento sem moralidade e deixávamos morrer de fome a moralidade sem talento, —
dávamos à vaidade o nome de um justo orgulho, — usávamos o nome de cristãos e
levávamos ao juiz de paz o primeiro que nos injuriasse, — dissolvíamos a justiça
e o direito para aplicá-los em doses diversas às nossas conveniências, —
fazíamos tudo isto, mansa e pacificamente, com a mira nos aplausos finais, e eis
que se anuncia uma interrupção do espetáculo com a presença de um Átila
cabeludo!
A ser exata a profecia do professor Newmager,
percamos as ilusões e estendamos as mãos à palmatória. Fomos mais longe do que
nos era lícito, e agravamos as coisas com a mania de dar nomes eufônicos e
bonitos às nossas maldades e aos nossos vícios.
Compreende-se que esta notícia, apanhado-nos de
supetão, nos deixe profundamente abalados.
Ainda se a profecia fosse para daqui a 20 ou 30
anos, então sim, ira o caso diverso. Se nos fosse impossível arrepiar carreira,
procederíamos de modo a conjurar o mal, isto é: — os hipócritas, sem despir dos
ombros a capa mentirosa, ensinariam contudo aos filhos que é uma coisa imoral e
ridícula fascinar as consciências com virtudes ilusórias e qualidades negativas;
os velhacos, continuando a lançar poeira nos olhos dos outros menos velhacos,
diriam, todavia, aos filhos que nada dá maior glória ao homem do que a
consciência da sua integridade moral; os egoístas, sem abandonar o culto da
própria individualidade, aconselhariam contudo aos filhos a observância desta
virtude cristã, que é o resumo e a base de todas as virtudes: amemos a nosso
próximo; os vaidosos, os intrigantes, os ingratos, e assim por
diante.
Que resultava desta tática? É que no prazo fixado
aparecia o cometa, lançava os olhos cá para baixo, e vendo no mundo um ensaio de
paraíso, tornava a enrolar a cauda e ia passear.
Mas, daqui a um ano, daqui a poucos meses, como
escapar ao choque, como evitar o cataclisma, anunciado pelo professor
Newmager?
É verdade que o professor Newmager deixa um lugar à
esperança e acrescenta que, se não houver cataclismo, haverá uma coisa
inteiramente nova e única desde a criação do mundo. Durante três vezes 24 horas
não teremos noites, estando a atmosfera banhada por uma luz difusa mais
brilhante que os raios do sol.
É o que se chama arriscar tudo para tudo ganhar ou
tudo perder — ou morte violenta e universal, ou um dia de 72 horas, mais claro
que os dias ordinários.
Diante de tais predições já me lembrei de que em
todo este negócio talvez não haja outro cometa senão o próprio professor
Newmager, cometa que aparece no céu da curiosidade pública, querendo tudo abalar
e sacudir com a longa cauda da sua ciência astronômica. Varri esta idéia do
espírito, por ver que esta é a segunda predição recente do mesmo gênero, e que a
ciência popular tem um provérbio para estes casos: três vezes cadeia, sinal de
forca.
Se escaparmos ao cataclismo ficaremos livres por
algum tempo, e então naturalmente esquecidos dos cometas vingadores,
prosseguiremos na comédia universal, sem coros nem intervalos, assistindo ao
mesmo tempo às comédias parciais e políticas, à comédia dinamarquesa, à comédia
polaca, à comédia peruana, à comédia francesa, etc., etc. Basta lançar os olhos
a qualquer ponto da carta geográfica para achar com que divertir o
tempo.
A propósito de carta geográfica, julgo que se
deveria mandar uma de presente aos redatores do Siècle, folha que se
publica em Paris.
Eis o que diz aquela folha em data de 15 de
maio: “A terrível tragédia de Santiago quase se renovou ultimamente em
Montevidéu, no Brasil. Durante a semana santa, etc.”.
Não podendo supor nestas palavras uma insinuação de
anexação do território oriental ao brasileiro, inclino-me a crer antes que o
ilustrado noticiarista do Siècle conhece tanto a geografia da América
como os leitores conhecem a geografia da lua.
Neste caso, uma carta geográfica será um presente
de grande valor e digno de ser apreciado pela redação do
Siècle.
Se em coisas destas que, por mui come-sinhás, todos
devem saber, se escreve na Europa tanta barbaridade, o que não sai de falso e de
imaginoso quando entram lá na apreciação da vida íntima dos povos desta
banda?
Isto veio como “a propósito”, e eu não posso
terminar a parte relativa às surpresas da semana, sem noticiar outra, muito de
passagem.
Retirou-se a fragata “Forte”, de gloriosa memória,
e veio substituí-la na estação da América do Sul a nau a vapor “Bombay” — uma
adiçãozinha de força. Nisto é que está a surpresa, e em outra circunstância mais
veio no “Bombay” o almirante Elliot, casado com uma irmã de Lord John
Russell, e acha-se com sua esposa a bordo da nau.
Oh!
É o caso de fazer uma pequena correção ao grande
cômico: “Que vient-elle faire dans cette galère?”
Deve supor-se que o almirante Elliot é um íntimo do
Lord John Russell, um eco fiel das suas intenções e dos seus desejos na
qualidade de cunhado do ilustre estadista. Ora, esta última circunstância
provará “anguis in herba”, ou reproduz simplesmente o passo da epopéia em
que a deusa de Cípria faz abrandar, com o gesto gracioso e soberano, as iras dos
deuses reunidos?
Esperemos os resultados das negociações pendentes;
e vamos fundando a nossa verdadeira independência e soberania.
Foi no dia de ontem que a Bahia festejou a sua
independência, naturalmente como de costume, com ardor e entusiasmo.
Também ontem tivemos por cá a nossa festa, festa
mais particular, mas de grande alcance, — a festa da inauguração de uma
sociedade literária.
É de grande alcance, porque todos estes movimentos,
todas essas manifestações da mocidade inteligente e estudiosa, são garantias de
futuro e trazem à geração presente a esperança de que a grandeza deste país não
será uma utopia vã.
A sociedade a que me refiro é o Instituto dos
Bacharéis em Letras; efetuou-se a festa em uma das salas do colégio de D. Pedro
II. À hora em que escrevo, nada sei ainda do que se passou; mas estou certo de
que foi uma festa bonita; entre os nomes dos associados há muitos de cujo valor
tenho as melhores notícias, e que darão ao Instituto um impulso poderoso e uma
iniciativa fecunda.
Tenho agora mesmo diante dos olhos um exemplar
da “Revista Mensal dos Ensaios Literários”. Ensaios Literários é a
denominação de uma sociedade brasileira de jovens inteligentes e laboriosos,
filhos de si, reunidos há mais de dois anos, com uma perseverança e uma energia
dignas de elogio.
Que faz esta sociedade? Discute, estuda, escreve,
funda aulas de história, de geografia, de línguas, enfim, publica mensalmente os
trabalhos dos seus membros. É uma congregação de vocações legítimas, para o fim
de se ajudarem, de se esclarecerem, de se desenvolverem, de realizarem a sua
educação intelectual.
Toda a animação é pouca para as jovens
inteligências que estréiam deste modo. Se erram às vezes, indique-se-lhes o
caminho, mas não se deixe de aplaudir-lhes tamanha perseverança e modéstia tão
sincera.
Creio que já tive ocasião de fazer um cômputo das
diversões e festas que se prometem ao Rio de Janeiro. Como a nossa capital nem
sempre conta destas felicidades, vamos esfregando as mãos e agradecendo a
fartura que se nos dá.
“No hay miel sin hiel”, dizem os
espanhóis. A chegada de Emília das Neves coincidiu com a retirada de Gabriela da
Cunha, para S. Paulo. Foi na noite de quinta-feira que esta eminente artista, a
instâncias, segundo se anunciou, da sua ilustre irmã de arte, representou nesta
corte pela última vez.
O teatro escolhido foi o de S. Januário e a peça
foi a comédia de V. Sardou, “Os Íntimos”.
O público sabe com que distinção, com que verdade,
com que arte, Gabriela da Cunha desempenha o papel de Cecília naquela comédia.
Desde os primeiros sintomas de um amor, que não nasce de súbito que resvala
devagar na doce intimidade da conversa e do passeio, até ao lance terrível em
que, na luta da paixão e do dever, o dever triunfa e a mulher salva-se roçando
pelas arestas do abismo — toda esta escala de sentimentos — amor,
arrependimento, ódio do amante, desprezo por si — tudo isto é reproduzido de
modo a arrancar da platéia aplausos entusiásticos.
A noite de quinta-feira foi para Gabriela da Cunha
uma das suas mais felizes e gloriosas noites, e o público, aplaudindo-a
calorosamente, fez plena justiça a um talento, tão celebrado quão
verdadeiro.
Emília das Neves confundiu os seus aplausos com os
do público, e tal foi a tocante despedida de Gabriela da Cunha.
À exceção de dois ou três artistas, o pessoal da
última representação dos “Íntimos” foi o mesmo das primeiras
representações no antigo Ateneu Dramático. Todos, porém, fizeram convergir os
seus esforços para que aquela representação não desmerecesse das anteriores;
pede a justiça que se mencione o bom êxito desses esforços e o reconhecimento
caloroso do público.
E a justiça pede ainda que se faça menção de outro
artista, tão aplaudido sempre no papel que lhe coube, e para quem concorria
igualmente a circunstancia de representar em despedida. Foi o Sr. Lopes Cardoso,
no papel de Tolosan. Tenho manifestado mais de uma vez a minha opinião sobre
este artista, ainda novo, mas dotado de talento e incontestável aptidão. O papel
de Tolosan é dos seus melhores e mais brilhantes papéis. Dizer isto é fazer-lhe
o melhor elogio, porque desempenhar Tolosan é empregar mil qualidades de
artista, das mais difíceis e das mais raras.
Não vejo anunciada nenhuma outra novidade de
teatro, a não ser “Os Ourives”, de Porto-Alegre, ainda em ensaios no
teatro de S. Januário; e não é com essa comédia portuguesa em 3 atos, que se
representa hoje, no Ginásio.
Falarei domingo a este respeito com os meus
leitores.
Já tinha lançado no papel as minhas iniciais, mas
sou obrigado a incluir ainda algumas linhas no folhetim.
“— Dize aos teus leitores, escreve-me agora um
amigo, que, se querem ver um demoninho louro, — uma figura leve, esbelta,
graciosa, uma cabeça meio feminina, meio angélica, uns olhos vivos, — um nariz
como o de Safo, — uma boca amorosamente fresca, que parece ter sido formada por
duas canções de Ovídio, — enfim a graça parisiense, “toute purê”,
vão.........”
Adivinhem os meus leitores aonde quer o meu amigo
que eu os mande ver este idílio? “.... ao Alcazar: é Mlle.
Aimée”.
Vejam os leitores até que ponto tem razão o
comunicante. Lembro-lhes, ao concluir, que não percam da lembrança a terrível
profecia do professor Newmager, de Melbourne.
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