segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

NEUZA MACHADO - DO PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL


NEUZA MACHADO - DO PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL


Compreendi, posteriormente, numa segunda análise, que a idéia de fixidez, imobilidade não era de todo incorreta, mas não se ajustava à idéia tradicional que se faz do verbo repousar, que denota descanso total. O esvaziamento da duração, ou seja, o repouso, como o quer Bachelard, seria assim uma imobilidade, mas uma imobilidade fervilhante; não ofereceria descanso, ao contrário, ofereceria momentos de tensão interna, repletos de pensamentos questionadores. Assim, os momentos suspensos entre o antes e o depois estariam fora do tempo vital e dentro do tempo do pensamento. O repouso, visto por este ângulo, não seria o ato de descansar (adormecer a mente); seria, isto sim, a imobilidade que antecede a futura ação do pensamento.

Por este prisma, refleti com maior intensidade no pensamento que surge do repouso fervilhante. Inicialmente, o repouso fervilhante — antes do pensamento propriamente dito — seria o invólucro de questões amorfas ou díspares, que estariam contidas no íntimo do consciente (da existência do ser) e que não seriam nada repousantes já que instaurariam uma ativa tensão cerebral. Posteriormente, os pensamentos advindos desse repouso fervilhante seriam novos, livres dos dogmas vitais, e propiciariam novas etapas de duração. O tempo pensado ofereceria uma maior liberdade de ação, de invenções, de criação, de concretizações.

Por esta doutrina do tempo, envolvi-me com as narrativas roseanas, desde o seu início até a fase final, e constatei que elas se organizaram, ao longo de sua produção, em quatro momentos, que se interpenetraram.

No primeiro momento, submetido ao tempo contínuo (tempo da história, da experiência de vida), o Artista Literário encontrou seu impulso narrativo na imaginação formal (forma externa), na novidade da descoberta de um sertão muito próximo de sua vida, mas não devidamente explorado no âmbito da literatura. Desta descoberta da imaginação formal, surgiram as narrativas de Sagarana, cujos narradores (memorialistas) – ou um único narrador (não confundir narrador memorialista, aquele que se vale das experiências do passado para compor seu universo ficcional, com narrador de livros de memória, cuja proposta é recuperar fielmente o passado) – se divertem com a variedade de imagens estáveis, intactas desde a infância em suas lembranças.

Ainda submetida à Doutrina do Tempo, sob a orientação bachelardiana, pude observar que, no segundo momento, a partir de A hora e vez de Augusto Matraga, o Artista brasileiro e a sua obra estabelecem uma relação dialética com o sertão, sob o comando exclusivo da criatividade ficcional, destacando os contrários como amor e ódio, alegria e tristeza, dentro e fora, sanidade e insanidade, realidade e irrealidade, luz e trevas e outros mais. Verifica-se a partir da citada narrativa, uma clara mudança na forma de narrar: a consciência do poder de criação ficcional e o abandono das velhas formas narrativas, ligadas ao ato de reproduzir as experiências de vida dos ancestrais.

Reportando-me novamente à coletânea de narrativas de Sagarana e aproveitando-me de um excurso de Bachelard em sua Introdução à DIALÉTICA DA DURAÇÃO, quando informa não ser sua intenção destacar a etapa pessoal do repouso (vida secreta e sossegada, vida solitária que oferece prazer), passo a refletir o início da obra roseana justamente a partir desta perspectiva. Isto, porque a primeira fase ficcional do Artista realizou-se submetida aos conhecimentos tradicionalmente recebidos, portanto fase ligada ao impulso primeiro da imaginação ainda formal (formal no sentido de invólucro de conceitos pré-estabelecidos).

Bachelard, em seus estudos, não está preocupado com o tempo vital, pois sua temática se liga ao tempo do pensamento. Ele não pretende, em absoluto, "delinear (...) a perspectiva que conduz à vida secreta e sossegada"117, perspectiva ligada ao tempo contínuo, histórico, vivido, repleto de paixões; tempo submetido às exigências externas e sociais, às excitações que atraem o homem para fora de si mesmo.

Se Bachelard restringe o aspecto pessoal da questão, revisitarei o assunto, uma vez que o Artista Guimarães Rosa, em sua fase inicial, procura reproduzir ficcionalmente aspectos de vida de um passado histórico, tendo como referencial o Sertão das Gerais, localizado no Norte do Estado de Minas, fronteiriço ao Sertão da Caatinga, localizado na região do Nordeste brasileiro.

O excurso de Bachelard, logo no início de suas propostas filosóficas, restringindo o aspecto pessoal do repouso, abstendo-se de estudá-lo, alertou-me quanto à questão acima exposta. Guimarães Rosa, inicialmente submetido ao repouso vital e à imaginação formal, invólucro de conceitos pré-estabelecidos, sentiu-se envolvido pelas gratas lembranças da infância, rememorizou extasiado e descansado (linearmente) seu passado histórico, repleto de matéria mítica. Assim, observando as narrativas de Sagarana (as histórias do burrinho pedrês, de Seu Lalino Salãtiel e outras) fixei-me na figura de Nhô Augusto Matraga, já que o personagem representa nitidamente o momento de mudança temporal do próprio Artista. O personagem Augusto Matraga (assim como o narrador) representa também as mudanças mentais do escritor.

Por este aspecto, posso afirmar que todos sofrem mudanças nesta pequena narrativa: o Artista, o Narrador, o Personagem, o Leitor e o próprio Mundo Narrado. Nhô Augusto, principalmente, revela as nuances mentais do Criador Literário: depois da queda (pessoal e ideológica), fica recuperando-se dos ferimentos na casa dos pretos que o salvaram, recordando a infância, as rezas da infância aprendidas com a avó beata. Neste início, é justamente a vida secreta e sossegada de Nhô Augusto, com todo seu conteúdo passional, que motiva-me raciocinar, para depois alcançar os postulados centrais da filosofia bachelardiana.

A queda ainda não representa um verdadeiro momento de mudança narrativa. O Artista, submetido às imposições ideológicas do sertão, tenta recuperar o personagem linearmente, remodelando-o sob o jugo de um novo poder: o poder carismático.

Mas é nesse momento que Nhô Augusto se submete ao repouso vital, sob os ditames da tradição religiosa, embalado pelas lembranças da infância, permitindo assim um temporário descanso vital ao escritor, já prestes a se submeter ao repouso fervilhante que antecederá ao início de novas e singulares criações literárias, nascidas exclusivamente do tempo do pensamento.

Enquanto Nhô Augusto depois da queda reaparece renovado, saído das brasas de uma fé antiga ainda vivas sob as cinzas da descrença, o narrador se prepara, orientado pelo demiúrgo, para assumir uma nova postura narrativa, que romperá definitivamente com sua antiga forma de narrar. Portanto, quem realmente resgata, momentaneamente, a paz de espírito própria da infância é o Artista. Ele se recupera no plano da continuidade temporal, recuperando também mais uma face ideológica de seu personagem: a carismática. Por isto, repenso aqui o excurso de Gaston Bachelard, nas páginas iniciais de sua propedêutica, rejeitando um envolvimento maior com o repouso vital.

O repouso de Nhô Augusto na casa dos pretos simboliza descanso mental, vital, já que o ficcionista por enquanto não irá modificar nada ao longo da narrativa, apenas promoverá um aparentemente novo direcionamento de vida para o personagem, submetido ainda às leis do tempo contínuo. Em outras palavras, ele simplesmente receberá um novo poder como porta-voz do poder religioso.

Se o personagem, nesse intervalo, nesse repouso forçado, com todas as conotações próprias da palavra repouso, recupera a paz de espírito, é a partir daí que o repouso tenso, fervilhante, do Artista, sentido no fundo do ser, de acordo com Bachelard, começa a se insinuar, possibilitando novas perspectivas de narração na obra roseana. O narrador informa que o personagem passa a ter tempo para sarar e pensar, mas quem realmente se imobiliza tensamente, para produzir novos e singulares pensamentos é o próprio Artista. O personagem, o narrador e o Artista estão prestes a esvaziar o tempo vivido (contínuo) em benefício de uma nova realidade, autenticamente ficcional, repleta de lacunas fervilhantes.


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