NEUZA MACHADO - DO PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL
É também esse mundo rural desagregado que será o tema dos escritores das décadas de 30 e 40. A literatura desse período, segundo Antônio Cândido, estava fundamentada na "dialética do localismo e do cosmopolitismo, manifestada pelos modos mais diversos"85. E é nesse período também (1946) que Guimarães Rosa publicaSagarana, uma coletânea de contos, na qual, excetuando-se A hora e vez de Augusto Matraga, se observa-se onacionalismo literário, a recriação do dialeto caipira e oinconformismo86, ou seja, a rejeição a padrões pré-estabelecidos.
A idéia de localismo e cosmopolitismo na obra roseana da primeira fase se sobressai, porque o autor, nesse momento, procura valorizar um determinado espaço geográfico, mas há também, como diz Antônio Cândido, "um compromisso mais ou menos feliz da expressão com o padrão universal"87.
Nas fases seguintes, tomando-se por base a narrativa A hora e vez de Augusto Matraga, espécie de narrativa-embrião de Grande Sertão: Veredas, já não se observa o sertão como um determinado local, porque este transmuda-se em espaço universal.
Lendo a Entrevista de Guimarães Rosa com o crítico Günter Lorenz (1965), descobre-se uma ligação fortíssima do escritor com suas origens européias, quando ele afirma que uma parte de sua família "é, pelo sobrenome, de origem portuguesa, mas na realidade é um nome suevo que na época das migrações era Guimaranes, nome que também designava a capital de um estado suevo da Lusitânea"88. Afirma ainda que, pela sua origem, está voltado para o remoto, para o estranho.
Se as narrativas de Sagarana, excetuando-se, como já foi dito, a narrativa A hora e vez de Augusto Matraga, procuravam realçar o sertão mineiro (cf. "O burrinho pedrês", "Sarapalha", "São Marcos" e outras), as narrativas seguintes se ligam a este aspecto remoto e estranho de suas origens. O sertão, a partir de A hora e vez de Augusto Matraga, perdeu o aspecto de local, para atingir o universal, porque, diferente do sertão de Minas, e preso às transformações vivenciais de seu criador, era produto de uma mente já citadina, individual, auto-reflexiva, especulativa; na verdade, este sertão não se prendia ao localismo literário da década de 40 e muito menos procurava criar uma língua diversa com o intuito de se opor a padrões pré-estabelecidos. A linguagem sertaneja ou a língua que se fala no universo roseano tende para o universal, porque metafisicamente caracteriza um espaço ligado ao plano da eternidade e da solidão, como o próprio Guimarães admitiu ao crítico alemão.
Goëthe nasceu no sertão, assim como Dostoievski, Tolstoi, Flaubert, Balzac; ele era, como os outros que eu admiro, um moralista, um homem que vivia com a língua e pensava no infinito. Acho que Goëthe foi, em resumo, o único grande poeta da literatura mundial que não escrevia para o dia, mas para o infinito. Era um sertanejo. (...) Portanto, torno a repetir: não do ponto de vista filológico e sim do metafísico, no sertão fala-se a língua de Goëthe, Dostoievski e Flaubert, porque o sertão é o terreno da eternidade e da solidão, ondeInneres und Äusseres sund nicht mehr zu trennen.89
Nestas palavras não há o conformismo de quem faz parte de uma sociedade subdesenvolvida, conformismoque caracterizava uma parte dos escritores do período de 1900 a 1945, porque o Artista Literário de origem sertaneja já se transformou em cidadão do mundo.
Conheço bastante bem a literatura alemã. Por exemplo, o Simplizissimus é para mim muito importante. Amo Goëthe, admiro e venero Thomas Mann, Robert Musil, Franz Kafka, a musicalidade de pensamento de Rilke, a importância monstruosa, espantosa de Freud. Todos estes autores me impressionaram e me influenciaram muito intensamente, sem dúvida. Entretanto, não sei o que fazer com autores mais jovens como Brecht. Todos eles perderam o sentido da metafísica da língua, todos eles se tornaram pregoeiros e deixaram de lado a alma, considerando-a fora de moda, em desacordo com a época e acreditando que o homem seria apenas um Wolfsburg-Mensch.90
O nativo de Cordisburgo, cidade mineira que ainda hoje resguarda os valores naturais de seu princípio sertanejo (localizada no sertão de Minas Gerais), se transformou em cidadão do mundo, e adquiriu, também, a consciência de que recebeu influências européias. Assim como todos os escritores de sua geração, recebeu influências, mas em sua literatura não há aimitação consciente dos padrões europeus, comportamento normal no período da noção aguda do subdesenvolvimento, segundo Antônio Cândido. Não seria correto procurar tal atitude em Guimarães Rosa. O que posso destacar, nesse sentido, estaria ligado a valores metafísicos e universais. Se houve influências, que, em outros casos, induzem à imitação (e ele afirma que sofreu influências - vide citação), essas influências transmudaram-se em criatividade própria, a partir do momento em que atingiu o patamar da consciência pura.
Se procuro observar atentamente a citação, constato que quem faz todas aquelas preleções sobre a literatura alemã não é o sertanejo, mas o intelectual que demonstra já ter ultrapassado o repouso dinâmico, de acordo com as teorias bachelardianas91, momento que precede ao despertar da consciência particular.
Se penso, analiticamente e interpretativamente, no narrador de A hora e vez de Augusto Matraga e nos narradores das fases seguintes, raciocino que estes, induzidos pelo Criador Literário, assumem o caminho individual, o caminho que leva à auto-reflexão, qualidade essencial para se chegar ao objetivo individual, que caracteriza o indivíduo inteligente.
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