sábado, 7 de fevereiro de 2015

NEUZA MACHADO - DO PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL

NEUZA MACHADO - DO PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL

Na maioria das vezes, e porque também, como habitantes de um país de Terceiro Mundo, somos produtos de colonizadores mentais, as pessoas comuns não valorizam a inteligência, preferem seguir modismos que massificam, que transformam os indivíduos em uma só massa pensante. A função da inteligência é questionar, argumentar, refletir, pensar e repensar sobre a validade da direção do impulso massificador. A consciência pura, de acordo com Bachelard, pode assim fazer uma boa escolha, porque está no auge de sua lucidez, de seu juízo, de seu bom-senso, agenciando o livre-arbítrio. Ela seria então o eu consciente, lucidamente equilibrado, repleto de força e capacidade de escolha. Nesse estágio de lucidez, o indivíduo pode ficar em estado de vigilância, pode esperar que alguma coisa se manifeste, que surja alguma intuição ou oportunidade, pode aguardar e guardar (baú de memórias); pode vigiar para que não entre em seu mundo interior (mundo do eu profundo) qualquer conhecimento nocivo. Por isto, não posso falar em influência, no sentido depreciativo, em Guimarães Rosa. Sua consciência particular, ao recontar o sertão, as tradições sertanejas, não estava submetida às pressões do mundo moderno, estava em completo estado de liberdade. Sua consciência particular não se incomodava mais com os juízos de valor do mundo vital, com as cobranças sociais; sua consciência particular extasiava-se mais com a descoberta de um mundo sertanejo singular, nascido das emoções sinceras.

E foi esta consciência pura que fez Guimarães Rosa mudar a face/fase de seu narrador, em A hora e vez de Augusto Matraga, última narrativa do corpus de Sagarana (1946), narrativa que cronologicamente poderia se inserir no momento agudo da conscientização de subdesenvolvimento e, conseqüentemente, transmitir as características que marcaram essa tomada de consciência, e que, felizmente, a partir daí, não são detectadas.

Mudando a forma de narrar, ele coloca em evidência seus próprios objetivos individuais de homem que já alcançou um plano elevado dentro dos vários patamares que compõem o pensamento individual. Seus narradores, a partir de A hora e vez de Augusto MATRAGA, deixaram de agir impulsionados pelo elan vital, pelo arrebatamento súbito e efêmero, apropriando-se da inteligência de quem os criou e deu-lhes forma ficcional. Esses narradores assumem a inteligência do próprio escritor, questionando, argumentando, refletindo sobre os acontecimentos da narrativa e sobre a direção a ser seguida, guiando os impulsos criadores que partem de sua poderosa intuição. Assim, nas últimas seqüências, o personagem Nhô Augusto pode se encantar com as minúcias da natureza, enquanto o narrador poetizava o sertão. O narrador, apropriando-se da função especulativa do Artista, criou um mundo diferente, um sertão diferente, embalado pelo prazer de estar ancorado numa dimensão particular, auto-reflexiva, pouco se incomodando com as opiniões externas. O narrador, por intermédio desse Artista incomum, escolheu falar de um sertão muito particular, suspenso num momento onde o antes não conta, e o que virá, em termos históricos, também não.

O ficcionista sertanejo, já no âmbito da consciência pura, amparado pelo livre-arbítrio, intuiu o momento da manifestação do narrador suprafísico (pós-moderno), suplantando o narrador experiente. Esperou, enquanto se posicionava como contador de estórias (as narrativas de Sagarana que antecedem A hora e vez de Augusto Matraga), a oportunidade de se libertar das pressões do mundo. No plano da consciência particular, já não lhe importa o julgamento de seus pares, em relação a sua criatividade, e, exatamente por isto, faz sucesso e passa a ser reconhecido como grande escritor. O sertão nascido do eu consciente estará assim imune às críticas do meio socio-intelectual. Um espaço que sempre foi depreciado pelas elites vem à luz em forma de narrativa, sob a égide de uma consciência auto-reflexiva convencida do próprio valor, e que não se incomoda mais em se dizer sertaneja (ou caipira), mesmo que já tenha alcançado outros graus no plano das exigências do mundo.

Sabemos que a obra exige necessariamente a presença do artista criador. O que chamamos arte coletiva é a arte criada pelo indivíduo a tal ponto identificado às aspirações e valores do seu tempo, que parece dissolver-se nele, sobretudo levando em conta que, nestes casos, perde-se quase sempre a identidade do criador-protótipo.92

Para Antônio Cândido, a obra de arte exige a presença do Criador. No caso específico da Arte Literária, modalidade narrativa, alguns teóricos procuram separar Artista e narrador, como, por exemplo, Barthes (já anteriormente citado), quando diz que o narrador é personagem como outro qualquer e que não se deve confundi-lo com o Artista. Particularmente, penso no narrador como personagem (como o quer Barthes), mas também não posso deixar de pensar no mesmo como parte integrante do Artista, pois nele se instala ou se desenvolve sua face ficcional.

Na obra de Rosa, há a presença de suas íntimas recordações (matéria lírica), preciosas recordações de um homem nato do sertão mineiro (sertão rude), mas que alcançou honrarias no âmbito hierarquizante da sociedade; mas, principalmente, há a presença do indivíduo moderno, paradoxal e questionador, em conflito com valores que se opõem. Guimarães Rosa, desenvolvendo seus diversos talentos, posicionou-se positivamente diante da sociedade elitista, alcançou credibilidade, mas, paradoxalmente, como Artista, preferiu dar-se a conhecer como homem provindo do sertão. Evidentemente, esse homem do sertão já não é do sertão, apenas a formalização do ser, em suas narrativas, foi feita em cima das formas-pensamento sertanejas. O Artista Literário nascido no sertão lembra do sertão da infância, ou melhor, recorda (sentido etimológico) o sertão, não sendo mais do sertão. Ele assume o sertão que está presente em seus pensamentos questionadores, quando questiona as imperfeições do mundo moderno. O Sertão de suas narrativas é puro, porque foi vivenciado nos anos da infância e juventude; o Sertão continua puro nas recordações do indivíduo, porque este, como Artista, manipula essa pureza, ao descrevê-lo ficcionalmente. Assim, quando Guimarães diz a Lorenz, na Entrevista, eu sou antes de mais nada um homem do sertão, ele sabe intimamente que já não é do sertão; ao categorizar, ele já não é mais sertanejo. E é graças a esta singular matéria de vida, íntima e social, que a sua narrativa não se insere no âmbito do coletivo; sua arte é moderna, melhor ainda, pós-moderna, e, paradoxalmente, evita realçar os recentes valores da pós-modernidade. O Artista, enquanto narrador sertanejo, não se identifica com as aspirações e valores de seu tempo, mas, ao mesmo tempo, não pode furtar-se a se expressar como narrador do século XX, e isto se evidencia em seu discurso.

O mundo sertanejo de Rosa é um núcleo perfeito, seus personagens também, mas o narrador reflete as imperfeições de sua realidade vivencial. A ótica do narrador se encontra fragmentada (característica da ficção pós-moderna), porque não se atém ao tempo linear. O narrador já alcançou um plano em que o passar histórico não conta, prevalecendo mais o desejo de preencher as lacunas da memória com um discurso insólito repleto de tensão lírica. Recuperando os ensinamentos de Bachelard sobre o tempo: importa-lhe mais destacar o que se encontra suspenso entre o repouso e a ação. E é graças a esse momento, suspenso entre o repouso e a ação, que o narrador sai da objetividade histórica e se enreda em seus próprios circunlóquios, tenta trazer à luz o que pressentiu, em termos de narrativa, a partir de seu próprio repouso, que está vinculado ao repouso do Artista Literário sertanejo e ao mesmo tempo citadino, e, que se encontra estacionado no plano da reflexão profunda.

As recordações da infância no sertão, certamente, marcaram o ficcionista Guimarães Rosa. As histórias de senhores-de-terra valentes encontraram ressonância em seu espírito. Mas essas recordações só foram realmente recuperadas por meio dos posteriores questionamentos vivenciais. Depois que seu narrador de A HORA E VEZ DE AUGUSTO MATRAGA (minha matéria de reflexão) desorganizou temporalmente a narrativa, dissociando-se da aparente realidade das lembranças (enquanto produto da memória), só então conseguiu livrar-se da narrativa sintagmática. O escritor pode manifestar um sertão só dele, íntimo e poético, imune às exigências econômicas e sociais da decadente modernidade, apesar de, eventualmente, refletir algumas imperfeições do mundo burguês. Observando este sertão diferente, o leitor se conscientiza do subdesenvolvimento que o atinge, porque a consciência da crise está nele (extra-texto), e por isso ele pode desenvolver uma comparação racional, refletir as diferenças que existem entre os dois sertões: o real e o ficcional.

É importante reconhecer que os personagens de João Guimarães Rosa, pós-Augusto Matraga, não são marcados pelo subdesenvolvimento que os circunda, são simplesmente sertanejos e agem como sertanejos, e, sobretudo, não são alienados, porque qualquer narrativa que propicie reflexão, e que tenha como base os problemas de uma outra realidade, não pode ser considerada alienada. Se nos primeiroas narrativas de Sagarana visualizou-se a consciência do subdesenvolvimento, centrada em problemas regionais (vide "Sarapalha"), a dimensão regional posteriormente passa para o plano universal, graças a uma técnica de narrativa refinada, que propicia a transfiguração do sertão, e que, paradoxalmente, não deixa de refletir os valores do mundo sertanejo. Essa transfiguração do sertão se faz por meio do discurso poético-narrativo, do monólogo interior, da visão simultânea e outras técnicas discursivas próprias do discurso pós-moderno, levando o leitor a refletir suas próprias substâncias de vida e se conscientizar do subdesenvolvimento do país.

O narrador, universalizando o sertão, extrapassa os contornos geográficos do sertão mineiro, apropriando-se, para dar credibilidade ao relato, das íntimas recordações de seu criador, de sua infância sertaneja, de sua ampla visão, plurissignificativa, de suas diversas experiências de vida como Artista Literário do século XX. O narrador sertanejo de Guimarães Rosa impõe-se como porta-voz de um homem nato de um mundo puro, mas que alcançou outros patamares no impuro mundo moderno.

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