NEUZA
MACHADO - DO
PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL
Na
maioria das vezes, e porque também, como habitantes de um país de Terceiro
Mundo, somos produtos de colonizadores mentais, as pessoas comuns não valorizam
a inteligência, preferem seguir modismos que massificam, que transformam os
indivíduos em uma só massa pensante. A função da inteligência é questionar,
argumentar, refletir, pensar e repensar sobre a validade da direção do impulso
massificador. A consciência pura, de
acordo com Bachelard, pode assim fazer uma boa escolha, porque está no auge de
sua lucidez, de seu juízo, de seu bom-senso, agenciando o livre-arbítrio. Ela
seria então o eu consciente, lucidamente equilibrado, repleto de força e
capacidade de escolha. Nesse estágio de lucidez, o indivíduo pode ficar em
estado de vigilância, pode esperar que alguma coisa se manifeste, que surja
alguma intuição ou oportunidade, pode aguardar e guardar (baú de memórias);
pode vigiar para que não entre em seu mundo interior (mundo do eu profundo) qualquer
conhecimento nocivo. Por isto, não posso falar em influência, no sentido
depreciativo, em Guimarães Rosa. Sua consciência
particular, ao recontar o sertão, as tradições sertanejas, não estava
submetida às pressões do mundo moderno, estava em completo estado de liberdade.
Sua consciência particular não se
incomodava mais com os juízos de valor do mundo vital, com as cobranças
sociais; sua consciência particular
extasiava-se mais com a descoberta de
um mundo sertanejo singular, nascido das emoções sinceras.
E foi
esta consciência pura que fez
Guimarães Rosa mudar a face/fase de seu narrador, em A
hora e vez de Augusto Matraga, última narrativa do corpus de Sagarana
(1946), narrativa que cronologicamente poderia se inserir no momento agudo da
conscientização de subdesenvolvimento e, conseqüentemente, transmitir as
características que marcaram essa tomada de consciência, e que, felizmente, a
partir daí, não são detectadas.
Mudando
a forma de narrar, ele coloca em evidência seus próprios objetivos individuais
de homem que já alcançou um plano elevado dentro dos vários patamares que
compõem o pensamento individual. Seus narradores, a partir de A hora e vez de Augusto MATRAGA,
deixaram de agir impulsionados pelo elan vital, pelo arrebatamento súbito e
efêmero, apropriando-se da inteligência de quem os criou e deu-lhes forma
ficcional. Esses narradores assumem a inteligência do próprio escritor,
questionando, argumentando, refletindo sobre os acontecimentos da narrativa e
sobre a direção a ser seguida, guiando os impulsos criadores que partem de sua
poderosa intuição. Assim, nas últimas seqüências, o personagem Nhô Augusto pode
se encantar com as minúcias da natureza, enquanto o narrador poetizava o
sertão. O narrador, apropriando-se da função especulativa do Artista, criou um
mundo diferente, um sertão diferente, embalado pelo prazer de estar ancorado
numa dimensão particular, auto-reflexiva, pouco se incomodando com as opiniões
externas. O narrador, por intermédio desse Artista incomum, escolheu falar de
um sertão muito particular, suspenso num momento onde o antes não conta, e o
que virá, em termos históricos, também não.
O
ficcionista sertanejo, já no âmbito da consciência
pura, amparado pelo livre-arbítrio, intuiu o momento da manifestação do
narrador suprafísico (pós-moderno), suplantando o narrador experiente. Esperou,
enquanto se posicionava como contador de estórias (as narrativas de Sagarana que antecedem A hora e vez de Augusto Matraga),
a oportunidade de se libertar das pressões do mundo. No plano da consciência
particular, já não lhe importa o julgamento de seus pares, em relação a sua
criatividade, e, exatamente por isto, faz sucesso e passa a ser reconhecido
como grande escritor. O sertão nascido do eu consciente estará assim imune às
críticas do meio socio-intelectual. Um espaço que sempre foi depreciado pelas
elites vem à luz em forma de narrativa, sob a égide de uma consciência
auto-reflexiva convencida do próprio valor, e que não se incomoda mais em se
dizer sertaneja (ou caipira), mesmo que já tenha alcançado outros graus no
plano das exigências do mundo.
Sabemos que a
obra exige necessariamente a presença do artista criador. O que chamamos arte
coletiva é a arte criada pelo indivíduo a tal ponto identificado às aspirações
e valores do seu tempo, que parece dissolver-se nele, sobretudo levando em
conta que, nestes casos, perde-se quase sempre a identidade do
criador-protótipo.92
Para
Antônio Cândido, a obra de arte exige a presença do Criador. No caso específico
da Arte Literária, modalidade narrativa, alguns teóricos procuram separar
Artista e narrador, como, por exemplo, Barthes (já anteriormente citado),
quando diz que o narrador é personagem como outro qualquer e que não se deve
confundi-lo com o Artista. Particularmente, penso no narrador como personagem
(como o quer Barthes), mas também não posso deixar de pensar no mesmo como
parte integrante do Artista, pois nele se instala ou se desenvolve sua face
ficcional.
Na obra
de Rosa, há a presença de suas íntimas recordações (matéria lírica), preciosas
recordações de um homem nato do sertão mineiro (sertão rude), mas que alcançou
honrarias no âmbito hierarquizante da sociedade; mas, principalmente, há a
presença do indivíduo moderno, paradoxal e questionador, em conflito com
valores que se opõem. Guimarães Rosa, desenvolvendo seus diversos talentos,
posicionou-se positivamente diante da sociedade elitista, alcançou
credibilidade, mas, paradoxalmente, como Artista, preferiu dar-se a conhecer
como homem provindo do sertão. Evidentemente, esse homem do sertão já não é do sertão, apenas a formalização do ser,
em suas narrativas, foi feita em cima das formas-pensamento sertanejas. O
Artista Literário nascido no sertão lembra do sertão da infância, ou melhor,
recorda (sentido etimológico) o sertão, não sendo mais do sertão. Ele assume o
sertão que está presente em seus pensamentos questionadores, quando questiona
as imperfeições do mundo moderno. O Sertão de suas narrativas é puro, porque
foi vivenciado nos anos da infância e juventude; o Sertão continua puro nas
recordações do indivíduo, porque
este, como Artista, manipula essa pureza, ao descrevê-lo ficcionalmente. Assim,
quando Guimarães diz a Lorenz, na Entrevista, eu sou antes de mais nada um homem do sertão, ele sabe intimamente
que já não é do sertão; ao categorizar, ele já não é mais sertanejo. E é graças
a esta singular matéria de vida, íntima e social, que a sua narrativa não se
insere no âmbito do coletivo; sua arte é moderna, melhor ainda, pós-moderna, e,
paradoxalmente, evita realçar os recentes valores da pós-modernidade. O
Artista, enquanto narrador sertanejo, não se identifica com as aspirações e
valores de seu tempo, mas, ao mesmo tempo, não pode furtar-se a se expressar
como narrador do século XX, e isto se evidencia em seu discurso.
O mundo
sertanejo de Rosa é um núcleo perfeito, seus personagens também, mas o narrador
reflete as imperfeições de sua realidade vivencial. A ótica do narrador se
encontra fragmentada (característica da ficção pós-moderna), porque não se atém
ao tempo linear. O narrador já alcançou um plano em que o passar histórico não
conta, prevalecendo mais o desejo de preencher as lacunas da memória com um
discurso insólito repleto de tensão lírica. Recuperando os ensinamentos de
Bachelard sobre o tempo: importa-lhe mais destacar o que se encontra suspenso
entre o repouso e a ação. E é graças a esse momento, suspenso entre o repouso e
a ação, que o narrador sai da objetividade histórica e se enreda em seus
próprios circunlóquios, tenta trazer à luz o que pressentiu, em termos de
narrativa, a partir de seu próprio repouso, que está vinculado ao repouso do
Artista Literário sertanejo e ao mesmo tempo citadino, e, que se encontra
estacionado no plano da reflexão profunda.
As
recordações da infância no sertão, certamente, marcaram o ficcionista Guimarães
Rosa. As histórias de senhores-de-terra valentes encontraram ressonância em seu
espírito. Mas essas recordações só foram realmente recuperadas por meio dos
posteriores questionamentos vivenciais. Depois que seu narrador de A HORA
E VEZ DE AUGUSTO MATRAGA (minha matéria de reflexão) desorganizou temporalmente a narrativa,
dissociando-se da aparente realidade das lembranças (enquanto produto da
memória), só então conseguiu livrar-se da narrativa sintagmática. O escritor
pode manifestar um sertão só dele, íntimo e poético, imune às exigências
econômicas e sociais da decadente modernidade, apesar de, eventualmente,
refletir algumas imperfeições do mundo burguês. Observando este sertão
diferente, o leitor se conscientiza do subdesenvolvimento que o atinge, porque
a consciência da crise está nele (extra-texto), e por isso ele pode desenvolver
uma comparação racional, refletir as diferenças que existem entre os dois
sertões: o real e o ficcional.
É
importante reconhecer que os personagens de João Guimarães Rosa, pós-Augusto
Matraga, não são marcados pelo subdesenvolvimento que os circunda, são
simplesmente sertanejos e agem como sertanejos, e, sobretudo, não são
alienados, porque qualquer narrativa que propicie reflexão, e que tenha como
base os problemas de uma outra realidade, não pode ser considerada alienada. Se
nos primeiroas narrativas de Sagarana
visualizou-se a consciência do subdesenvolvimento, centrada em problemas
regionais (vide "Sarapalha"), a dimensão regional posteriormente
passa para o plano universal, graças a uma técnica de narrativa refinada, que
propicia a transfiguração do sertão, e que, paradoxalmente, não deixa de
refletir os valores do mundo sertanejo. Essa transfiguração do sertão se faz
por meio do discurso poético-narrativo, do monólogo interior, da visão
simultânea e outras técnicas discursivas próprias do discurso pós-moderno,
levando o leitor a refletir suas próprias substâncias de vida e se
conscientizar do subdesenvolvimento do país.
O
narrador, universalizando o sertão, extrapassa os contornos geográficos do
sertão mineiro, apropriando-se, para dar credibilidade ao relato, das íntimas
recordações de seu criador, de sua infância sertaneja, de sua ampla visão,
plurissignificativa, de suas diversas experiências de vida como Artista
Literário do século XX. O narrador sertanejo de Guimarães Rosa impõe-se como
porta-voz de um homem nato de um mundo
puro, mas que alcançou outros patamares no impuro mundo moderno.
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