segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

NEUZA MACHADO - DO PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL

NEUZA MACHADO - DO PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL



Não me interessa o dinheiro: venho de um mundo onde ele não adianta muito; lá se necessita de pão, armas, cavalos, e ainda se pratica o comércio da troca.76

Mundo autêntico, porque as recordações são autênticas. O leitor também acredita na autenticidade desse mundo, porque acredita naquele que o projetou. É preciso provir do sertão e ao mesmo tempo alcançar o respeito do grupo, para projetar esse sertão, legitimá-lo, impingi-lo a uma determinada classe (que o rejeitaria de outro modo), sem a ocorrência de uma ruptura. Provindo do sertão, aceito em um reduzido grupo de altíssimo teor intelectual, demonstrou não ter-se identificado completamente com a sociedade moderna que o adotou (ou foi adotada por ele). Enquanto participante ativo de uma determinada realidade social, envolveu-se, identificou-se exteriormente com o meio que o acolheu, assumiu diversos papéis, mas não rompeu com seu espaço de origem, exaltando-o na ficção.

Não houve ruptura na representação, porque sua personalidade ficou intacta. Não houve embaraços, porque ele conseguiu separar as suas diversas faces em papéis diferentes aceitos pela sociedade. A sua influência ultrapassou os limites do exigido, graças a sua capacidade criativa. O ficcionista fez seu narrador-personagem representar um papel que poderia levá-lo ao descrédito. Confiou em sua criatividade e venceu. Venceu a probabilidade de ruptura com o meio social; dominou o jogo da representação e seus leitores; fez seu verdadeiro eu irromper-se, representando sua face sertaneja. A representação foi autêntica e transmitiu impressões reais, informações que subjaziam em suas recordações e que foram recriadas sem falsas interferências.


II.4 - Aprendendo a administrar Conflitos

O avanço político, que é o mais difícil e importante de todos que logra o homem, faz-se aprendendo a administrar conflitos. Daí que só as sociedades democráticas o realizam com segurança. Trata-se de manter a sociedade aberta, num mundo de crescente interdependência, preservando e exercendo a capacidade de auto-governo. É um problema com mais incógnitas do que equações. Mas será que existe solução para todos os problemas que envolvem o destino dos homens?77

Em OS ARES DO MUNDO, C. Furtado procura reexaminar as estruturas do poder mundial (principalmente as estruturas de poder da América do Norte) e as conseqüências desse domínio na problemática desenvolvimento-subdesenvolvimento, questão que atinge vários países e está longe de ser solucionada. Refletindo sobre a dependência a que estão submetidos os países do Terceiro Mundo ("presos na armadilha do subdesenvolvimento"78, dominados por grandes potências mundiais), e reexaminando as substâncias ideológicas que estruturam essas camadas de poder, C. Furtado questiona os problemas dessas nações subdesenvolvidas, especialmente os problemas do Brasil, e se pergunta, no primeiro capítulo de suas reflexões: "que rumo tomar?"79.

Num país hierarquizante, onde uma minoria possui as armas para dominar os menos favorecidos socialmente, minoria que também se submete a poderes externos, é impossível parar para pensar o rumo a ser seguido. Na verdade, os habitantes de tal país são levados caoticamente pelas engrenagens de um poder, cujas bases repousam fora de seus limites sócio-existenciais.

Se reflito sobre o início da História do Brasil, constato que esta pergunta, que rumo tomar?, poderia ser formulada a partir do desenvolvimento histórico-social do país. O próprio Celso Furtado afirma que "as lutas sociais do século XX são caudatárias de ideologias concebidas nos dois séculos anteriores, particularmente no XIX"80. E é com pesar que o sociólogo reconhece que essas lutas não conseguem reconstruir as estruturas inicialmente mal elaboradas. E é exatamente esta mal formação social que vai impedir a autonomia sócio-política dos países subdesenvolvidos.

Observando especificamente o Brasil, um país que foi, ao longo de sua história, marcado politicamente por várias etapas conflituosas, é possível raciocinar a impossibilidade de aprender a administrar conflitos. Sérgio Buarque de Holanda, em RAÍZES DO BRASIL81, desnuda o modo de ser do homem brasileiro, sua cordialidade; desnuda o caráter de quem herdou historicamente uma personalidade paradoxal, misto de trabalho e aventura. Com ele, observa-se que o princípio histórico não favoreceu o desenvolvimento de uma aprendizagem segura, uma vez que as condições naturais do país, aliadas ao domínio de um povo, em que o culto da personalidade impelia à separação ao invés da união, impediram tal aprendizagem. Assim, atrevo-me a falar da dificuldade que temos em aprender a administrar conflitos, ao mesmo tempo em que sinto a quase impossibilidade de se achar a solução para os problemas que envolvem o destino dos brasileiros.

No que se relaciona à literatura, esta sempre procurou refletir tais problemas. Conscientemente ou intuitivamente os escritores brasileiros registraram as suas impressões, desenvolvendo idéias próprias sobre a realidade que os cercava.

Antônio Cândido, sociólogo consciente dos problemas de base da realidade brasileira, no artigo "Literatura e subdesenvolvimento"82, ressalta as idéias de Mário Vieira de Mello sobre as duas fases que predominaram no Brasil no âmbito da literatura (a idéia de país novo, até 1930, e, posteriormente, de país subdesenvolvido), e como os escritores de cada fase viam a realidade circundante. Desde o Descobrimento, os escritores elaboraram uma literatura exaltada e utópica, celebrando as belezas naturais e pouco se preocupando com os problemas sociais. A partir de 1930, surge a conscientização dos problemas e esta conscientização traz uma repercussão que provoca a noção clara do subdesenvolvimento. A partir daí, esquece-se a euforia inicial, a linguagem de celebração, a idéia de terra bela / pátria grande, e passam a desenvolver uma ficção concentrada numa visão pessimista, em que afloram a miséria e a incultura.

Com o passar do tempo, dera-me conta de que a fraqueza maior do Terceiro Mundo estava no plano das idéias: éramos colonizados mentalmente, por um lado, e por outro permanecíamos prisioneiros de velhas doutrinas "revolucionárias" que haviam passado de moda nos centros metropolitanos.83

Revisitando a História e observando as idéias de Celso Furtado, Sérgio B. de Holanda e Antônio Cândido, constato que esta colonização surgiu a partir de 1939, no decorrer da 2ª Guerra Mundial, com o advento do fascismo, do nazismo, do socialismo e, sobretudo, com a elevação dos Estados Unidos em primeira potência mundial. Se o Brasil já era historicamente um país colonizado, mal formado, não foi difícil a colonização mental, a submissão às idéias externas, diferentes de nossa realidade.

E é a partir daí que o Brasil se industrializa e os camponeses começam a abandonar o campo, buscando melhores condições de vida na cidade. Com isto, os centros urbanos mais visados pelos camponeses (em particular, os do Nordeste) se transformaram em cidades superpovoadas, redutos de miséria e degeneração. Nesse ínterim, enquanto o Brasil foi se aburguesando e se submetendo à colonização mental, os intelectuais (alguns) procuraram se refugiar na religião, a cultura procurou refletir os problemas do país, os artistas desenvolveram ideais políticos, enfim, a realidade brasileira passou a ser desnudada por uma minoria consciente.

No dia em que o mundo rural se achou desagregado e começou a ceder rapidamente à invasão impiedosa do mundo das cidades, entrou também a decair (...) todo o ciclo das influências ultramarinas específicas de que foram portadores os portugueses. / Se a forma de nossa cultura ainda permanece largamente ibérica e lusitana, deve-se atribuir tal fato sobretudo às insuficiências do "americanismo", que se resume até agora, em grande parte, numa sorte de exacerbamento de manifestações estranhas, de decisões impostas de fora, exteriores à terra. O americano ainda é interiormente inexistente.84


Essa desagregação do mundo rural começou no século XIX e atingiu seu ápice nos dois decênios iniciais do século XX. Assim em suas reflexões, Sérgio Buarque de Holanda já falava em decisões impostas de fora bem antes de Celso Furtado, se detenho-me em comparar as datas em que ambos raciocinaram sobre os problemas internos do Brasil.

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