NEUZA
MACHADO - DO
PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL
Não me
interessa o dinheiro: venho de um mundo onde ele não adianta muito; lá se
necessita de pão, armas, cavalos, e ainda se pratica o comércio da troca.76
Mundo
autêntico, porque as recordações são autênticas. O leitor também acredita na
autenticidade desse mundo, porque acredita naquele que o projetou. É preciso provir do sertão e ao mesmo
tempo alcançar o respeito do grupo, para projetar esse sertão, legitimá-lo,
impingi-lo a uma determinada classe (que o rejeitaria de outro modo), sem a
ocorrência de uma ruptura. Provindo do sertão, aceito em um reduzido grupo de
altíssimo teor intelectual, demonstrou não ter-se identificado completamente
com a sociedade moderna que o adotou (ou foi adotada por ele). Enquanto
participante ativo de uma determinada realidade social, envolveu-se,
identificou-se exteriormente com o meio que o acolheu, assumiu diversos papéis,
mas não rompeu com seu espaço de origem, exaltando-o na ficção.
Não
houve ruptura na representação, porque sua personalidade ficou intacta. Não
houve embaraços, porque ele conseguiu separar as suas diversas faces em papéis
diferentes aceitos pela sociedade. A sua influência ultrapassou os limites do
exigido, graças a sua capacidade criativa. O ficcionista fez seu
narrador-personagem representar um papel que poderia levá-lo ao descrédito.
Confiou em sua criatividade e venceu. Venceu a probabilidade de ruptura com o
meio social; dominou o jogo da representação e seus leitores; fez seu
verdadeiro eu irromper-se, representando sua face sertaneja. A representação
foi autêntica e transmitiu impressões reais, informações que subjaziam em suas
recordações e que foram recriadas sem falsas interferências.
O avanço
político, que é o mais difícil e importante de todos que logra o homem, faz-se
aprendendo a administrar conflitos. Daí que só as sociedades democráticas o
realizam com segurança. Trata-se de manter a sociedade aberta, num mundo de
crescente interdependência, preservando e exercendo a capacidade de
auto-governo. É um problema com mais incógnitas do que equações. Mas será que
existe solução para todos os problemas que envolvem o destino dos homens?77
Em OS
ARES DO MUNDO, C. Furtado procura reexaminar as estruturas do poder
mundial (principalmente as estruturas de poder da América do Norte) e as
conseqüências desse domínio na problemática desenvolvimento-subdesenvolvimento,
questão que atinge vários países e está longe de ser solucionada. Refletindo
sobre a dependência a que estão submetidos os países do Terceiro Mundo
("presos na armadilha do subdesenvolvimento"78, dominados por grandes
potências mundiais), e reexaminando as substâncias ideológicas que estruturam
essas camadas de poder, C. Furtado questiona os problemas dessas nações
subdesenvolvidas, especialmente os problemas do Brasil, e se pergunta, no
primeiro capítulo de suas reflexões: "que rumo tomar?"79.
Num
país hierarquizante, onde uma minoria possui as armas para dominar os menos favorecidos socialmente, minoria que
também se submete a poderes externos, é impossível parar para pensar o rumo a
ser seguido. Na verdade, os habitantes de tal país são levados caoticamente
pelas engrenagens de um poder, cujas bases repousam fora de seus limites
sócio-existenciais.
Se
reflito sobre o início da História do Brasil, constato que esta pergunta, que rumo tomar?, poderia ser formulada a
partir do desenvolvimento histórico-social do país. O próprio Celso Furtado
afirma que "as lutas sociais do século XX são caudatárias de ideologias
concebidas nos dois séculos anteriores, particularmente no XIX"80. E é com
pesar que o sociólogo reconhece que essas lutas não conseguem reconstruir as
estruturas inicialmente mal elaboradas. E é exatamente esta mal formação social
que vai impedir a autonomia sócio-política dos países subdesenvolvidos.
Observando
especificamente o Brasil, um país que foi, ao longo de sua história, marcado
politicamente por várias etapas conflituosas, é possível raciocinar a
impossibilidade de aprender a administrar
conflitos. Sérgio Buarque de Holanda, em RAÍZES DO BRASIL81, desnuda o
modo de ser do homem brasileiro, sua cordialidade; desnuda o caráter de quem
herdou historicamente uma personalidade paradoxal, misto de trabalho e
aventura. Com ele, observa-se que o princípio histórico não favoreceu o
desenvolvimento de uma aprendizagem segura, uma vez que as condições naturais
do país, aliadas ao domínio de um povo, em que o culto da personalidade impelia
à separação ao invés da união, impediram tal aprendizagem. Assim, atrevo-me a
falar da dificuldade que temos em aprender a administrar conflitos, ao mesmo
tempo em que sinto a quase impossibilidade de se achar a solução para os
problemas que envolvem o destino dos brasileiros.
No que
se relaciona à literatura, esta sempre procurou refletir tais problemas.
Conscientemente ou intuitivamente os escritores brasileiros registraram as suas
impressões, desenvolvendo idéias próprias sobre a realidade que os cercava.
Antônio
Cândido, sociólogo consciente dos problemas de base da realidade brasileira, no
artigo "Literatura e subdesenvolvimento"82, ressalta as idéias de Mário Vieira
de Mello sobre as duas fases que predominaram no Brasil no âmbito da literatura
(a idéia de país novo, até 1930, e,
posteriormente, de país subdesenvolvido),
e como os escritores de cada fase viam a realidade circundante. Desde o
Descobrimento, os escritores elaboraram uma literatura exaltada e utópica,
celebrando as belezas naturais e pouco se preocupando com os problemas sociais.
A partir de 1930, surge a conscientização dos problemas e esta conscientização
traz uma repercussão que provoca a noção clara do subdesenvolvimento. A partir
daí, esquece-se a euforia inicial, a linguagem de celebração, a idéia de terra bela / pátria grande, e passam a
desenvolver uma ficção concentrada numa visão pessimista, em que afloram a
miséria e a incultura.
Com o passar do
tempo, dera-me conta de que a fraqueza maior do Terceiro Mundo estava no plano
das idéias: éramos colonizados mentalmente, por um lado, e por outro
permanecíamos prisioneiros de velhas doutrinas "revolucionárias" que
haviam passado de moda nos centros metropolitanos.83
Revisitando
a História e observando as idéias de Celso Furtado, Sérgio B. de Holanda e
Antônio Cândido, constato que esta colonização surgiu a partir de 1939, no
decorrer da 2ª Guerra Mundial, com o advento do fascismo, do nazismo, do
socialismo e, sobretudo, com a elevação dos Estados Unidos em primeira potência
mundial. Se o Brasil já era historicamente um país colonizado, mal formado, não foi difícil a colonização mental, a submissão às
idéias externas, diferentes de nossa realidade.
E é a
partir daí que o Brasil se industrializa e os camponeses começam a abandonar o
campo, buscando melhores condições de vida na cidade. Com isto, os centros
urbanos mais visados pelos camponeses (em particular, os do Nordeste) se
transformaram em cidades superpovoadas, redutos de miséria e degeneração. Nesse
ínterim, enquanto o Brasil foi se aburguesando
e se submetendo à colonização mental,
os intelectuais (alguns) procuraram se refugiar na religião, a cultura procurou
refletir os problemas do país, os artistas desenvolveram ideais políticos,
enfim, a realidade brasileira passou a ser desnudada por uma minoria
consciente.
No dia em que o
mundo rural se achou desagregado e começou a ceder rapidamente à invasão
impiedosa do mundo das cidades, entrou também a decair (...) todo o ciclo das
influências ultramarinas específicas de que foram portadores os portugueses. /
Se a forma de nossa cultura ainda permanece largamente ibérica e lusitana,
deve-se atribuir tal fato sobretudo às insuficiências do
"americanismo", que se resume até agora, em grande parte, numa sorte
de exacerbamento de manifestações estranhas, de decisões impostas de fora,
exteriores à terra. O americano ainda é interiormente inexistente.84
Essa
desagregação do mundo rural começou no século XIX e atingiu seu ápice nos dois
decênios iniciais do século XX. Assim em suas reflexões, Sérgio Buarque de
Holanda já falava em decisões impostas de
fora bem antes de Celso Furtado, se detenho-me em comparar as datas em que
ambos raciocinaram sobre os problemas internos do Brasil.
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