NEUZA
MACHADO - DO
PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL
O sonho
do personagem Nhô Augusto é a passagem do tempo horizontal para o tempo
vertical, ambos reais, mas esta passagem, em verdade, está ligada ao Artista
Literário, enquanto personalidade ativa do mundo vital. Sob o predomínio do
ficcional e servindo-se do sonho do personagem, o Artista, direcionando o
narrador, quebra o eixo temporal,
linear, que o mantinha preso à História, encaminhando-se verticalmente em
direção ao Desconhecido. O sonho do personagem é a libertação do Artista,
porque quem comanda o sonho, dentro do espaço da criação, é o Artista. O sonho
significa a liberdade criativa do Artista Literário. Nesse estado de espírito,
recontando o sonho do Nhô Augusto valendo-se da fala do narrador, ele alcança o
tempo instantâneo, lacunar, criando um espaço além da realidade histórica. O
sonho prolonga seu instante de raciocínio, induzindo-o a uma sensação de parada
no tempo e favorecendo a entrada do narrador no plano da criação, plano que, no
caso, é seu território particular. Com a quebra do ritmo normal da narrativa, o
próprio ficcionista (não o narrador) passou a desenvolver uma atividade nova,
reformalizando pensamentos, reflexões, meditações, enfim, repensando
verticalmente.
Bachelard
discrimina três níveis de pensamento, nomeando-os como cogito(1),
cogito(2) e cogito(3). O penso, logo existo cartesiano, de acordo com Bachelard, estaria
ligado ao cogito(1), aspecto prático do pensamento. Ao colocar esta
assertiva no cogito(1), Bachelard não pretende desmerecer as idéias
de Descartes, apenas tem consciência de que o filósofo do século XVII ainda
estava vivenciando o início de um novo ciclo na história do pensamento
ocidental.
No
plano do cogito(1), o sujeito não precisa pensar, simplesmente
repete o que já foi pensado antes por alguém mais esclarecido. O cogito(1)
estaria portanto ligado às três dimensões do mundo visível (altura, comprimento
e largura), repetindo apenas a realidade. Na repetição, ainda segundo
Bachelard, a realidade se mantém, não há quebras, só preenchimentos, que
reforçam o linear. Há uma história seqüencial que permite segurança,
estabilidade e acomodação.
Falando
de uma segunda etapa do pensamento, ou o penso
que penso, Bachelard caracteriza um segundo cogito, prevendo ou antecipando
ou planejando um pensamento, que vai gerar uma ação inédita, ação esta que se
está desenvolvendo e vai chegar a uma evidência posteriormente. O cogito(2) liga-se também ao tempo linear, mas já permite
um avanço no tempo vertical, formalizando uma complexidade inicial de
pensamento. Com o cogito(2), mesmo ligado às paixões, ao tempo
linear, já se começa a verticalizar o pensamento com dúvidas e argumentações.
Imaginando
que o plano horizontal esteja ligado à vivência, enquanto realidade, e o plano
vertical, ligado à existência, enquanto formalização do ser, e descobrindo com
Bachelard um terceiro estágio do pensamento, deduz-se que este pensamento
superior concentraria por sua vez os três planos (o que Bachelard denomina como
cogito ao cubo) e seria o limite do poder formalizante. Este terceiro estágio
do pensamento, ou o penso que penso que
penso, ou cogito(3), além de liberar o pensamento da descrição
fenomênica, enquanto Doutrina específica, possibilita o indivíduo a nomear as
"existências consecutivas"140, ligadas às superposições temporais, baseado
apenas na intuição.
Bachelard
esclarece que seu objetivo é esboçar suas idéias sobre o tempo vertical,
desenvolvendo passo a passo o caminho que leva ao tempo infinito, tempo
espiritual, o qual só pode ser captado pela intuição. Seu raciocínio se
desenvolve com base em uma descrição intuitiva ao nível da inspiração, e,
exercitando-a, descobre que esta descrição é perfeitamente adaptável ao tempo
presente. Impulsionado por este exercício, procura tornar acessível a sabedoria
do espiritual, adaptada ao tempo do pensamento.
Auxiliada
por Bachelard, chego a um entendimento dos vários graus temporais inseridos na
narrativa A hora e vez de Augusto Matraga de Guimarães Rosa.
Se, nas
duas primeiras seqüências, o narrador roseano se ligou ao ato de pensar
cronológico, rememorando o passado, imitando
e dando continuidade ao passado, reforçando as experiências que lhe foram
legadas pela sua condição de herdeiro de valores sertanejos, a partir das
últimas seqüências da narrativa, ou melhor, especificamente a partir do sonho
de Nhô Augusto141,
passa a "pensar como alguém que pensa"142 o próprio destino da narrativa (e quem pensa é o Artista), introduzindo
uma determinada vontade de Poder no âmbito da narração, definindo a sua própria pessoa, nova pessoa, ser demiúrgico, como
único gerador de pensamentos e ações. Por isto, afirmei em minha PROPOSIÇÃO anterior (O
NARRADOR TOMA A VEZ) que o
narrador do século XX tomou a vez do personagem Augusto Matraga, porque
houve uma brecha na estória, no
momento em que ficcionista do século XX fez o narrador se aproximar do nível
extra-linear da narrativa. No decurso da evolução de seu próprio pensamento,
fez evoluir o narrador, transformou-o em um novo personagem, fazendo evoluir
também o personagem Nhô Augusto, ambos refletores de sua ação pensante.
No
início, repetindo o que já foi dito, Nhô Augusto destacou-se por sua
personalidade substancial, e o narrador experiente, à moda tradicional,
reproduziu uma "realidade embaraçada pelo peso das paixões e dos
instintos, entregue ao impulso do tempo transitivo"143.
Posteriormente,
o narrador, ainda experiente, ainda tradicional, mas propenso a uma mudança
temporal, foi levado, intencionalmente ou não, a quebrar o tempo linear da história, fazendo o personagem se
espiritualizar (sob o comando de dogmas religiosos), fazendo-o tomar
consciência de uma nova forma de ser. Na verdade, quem se conscientiza de uma
nova atividade formal, pensante, é o Artista do século XX, porque é ele que
conduz o narrador, eleva-o ao expoente três, libera-o pelo pensamento complexo,
concentra-o em si mesmo. Sob esta nova atitude pensante, o tempo vertical passa
a predominar na narrativa, permitindo ao narrador (nesta última seqüência, já
modificado) descrever a realidade sertaneja de Minas Gerais, baseando-se nos
pensamentos do Artista sobre o sertão mineiro. O narrador do século XX (agora alter ego do Artista, agora distanciado
dos valores da experiência comunitária) pensa ele mesmo, ou seja, o sertão é
ele, o sertão é o que ele pensa intuitivamente.
O
sertão, poetizado, em certos trechos
da narrativa, emerge instantâneo, oferecendo ao analista ou ao intérprete uma
visão completa e essencial de suas minúcias, visão esta que só poderá ser
entendida, se houver comunhão anímica entre Artista e Leitor. O narrador
roseano, nos trechos poetizados, imobiliza
o sertão do passado, recordando
transmutativamente, questionadoramente, dialeticamente, um tempo que ficou
indelevelmente suspenso em seu mundo imaginário.
Entretanto,
para que fique claro o meu pensamento sobre a narrativa assinalada, é preciso
dizer que estou analisando o raciocínio de um narrador, induzido evidentemente
pelo Artista Literário do século XX, situado em um plano de obra intermediário
entre o antes e o depois. A hora
e vez de Augusto Matraga faz parte de uma coletânea de
contos (Sagarana) da
primeira fase literária de Guimarães Rosa, ligada à narrativa linear, de contos
reprodutores de experiências fenomênicas. Esta última narrativa de Sagarana, aqui verificada,
antecede a obra máxima do autor, Grande
Sertão: Veredas. Depois do narrador de A
hora e vez de Augusto Matraga, quase todos os narradores roseanos passaram a pensar de acordo com
as características do cogito(3), sob a ação pensante do próprio
Artista/Criador. Além de Grande
Sertão: Veredas, as narrativas seguintes, como "A terceira
margem do rio", “Darandina” e outros contos complexos de Guimarães Rosa,
por exemplo, os contos de Tutaméia,
enquadram-se perfeitamente às idéias de Bachelard, sobre o tempo ou instantes
de tempo suspensos entre o antes e o depois.
No
tempo vertical ocorre uma eclosão de formas que nada têm a ver com a sucessão
de formas do tempo linear. Essa eclosão de formas do tempo vertical se encontra
no limite do tempo vital contínuo (sempre pensando verticalmente),
sobrepondo-se ao tempo vivido, participando também de todos os instantes. Esse
tempo pode adquirir também muita qualidade por ser um acúmulo de forças, que se
insere a seguir numa sucessão ordenada e que estaria no limiar de um outro
plano (do espírito) fora do vital.
No que
se refere ao fator subjetivo de formalização, a verdade do sujeito geralmente
se encontra fora do alcance do conhecimento objetivo. Só subjetivamente se
consegue a formalização, a definição, a concretização de uma idéia superior.
Bachelard,
mesmo querendo alcançar o plano do cogito(4), mesmo querendo
formalizar o descontínuo, alerta para o fato de que "a verdadeira região
do repouso formal, onde ficaríamos contentes de nos manter"144 é o cogito(3). Isto quer dizer que
apesar de estar acima do mundo fenomênico, pela inteligência, pela percepção
intuitiva, pelo desprendimento das paixões, pelo desenvolvimento de seu novo
ser, o filósofo opta pelo permanência consciente no referido cogito, primeiro
estágio de evolução do indivíduo superior, mas que, mesmo assim, ainda é um
estágio ligado à realidade física.
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