domingo, 8 de fevereiro de 2015

NEUZA MACHADO - DO PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL

NEUZA MACHADO - DO PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL

II.5  –  Resgatando Lembranças

Para observar a criação literária de Guimarães Rosa pelo prisma das idéias bachelardianas e tendo, como ponto de apoio, neste capítulo, seu estudo filosófico sobre a água e os sonhos, depreendi, em algumas narrativas roseanas, as duas imaginações assinaladas por Bachelard: a imaginação que dá vida à causa formal e a imaginação que dá vida à causa material93.

Ligado à imaginação formal (aos aspectos visíveis da natureza), ele encontrou seu impulso inicial de apreensão da matéria na novidade da descoberta de um sertão próximo à sua vida, mas ainda não devidamente explorado literariamente. Desta descoberta, surgiram as narrativas de Sagarana, nas quais seus narradores (ou um único narrador?) se divertem "com o pitoresco, com a variedade, com o acontecimento inesperado"94, resgatando um sertão primaveril, sob a orientação das lembranças inesquecíveis.

As estórias apreendidas nos serões interioranos das Gerais e os acontecimentos vividos na infância direcionam o seu olhar, submetido ao impulso da novidade, da descoberta, mas também, inicialmente, procurando revolver a poeira da terra sertaneja, o que possibilitará posteriormente a descoberta do âmago do sertão.

É possível, por estas razões, observar nas narrativas roseanas gradativamente as duas formas (formal e material, sendo que esta última em seus aspectos estáveis, em princípio, e dinâmicos nas fases seguintes), que compõem as forças imaginantes do ficionista, somadas à força da imaginação criadora, o que o impele a alcançar os cogitos superiores da consciência pura descrita por Gaston Bachelard.

É necessário que uma causa sentimental, uma causa do coração se torne uma causa formal para que a obra tenha a variedade do verbo, a vida cambiante da luz. Mas, além das imagens da forma, tantas vezes lembradas pelos psicólogos da imaginação, há (...) imagens da matéria, imagens diretas da matéria. A vista lhes dá nome, mas a mão as conhece. Uma alegria dinâmica as maneja, as modela, as torna mais leve. Essas imagens da matéria, nós as sonhamos substancialmente, intimamente, afastando as formas perecíveis, as vãs imagens, o devir das superfícies. Elas têm um peso, são um coração.95

A causa sentimental do Artista, nas primeiras narrativas de Sagarana, é o sertão de sua infância e juventude. As narrativas roseanas convivem, em princípio, com as lembranças e, posteriormente, com as recordações (matéria lírica, razão do coração), sob a forma de prosa repleta de teor poético. Esta causa sentimental, nas narrativas de Sagarana, se liga à imaginação formal, já que elas refletem os aspectos exteriores do sertão.

Em A hora e vez de Augusto Matraga, o agora Criador Literário alcança a imaginação material, inicialmente estável e posteriormente dinâmica, ou seja, descobre as imagens que surgem diretas da matéria, e o sertão se transmuda, emergindo diretamente de suas mãos demiúrgicas. A partir desta fase, há a introjeção profunda "no germe do ser para encontrar a sólida constância e a bela monotonia da matéria", mas é também a partir desta fase que o indivíduo consciente passa a atuar, remodelando seu espaço de origem, recriando-o, afastando "as formas perecíveis, as vãs imagens, o devir da superfície"96.

As duas forças convivem harmoniosamente em toda a obra roseana, mas é inegável que, a partir de A hora e vez de Augusto Matraga, a imaginação que dá vida à causa material, em seu aspecto dinâmico, se sobressai. É possível desta forma detectar nas posteriores narrativas, incluindo Grande Sertão: Veredas, a exclusão do tom oral das narrativas experientes, reconhecidamente ligadas à imaginação formal, reprodutoras de experiências de vida.

Teoricamente, posso dizer que há três dimensões espaciais compondo uma obra. Há por exemplo as dimensões real e mítica, sintagmáticas, ligadas ao plano da História, ponto de apoio indispensável para a realização da proposta de realidade ficcional. No plano paradigmático (vertical), há a dimensão mimética ou do imaginário-em-aberto, no qual se instalam as metáforas e as imagens maiores intimamente ligadas às recordações, privilégio exclusivo de um mundo não-substancial. Neste plano, estariam todas as imaginações da dimensão sintagmática, mas já livres das pulsões inconscientes, já submetidas a uma nova realidade imagética, renovadora dos arquétipos inconscientes. Submetida aos preceitos da filosofia bachelardiana, ouso afirmar que as duas dimensões lineares (ambas sintagmáticas) abrigariam, teoricamente (repito), as imaginações formal, material e falada, todas englobando imagens substanciais, palpáveis ou impalpáveis.

É válido realçar que qualquer texto (seja o didático: narrativas experientes, tratados de medicina, de filosofia, de religião, ou mesmo o texto-obra) deixa transparecer a dimensão histórica (real e mítica; a mítica sobressaindo-se menos em alguns casos), plano sintagmático, fechado, ideológico.


No texto didático, também conhecido como texto-objeto, de acordo com uma determinada nomenclatura teórica, além das literaturas assinaladas acima, enquadram-se também os textos literários que não alcançam a categoria de texto-arte. A literatura memorialista neste caso seria considerada como texto didático (paraliterário), porque a função do narrador é aconselhar, passar adiante as experiências comunitárias de um determinado núcleo social, incutir nos mais jovens o desejo de glorificar suas raízes valendo-se das experiências de guerra, parábolas moralistas, remanescentes de antigas tradições. Estes textos possuem aparência de literatura, comportam-se como literatura, mas não revelam a autêntica literatura, possuidora, além do plano linear e ideológico, de outras dimensões não-lineares.

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