NEUZA
MACHADO - DO
PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL
Para observar a
criação literária de Guimarães Rosa pelo prisma das idéias bachelardianas e
tendo, como ponto de apoio, neste capítulo, seu estudo filosófico sobre a água
e os sonhos, depreendi, em algumas narrativas roseanas, as duas imaginações
assinaladas por Bachelard: a imaginação que dá vida à causa formal e a
imaginação que dá vida à causa material93.
Ligado à
imaginação formal (aos aspectos visíveis da natureza), ele encontrou seu
impulso inicial de apreensão da matéria na novidade da descoberta de um sertão
próximo à sua vida, mas ainda não devidamente explorado literariamente. Desta
descoberta, surgiram as narrativas de Sagarana,
nas quais seus narradores (ou um único narrador?) se divertem "com o
pitoresco, com a variedade, com o
acontecimento inesperado"94, resgatando um sertão primaveril, sob a
orientação das lembranças inesquecíveis.
As estórias
apreendidas nos serões interioranos das Gerais e os acontecimentos vividos na
infância direcionam o seu olhar, submetido ao impulso da novidade, da
descoberta, mas também, inicialmente, procurando revolver a poeira da terra sertaneja, o que possibilitará
posteriormente a descoberta do âmago do sertão.
É possível, por
estas razões, observar nas narrativas roseanas gradativamente as duas formas (formal e material, sendo que esta
última em seus aspectos estáveis, em princípio, e dinâmicos nas fases
seguintes), que compõem as forças imaginantes do ficionista, somadas à força da
imaginação criadora, o que o impele a alcançar os cogitos superiores da
consciência pura descrita por Gaston Bachelard.
É necessário
que uma causa sentimental, uma causa do coração se torne uma causa formal para
que a obra tenha a variedade do verbo, a vida cambiante da luz. Mas, além das
imagens da forma, tantas vezes lembradas pelos psicólogos da imaginação, há
(...) imagens da matéria, imagens diretas
da matéria. A vista lhes dá nome, mas
a mão as conhece. Uma alegria dinâmica as maneja, as modela, as torna mais
leve. Essas imagens da matéria, nós as sonhamos substancialmente, intimamente,
afastando as formas perecíveis, as vãs imagens, o devir das superfícies. Elas
têm um peso, são um coração.95
A causa sentimental do Artista, nas primeiras
narrativas de Sagarana, é o
sertão de sua infância e juventude. As narrativas roseanas convivem, em
princípio, com as lembranças e, posteriormente, com as recordações (matéria
lírica, razão do coração), sob a
forma de prosa repleta de teor poético. Esta causa sentimental, nas narrativas
de Sagarana, se liga à imaginação
formal, já que elas refletem os aspectos exteriores do sertão.
Em A hora e vez de Augusto Matraga,
o agora Criador Literário alcança a imaginação
material, inicialmente estável e posteriormente dinâmica, ou seja, descobre as imagens que surgem diretas
da matéria, e o sertão se transmuda, emergindo diretamente de suas mãos
demiúrgicas. A partir desta fase, há a introjeção profunda "no germe do
ser para encontrar a sólida constância e a bela monotonia da matéria", mas
é também a partir desta fase que o indivíduo consciente passa a atuar,
remodelando seu espaço de origem, recriando-o, afastando "as formas
perecíveis, as vãs imagens, o devir da superfície"96.
As duas
forças convivem harmoniosamente em toda a obra roseana, mas é inegável que, a
partir de A hora e vez de Augusto Matraga,
a imaginação que dá vida à causa material, em seu aspecto dinâmico, se
sobressai. É possível desta forma detectar nas posteriores narrativas,
incluindo Grande Sertão: Veredas,
a exclusão do tom oral das narrativas experientes,
reconhecidamente ligadas à imaginação formal, reprodutoras de experiências de
vida.
Teoricamente,
posso dizer que há três dimensões espaciais compondo uma obra. Há por exemplo
as dimensões real e mítica, sintagmáticas, ligadas ao plano da História, ponto
de apoio indispensável para a realização da proposta de realidade ficcional. No
plano paradigmático (vertical), há a dimensão mimética ou do
imaginário-em-aberto, no qual se instalam as metáforas e as imagens maiores
intimamente ligadas às recordações, privilégio exclusivo de um mundo
não-substancial. Neste plano, estariam todas as imaginações da dimensão
sintagmática, mas já livres das pulsões inconscientes, já submetidas a uma nova
realidade imagética, renovadora dos arquétipos inconscientes. Submetida aos
preceitos da filosofia bachelardiana, ouso afirmar que as duas dimensões
lineares (ambas sintagmáticas) abrigariam, teoricamente
(repito), as imaginações formal, material e falada, todas englobando imagens
substanciais, palpáveis ou impalpáveis.
É
válido realçar que qualquer texto (seja o didático: narrativas experientes,
tratados de medicina, de filosofia, de religião, ou mesmo o texto-obra) deixa
transparecer a dimensão histórica (real e mítica; a mítica sobressaindo-se
menos em alguns casos), plano sintagmático, fechado, ideológico.
No
texto didático, também conhecido como texto-objeto, de acordo com uma
determinada nomenclatura teórica, além das literaturas assinaladas acima, enquadram-se
também os textos literários que não
alcançam a categoria de texto-arte. A literatura memorialista neste caso seria
considerada como texto didático (paraliterário), porque a função do narrador é aconselhar, passar adiante as
experiências comunitárias de um determinado núcleo social, incutir nos mais
jovens o desejo de glorificar suas raízes valendo-se das experiências de
guerra, parábolas moralistas, remanescentes de antigas tradições. Estes textos possuem aparência de literatura, comportam-se como literatura, mas não revelam a autêntica literatura,
possuidora, além do plano linear e ideológico, de outras dimensões
não-lineares.
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