segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

NEUZA MACHADO - DO PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL

NEUZA MACHADO - DO PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL


Mas não é o aspecto linear e metódico do tempo que motiva Bachelard a dialetizar a temática da duração. Ele prefere aproveitar apenas "a época feliz em que o homem se vê entregue a si mesmo, em que a reflexão se ocupa mais de organizar a inação do que servir a exigências externas e sociais"125. Então, aqui, poderei explorar o forçado repouso (vital) de Nhô Augusto, já fundamentando o início do repouso fervilhante do Artista. Não falarei, por ora, como direciona-me Bachelard, do Artista distanciado do mundo, retirado do mundo, fortalecido pela solidão moral (e isto já se pré-anuncia a partir da segunda seqüência da narrativa); falarei páginas adiante sobre o Artista a partir da terceira seqüência, na qual se destaca o aspecto impessoal do narrador (a partir daí seu indiscutível alter ego), descobrindo as "zonas de repouso", as "razões de repouso"126, sistematizando o próprio repouso e o repouso de seu personagem.

Por ora, o Artista, ainda preso ao aspecto metódico do tempo, organizou a inação vital de seu personagem, planejou para ele uma nova forma de vida, conscientizou-o do fracasso de sua vida passada, prenunciando a sua própria futura inação fervilhante. Mas, nessa segunda etapa da narrativa, seu narrador ainda se recupera linearmente, submetendo-se a exigências externas e sociais; e Nhô Augusto passa a ter novamente, como personagem carismático, uma vida estruturada, amparada pela personalidade. Nhô Augusto continua poderoso (poder carismático amparado pela divindade), portanto estrutura-se ainda dentro do tempo linear. Mas o escritor já se encontra no início da sistematização de seu próprio repouso fervilhante, ligado ao tempo do pensamento, e assim começa a mudar o sentido da narrativa, transformando, gradativamente, o narrador memorialista (terminologia de Walter Benjamim) em narrador moderno.

Ao elaborar a face carismática do personagem, ainda sob as normas da narrativa linear, o narrador penetrou em uma zona dogmática, que é a zona espiritual no sentido cristão, inserida na própria pessoa por intermédio da iniciação religiosa ou moral. Quando um ser entra na zona espiritual, sob a orientação cristã, deixa de ser pessoa e passa a fazer parte de um grupo, porque a personalização é incompatível com a divindade comum a todos os seres humanos, e assim assume uma postura de representante do divino com poderes, mas sem autoridade pessoal. Nessa dimensão (espiritualidade cristã) todos são iguais, não há individualidade. Não é sem razão que o personagem passa a trabalhar para os pretos que o salvaram antes; ele está submetido às leis lineares da ideologia cristã. A narrativa, destacando o herói carismático (segundo segmento), ainda é linear, porque se encontra no plano da ideologia religiosa. O narrador recupera as origens de vida do personagem, a sua religiosidade dos tempos de criança.

Enquanto durou a sua condição de homem poderoso, no aspecto mítico-social, Nhô Augusto — o rompente, o matador —, induzido por seu narrador memorialista, negou as coisas do espírito, no aspecto místico-cristão. O seu cotidiano de Todo-Poderoso distraiu sua mente das diretrizes dogmáticas da religião. Na segunda fase, antigas orientações espirituais vêm à tona, transformando-o num homem religioso.

De acordo com Bachelard, só o espírito (e o espírito, segundo Bachelard, não possui o sentido dado pela orientação cristã) promoveria o refluir do tempo vivido, permitindo novas formas conceituais do ser; e a máxima forma do Ser no ser, sob o domínio do conceito de divindade, é a carismática.

Assim, houve a separação, nas seqüências iniciais, entre vida e espírito, já à moda bachelardiana. Na primeira seqüência, antes da queda, o personagem não possui espiritualidade, porque, como o mesmo Bachelard reconhece, "o espírito poderia chocar-se com a vida, opor-se a hábitos inveterados"127. E, como esclarece o filósofo, quando isto acontece, ou seja, quando há o choque entre matéria e espírito, e o espírito sai vencedor, o espírito faz "o tempo refluir sobre si mesmo", suscitando "renovações do ser, retornos a condições iniciais"128. E é assim que Nhô Augusto, direcionado ainda pelo narrador memorialista, retorna no tempo em busca do passado, renovando seu ser, recuperando-se assim dos ferimentos. Retornando à religiosidade, plantada na infância pela avó religiosa, o personagem reconforta-se e recupera um novo tipo de poder. Nesta segunda seqüência, ouso inferir que o espírito é o vencedor (orientado pelos dogmas cristãos).

Bachelard diz que é pela reflexão fervilhante que o ser se liberta do elan vital. O elan vital induz o indivíduo a se afastar dos objetivos individuais, impulsiona-o no sentido de aceitar o já instituído socialmente sem questionamentos.

A inteligência, entregue à sua função especulativa, irá aparecer-nos como uma função que cria lazeres e os fortalece. A consciência pura irá aparecer-nos como uma potência de espera e de guarda, como uma liberdade e uma vontade de nada fazer.129

O narrador, nesta narrativa A hora e vez de Augusto Matraga, está em vias de se liberar do elan vital, e isto promove também a libertação do Artista. Ele contou as peripécias de vida do personagem, refez sua trajetória existencial, mas a partir da página 26 (op.cit.), o discurso narrativo muda. Há estranhamentos, conflitos, e o personagem Nhô Augusto se transforma. Nesse momento narrativo, aparece um personagem providencial, o Tião da Teresa, que permitirá ao narrador mudanças discursivas, reveladoras de um novo estágio de pensamento do Artista brasileiro. O narrador se apodera do discurso do personagem Tião, dando todas as notícias do passado em apenas um parágrafo. Depois da entrada e retirada de Tião (personagem ocasional), o narrador muda o enredo narrativo. O discurso passa a ser complexo e estranho. Ao invés da narrativa concentrada em um tempo linear, pleno, substancial, visualiza-se uma narrativa transcendental, já propensa a algumas lacunas, características estas ligadas ao cogito(2), ou seja, ao pensamento transmutativo.

Bachelard, no capítulo "As superposições temporais"130, mostra a diferença entre um tempo múltiplo e relativo e um tempo de qualidade essencial e instantânea, em outras palavras, procura diferenciar o tempo linear histórico do tempo instantâneo, que se encontra suspenso entre o antes e o depois.

Para alcançar o entendimento dessa diferença, exercitou-se pela meditação; procurou esvaziar o tempo linear, retirando os excessos; ordenou os diversos planos de fenômenos temporais. A partir da meditação, percebeu que "os fenômenos não duravam todos do mesmo modo"; percebeu que a idéia de tempo único era uma idéia resumida e imperfeita; percebeu a inexistência do sincronismo entre a passagem das coisas e a fuga abstrata do tempo; percebeu "que era necessário estudar os fenômenos temporais, cada qual segundo um ritmo apropriado, um ponto de vista particular"131.

Observando as várias etapas do pensamento de Bachelard, conscientizei-me de que o narrador de A hora e vez de Augusto Matraga, amparado pelo pensamento renovado do Artista Literário, sofreu o mesmo processo de raciocínio metafísico. Enquanto durou o repouso vital de Nhô Augusto, o escritor pôde repousar também sob o predomínio do repouso fervilhante; pôde refletir sobre vida e espírito; pôde buscar uma solução vertical para sua narrativa, que a partir dali não teria como se manter plena e linear. Ele meditou, esvaziou o tempo vivido das durações malfeitas e desenvolveu um novo raciocínio por meio do narrador. Por estas razões, a narrativa prossegue, mas de forma diferente. Há estranhamentos, insolidez, lacunas, total falta de sincronia na recuperação temporal. O narrador roseano deixa seu personagem

(...) no escuro e sozinho (...), sem padre nenhum com quem falar. E essa era a conseqüência de um estouro de boiada na vastidão do planalto, por motivo de uma picada de vespa na orelha de um marruaz bravio, combinada com a existência, neste mundo, do Tião da Teresa. E tudo foi bem assim, porque tinha de ser, já que assim foi.132

A partir deste trecho, já se observa a duração como a quer Bachelard, onde o tempo decorrido "fervilha de lacunas"133, tempo muito próximo das inconseqüências quânticas, e na qual não há a continuidade do tempo histórico. Agora, a narrativa recupera os instantes fervilhantes, que produzem a idéia de tempo, importando mais destacar o que se encontra entre o repouso e a ação. O narrador sai da objetividade histórica, a história pessoal de Nhô Augusto, Senhor absoluto das Pindaíbas e do Saco-da-embira, Senhor absoluto do Retiro do Morro Azul, além de ser Senhor absoluto do povoado do Murici, e se enreda em seus próprios circunlóquios, ou seja, tenta trazer à luz o que pressentiu, em termos de narrativa, a partir de seu próprio repouso fervilhante. A narrativa passa a ser poética e ritmada; passa a ser construída por um grupo de princípios relacionados entre si, mas que visa unicamente detectar os instantes do pensamento dialetizado.

As recordações da infância no sertão, certamente marcaram o escritor Guimarães Rosa. As histórias de Senhores-de-terra poderosos e valentes encontraram ressonâncias em seu espírito, marcaram-no vivamente. Mas essas recordações só foram realmente recuperadas mediante o repouso ligado ao tempo do pensamento e dos posteriores questionamentos sobre o sertão. Só depois que seu narrador se desembaraçou do tempo linear, "das falsas permanências, das durações malfeitas"134, só depois que ele desorganizou temporalmente sua narrativa, só depois que ele dissociou-se da aparente realidade das lembranças (enquanto produto da memória), só então conseguiu curar-se do tempo sintagmático, questionando-o e assumindo no final (nas narrativas finais) o cogito(3) da consciência individual.

Ele pensou, a partir de então, alucinatoriamente, o sertão de sua infância; buscou a síntese do ser na essência do vir a ser; sumariou, resumiu o sertão poeticamente e conseguiu chegar a um final discursivo, distante temporalmente dos valores substanciais.


Depois do repouso, novos pensamentos surgiram e seu narrador se libertou e libertou o personagem. A hora e vez fervilhante do narrador chegou (sob o aval dos pensamentos fervilhantes do Artista Literário do século XX), levando-o a assumir definitivamente um pensamento narrativo distante dos padrões temporais. O narrador se libertou dos arrebatamentos súbitos e efêmeros, elans, que o faziam gastar sua energia criativa em ações imitadas. Até o momento do repouso fervilhante do Artista, o narrador deixou-se levar pelo impulso do que recebeu no passado, ou seja, procurou transmitir as experiências de vida que caracterizam a matéria épica. Nas primeiras seqüências, não tem intuição própria (ou não se permite ter). Nessas duas primeiras seqüências, em que se destacam as fases/faces do poder (primeiramente social e depois carismático), afasta-se do caminho individual, para se colocar como porta-voz das experiências da burguesia sertaneja, edificada nos pequenos vilarejos do sertão e dominada por senhores-de-terra poderosos.

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