NEUZA
MACHADO - DO
PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL
Mas não
é o aspecto linear e metódico do tempo que motiva Bachelard a dialetizar a
temática da duração. Ele prefere aproveitar apenas "a época feliz em que o
homem se vê entregue a si mesmo, em que a reflexão se ocupa mais de organizar a
inação do que servir a exigências externas e sociais"125. Então,
aqui, poderei explorar o forçado repouso (vital) de Nhô Augusto, já
fundamentando o início do repouso
fervilhante do Artista. Não falarei, por ora, como direciona-me Bachelard,
do Artista distanciado do mundo, retirado do mundo, fortalecido pela solidão
moral (e isto já se pré-anuncia a partir da segunda seqüência da narrativa);
falarei páginas adiante sobre o Artista a partir da terceira seqüência, na qual
se destaca o aspecto impessoal do narrador (a partir daí seu indiscutível alter ego), descobrindo as "zonas
de repouso", as "razões de repouso"126, sistematizando o próprio repouso e
o repouso de seu personagem.
Por ora, o Artista,
ainda preso ao aspecto metódico do tempo, organizou a inação vital de seu
personagem, planejou para ele uma nova forma de vida, conscientizou-o do
fracasso de sua vida passada, prenunciando a sua própria futura inação fervilhante. Mas, nessa segunda etapa da
narrativa, seu narrador ainda se
recupera linearmente, submetendo-se a exigências externas e sociais; e Nhô
Augusto passa a ter novamente, como personagem carismático, uma vida
estruturada, amparada pela personalidade. Nhô Augusto continua poderoso (poder
carismático amparado pela divindade), portanto estrutura-se ainda dentro do tempo linear. Mas o escritor
já se encontra no início da sistematização de seu próprio repouso fervilhante, ligado ao tempo
do pensamento, e assim começa a mudar o sentido da narrativa, transformando,
gradativamente, o narrador memorialista (terminologia de Walter Benjamim) em
narrador moderno.
Ao
elaborar a face carismática do personagem, ainda
sob as normas da narrativa linear, o narrador penetrou em uma zona dogmática,
que é a zona espiritual no sentido cristão, inserida na própria pessoa por
intermédio da iniciação religiosa ou moral. Quando um ser entra na zona
espiritual, sob a orientação cristã, deixa de ser pessoa e passa a fazer parte
de um grupo, porque a personalização é incompatível com a divindade comum a
todos os seres humanos, e assim assume uma postura de representante do divino
com poderes, mas sem autoridade pessoal. Nessa dimensão (espiritualidade
cristã) todos são iguais, não há individualidade. Não é sem razão que o personagem
passa a trabalhar para os pretos que o salvaram antes; ele está submetido às
leis lineares da ideologia cristã. A narrativa, destacando o herói carismático (segundo segmento),
ainda é linear, porque se encontra no plano da ideologia religiosa. O narrador
recupera as origens de vida do personagem, a sua religiosidade dos tempos de
criança.
Enquanto
durou a sua condição de homem poderoso, no aspecto mítico-social, Nhô Augusto —
o rompente, o matador —, induzido por seu narrador memorialista, negou as coisas
do espírito, no aspecto místico-cristão. O seu cotidiano de Todo-Poderoso
distraiu sua mente das diretrizes dogmáticas da religião. Na segunda fase,
antigas orientações espirituais vêm à tona, transformando-o num homem
religioso.
De
acordo com Bachelard, só o espírito (e o espírito,
segundo Bachelard, não possui o sentido dado pela orientação cristã) promoveria
o refluir do tempo vivido, permitindo novas formas conceituais do ser; e a
máxima forma do Ser no ser, sob o domínio do conceito de divindade, é a
carismática.
Assim,
houve a separação, nas seqüências iniciais, entre vida e espírito, já à moda
bachelardiana. Na primeira seqüência, antes da queda, o personagem não possui espiritualidade, porque, como o
mesmo Bachelard reconhece, "o espírito poderia chocar-se com a vida,
opor-se a hábitos inveterados"127. E, como esclarece o filósofo, quando isto
acontece, ou seja, quando há o choque
entre matéria e espírito, e o
espírito sai vencedor, o espírito faz "o tempo refluir sobre si
mesmo", suscitando "renovações do ser, retornos a condições
iniciais"128.
E é assim que Nhô Augusto, direcionado
ainda pelo narrador memorialista, retorna no tempo em busca do passado,
renovando seu ser, recuperando-se assim dos ferimentos. Retornando à
religiosidade, plantada na infância pela avó religiosa, o personagem
reconforta-se e recupera um novo tipo de poder. Nesta segunda seqüência, ouso
inferir que o espírito é o vencedor (orientado pelos dogmas cristãos).
Bachelard
diz que é pela reflexão fervilhante
que o ser se liberta do elan vital. O
elan vital induz o indivíduo a se
afastar dos objetivos individuais, impulsiona-o no sentido de aceitar o já
instituído socialmente sem questionamentos.
A inteligência,
entregue à sua função especulativa, irá aparecer-nos como uma função que cria
lazeres e os fortalece. A consciência pura irá aparecer-nos como uma potência
de espera e de guarda, como uma liberdade e uma vontade de nada fazer.129
O
narrador, nesta narrativa A hora
e vez de Augusto Matraga, está em vias de se
liberar do elan vital, e isto promove
também a libertação do Artista. Ele contou as peripécias de vida do personagem,
refez sua trajetória existencial, mas a partir da página 26 (op.cit.), o
discurso narrativo muda. Há estranhamentos, conflitos, e o personagem Nhô
Augusto se transforma. Nesse momento narrativo, aparece um personagem
providencial, o Tião da Teresa, que permitirá ao narrador mudanças discursivas,
reveladoras de um novo estágio de pensamento do Artista brasileiro. O narrador
se apodera do discurso do personagem Tião, dando todas as notícias do passado
em apenas um parágrafo. Depois da entrada e retirada de Tião (personagem
ocasional), o narrador muda o enredo narrativo. O discurso passa a ser complexo
e estranho. Ao invés da narrativa concentrada em um tempo linear, pleno,
substancial, visualiza-se uma narrativa transcendental, já propensa a algumas
lacunas, características estas ligadas ao cogito(2), ou seja, ao
pensamento transmutativo.
Bachelard,
no capítulo "As superposições temporais"130, mostra a diferença entre um tempo
múltiplo e relativo e um tempo de qualidade essencial e instantânea, em outras
palavras, procura diferenciar o tempo linear histórico do tempo instantâneo,
que se encontra suspenso entre o antes e o depois.
Para
alcançar o entendimento dessa diferença, exercitou-se pela meditação; procurou esvaziar o tempo linear, retirando os
excessos; ordenou os diversos planos de fenômenos temporais. A partir da
meditação, percebeu que "os fenômenos não duravam todos do mesmo
modo"; percebeu que a idéia de tempo único era uma idéia resumida e
imperfeita; percebeu a inexistência do sincronismo entre a passagem das coisas
e a fuga abstrata do tempo; percebeu "que era necessário estudar os
fenômenos temporais, cada qual segundo um ritmo apropriado, um ponto de vista
particular"131.
Observando
as várias etapas do pensamento de Bachelard, conscientizei-me de que o narrador
de A hora e vez de Augusto Matraga,
amparado pelo pensamento renovado do
Artista Literário, sofreu o mesmo processo de raciocínio metafísico. Enquanto
durou o repouso vital de Nhô Augusto, o escritor pôde repousar também sob o predomínio do repouso fervilhante; pôde refletir sobre vida e espírito; pôde
buscar uma solução vertical para sua narrativa, que a partir dali não teria como
se manter plena e linear. Ele meditou, esvaziou
o tempo vivido das durações malfeitas e desenvolveu um novo raciocínio por
meio do narrador. Por estas razões, a narrativa prossegue, mas de forma
diferente. Há estranhamentos, insolidez, lacunas, total falta de sincronia na
recuperação temporal. O narrador roseano deixa seu personagem
(...) no escuro
e sozinho (...), sem padre nenhum com quem falar. E essa era a conseqüência de
um estouro de boiada na vastidão do planalto, por motivo de uma picada de vespa
na orelha de um marruaz bravio, combinada com a existência, neste mundo, do
Tião da Teresa. E tudo foi bem assim, porque tinha de ser, já que assim foi.132
A
partir deste trecho, já se observa a duração como a quer Bachelard, onde o
tempo decorrido "fervilha de lacunas"133, tempo muito próximo das inconseqüências quânticas, e na qual não há
a continuidade do tempo histórico. Agora, a narrativa recupera os instantes fervilhantes, que produzem a
idéia de tempo, importando mais destacar o que se encontra entre o repouso e a
ação. O narrador sai da objetividade histórica, a história pessoal de Nhô
Augusto, Senhor absoluto das Pindaíbas e do Saco-da-embira, Senhor absoluto do
Retiro do Morro Azul, além de ser Senhor absoluto do povoado do Murici, e se
enreda em seus próprios circunlóquios, ou seja, tenta trazer à luz o que
pressentiu, em termos de narrativa, a partir de seu próprio repouso
fervilhante. A narrativa passa a ser poética e ritmada; passa a ser construída
por um grupo de princípios relacionados entre si, mas que visa unicamente
detectar os instantes do pensamento dialetizado.
As
recordações da infância no sertão, certamente marcaram o escritor Guimarães
Rosa. As histórias de Senhores-de-terra poderosos e valentes encontraram
ressonâncias em seu espírito, marcaram-no vivamente. Mas essas recordações só
foram realmente recuperadas mediante o repouso ligado ao tempo do pensamento e
dos posteriores questionamentos sobre o sertão. Só depois que seu narrador se
desembaraçou do tempo linear, "das falsas permanências, das durações
malfeitas"134,
só depois que ele desorganizou
temporalmente sua narrativa, só depois que ele dissociou-se da aparente
realidade das lembranças (enquanto produto da memória), só então conseguiu
curar-se do tempo sintagmático, questionando-o e assumindo no final (nas
narrativas finais) o cogito(3) da consciência individual.
Ele
pensou, a partir de então, alucinatoriamente,
o sertão de sua infância; buscou a síntese do ser na essência do vir a ser;
sumariou, resumiu o sertão poeticamente e conseguiu chegar a um final
discursivo, distante temporalmente dos valores substanciais.
Depois
do repouso, novos pensamentos surgiram e seu narrador se libertou e libertou o
personagem. A hora e vez fervilhante do narrador chegou (sob
o aval dos pensamentos fervilhantes do Artista Literário do século XX),
levando-o a assumir definitivamente um pensamento narrativo distante dos
padrões temporais. O narrador se libertou dos arrebatamentos súbitos e
efêmeros, elans, que o faziam gastar
sua energia criativa em ações imitadas. Até o momento do repouso fervilhante do
Artista, o narrador deixou-se levar pelo impulso do que recebeu no passado, ou
seja, procurou transmitir as experiências de vida que caracterizam a matéria
épica. Nas primeiras seqüências, não tem intuição própria (ou não se permite
ter). Nessas duas primeiras seqüências, em que se destacam as fases/faces do
poder (primeiramente social e depois carismático), afasta-se do caminho
individual, para se colocar como porta-voz das experiências da burguesia
sertaneja, edificada nos pequenos vilarejos do sertão e dominada por
senhores-de-terra poderosos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário