NEUZA
MACHADO - DO
PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL
Por
intermédio dos novos pensamentos de seu Criador, o narrador assume o caminho
individual, que leva à auto-reflexão, qualidade essencial para se chegar ao
objetivo da consciência singular, que caracteriza o indivíduo inteligente. A
inteligência é engrandecida por Bachelard e a inteligência é uma qualidade no
Artista Guimarães Rosa. Aqueles que se encontram no cogito(1) não
valorizam a inteligência, preferem seguir modismos que massificam, que
transformam alguns grupos sociais em uma só massa pensante. A função da
inteligência é questionar, argumentar, refletir sobre a validade da direção do
impulso massificador. Essa função especulativa, segundo Bachelard, "cria
lazeres e os fortalece"135, ou seja, cria prazeres (coisas boas), que
fortalecem e aperfeiçoam tal função. A consciência pura produz a capacidade de
escolha lúcida, agencia o livre-arbítrio.
A
consciência pura, de acordo com Bachelard, se localiza no cogito(3)
da autêntica individualidade, acima dos cogitos um e dois e próxima do cogito(4),
cogito este já fora da linha vital. Seria, assim, o eu singular, consciente,
lucidamente equilibrado, repleto de força e capacidade de escolha. A
consciência pura pode ficar em estado de vigilância, pode esperar que alguma
coisa se manifeste, como por exemplo as intuições espirituais, pode esperar
alguma oportunidade para agir, pode aguardar e guardar (baú de memórias), pode
vigiar para que não entre em seu mundo interior (plano do eu profundo) qualquer
conhecimento nocivo. Esta consciência singular, por estar muito próxima do
tempo espiritual, estará sempre em estado de liberdade, porque não estará
totalmente submetida às pressões do mundo vital; não será suscetível ao
julgamento do mundo, às cobranças sociais, porque estará no plano que, para os
que não a entendem, aparecerá como uma vontade de nada fazer, já que não vai
fazer nada, enquanto não for o seu momento de bem fazer alguma coisa.
Foi a
consciência argumentativa do cogito(2) que fez o escritor de
estórias sertanejas Guimarães Rosa mudar a face/fase de seu narrador em A hora e vez de Augusto Matraga,
colocando nele seus próprios objetivos individuais de homem prestes a alcançar
um plano elevado dentro dos vários patamares que compõem o pensamento
individual. Seu narrador deixou de agir impulsionado pelo elan vital, apropriando-se da inteligência de quem o criou e lhe
deu forma ficcional. Assim, o narrador assume os pensamentos dialetizados do
Artista, questionando, argumentando, refletindo sobre a direção que pretende
dar à narrativa, direcionando seus impulsos criadores. Por isto, Nhô Augusto,
retornando ao Arraial do Murici, subjugado à nova forma de pensar do Artista,
pôde se encantar com as minúcias da natureza, enquanto o narrador poetizava o
sertão. O narrador, apropriando-se da função especulativa do Artista, criou um
mundo diferente, embalado pelo prazer de estar ancorado numa dimensão quase particular (cogito(2)),
já propenso a se desligar das opiniões externas. Esta última etapa da narrativa
marca a nova decisão do Artista: de ora em diante, ele criará um sertão muito
particular, suspenso num momento onde o antes não conta, e o que virá em termos
históricos também não.
No
âmbito da consciência argumentativa, intuiu o momento da manifestação do
narrador moderno, suplantando o narrador experiente das comunidades antigas.
Esperou, enquanto se posicionava como contador de estórias sertanejas, a
oportunidade de se libertar das pressões do mundo. No plano da consciência
argumentativa, depois da libertação, passa a vivenciar o impacto do juízo
de descoberta. O sertão, nascido do eu questionador, estará assim
propenso às críticas da sociedade, mas promoverá também uma futura
conscientização de seus valores por esta mesma sociedade. Um espaço que nunca
foi apreciado pelas elites vem à luz sob a égide de uma consciência que já se
desprendeu do cogito(1) e que já não se incomoda mais em se dizer
sertaneja (rústica), mesmo que já tenha alcançado outros graus no plano das
exigências sociais.
Bachelard
esclarece, quando teoriza sobre "as superposições temporais"136, que os
vários graus de instantes formam um acontecimento, e o acontecimento é o fato,
ou seja, está também contido no tempo absoluto. A qualidade desse tempo (tempo do pensamento) é que é diferente,
mesmo se manifestando no tempo vital, considerado absoluto, mas, em verdade, já
é um tempo vertical. É um tempo que aparenta ser contínuo e, por isto, ainda
dentro dos limites existenciais. Esse tempo, entendido pela Física,
cientificamente, ainda não foi suplantado, apesar das tentativas filosóficas
para se provar a existência de outras dimensões paralelas de tempo, além dos
limites vitais. As dimensões temporais, vistas em suas formas aparentes,
limitadas ao plano experimental, só podem realmente ser captadas no plano de interseção entre aparência e
essência, plano este pouco avaliado, desenvolvendo-se assim idéias
verticais no nível filosófico. Este plano de interseção pode levar a um
entendimento vertical (o instante) ou a um entendimento relativo (correlações
de instantes), que estão contidos potencialmente no entendimento do todo (para
Bachelard, os três cogitos do pensamento estão dentro do plano vital).
O
entendimento teórico-mental do tempo
relativo (um estágio acima do tempo absoluto) está baseado no estudo do
movimento, enquanto característica da continuidade das seqüências dos instantes
temporais. A qualidade no tempo relativo é mutável, de acordo com os pontos de
referência, por isto, ela é plural. Esses pontos de referência correlacionam-se,
conservam ordens objetivas de transcurso. Por estas razões, os pontos de
referência do tempo relativo têm continuidade, porque, mesmo sendo constituídos
de instantes destacados, que não guardam durações absolutas, como no tempo
contínuo, transitivo, esses mesmos instantes não são considerados, mas sim o
que os une. Assim, a seqüência pode ser quebrada, no tempo relativo
(correlações de instantes), se os pontos de vista não forem harmônicos. Isto
gera uma mudança, característica da descontinuidade, que evidencia a existência
de instantes separados, qualidade do instante vertical.
O instante vertical pertence ao tempo
quântico, qualitativo, centrado na mudança de qualidade. Cada instante
desse tempo quântico é feito dentro de um contexto, que, ao ser observado
destacadamente, apresenta uma qualidade diferente.
Para a
teoria da descontinuidade, cada movimento pode ter uma qualidade, um
sentimento, uma imagem, um pensamento que esteja predominando naquele instante,
diferente da qualidade do movimento anterior e diferente também da qualidade
registrada na teoria da continuidade.
Sob a
orientação bergsoniana, os tempos, qualitativos, ocorrem paralelamente/
simultaneamente. Em outras palavras, holisticamente (organizadamente) um tempo
está potencialmente contido no outro; a preponderância de um vai depender do
ponto de vista escolhido; porém, para Bachelard, que não desmerece em absoluto os pontos de vista de Bergson, apenas rejeita a idéia da continuidade
temporal, a intuição pura permite perceber os tempos destacados, suspensos
entre o antes e o depois, anulando definitivamente as prováveis uniões entre
eles. O filósofo, a partir da intuição, obriga-se a criticar o ponto de vista
holístico (organizado) do tempo, admitindo um novo conceito de tempo. O tempo feito
de acidentes de Bachelard se deve às várias dimensões que existem, superpostas
e simultâneas, e que, por um ponto de vista macroscópico, podem parecer
holísticas.
O tempo
feito de acidentes está perto das inconseqüências quânticas, mais do que das coerências
racionais ou das consistências reais (tempo absoluto) e mais do que das
correlações de pontos harmônicos (tempo relativo), porque a cada instante há
uma mudança na qualidade do evento que não tem conseqüência na qualidade do
mesmo evento de um instante antes. Esse instante é único, porque há uma
integração instantânea e completa das imagens, pensamentos e sentimentos, mas
isso não quer dizer que um instante seja conseqüência do anterior. O evento
está fora do ser aparente, está no pensamento. No instante em que o evento
assume uma qualidade, o observador participa desta qualidade, como se ele
também tivesse esta qualidade, e de fato ele tem, porque, nesse momento fervilhante, fica óbvio que tudo faz
parte de um instante irreproduzível. Por isto, Bachelard fala de intuição,
da captação da qualidade de um evento pela intuição, acrisolada no repouso
fervilhante. Não haveria tempo também para fazer essa captação pela
racionalização (esta só aparecerá depois do repouso
fervilhante, na forma de um novo pensamento); é difícil manter uma
meditação vital, porque esta dificuldade para meditar é que comprova o tempo
feito de acidentes, que muito se aproxima das inconseqüências quânticas, tão
voláteis, como foi dito antes.
Foi a dificuldade para a meditação que permitiu ao filósofo descobrir as incoerências e as inconsistências do descontínuo temporal. Por isto, procurou
demonstrar que, reduzindo os tempos lineares a tempos instantâneos, a única
qualidade evidente, completa e eficaz seria a qualidade espiritual, captada pela intuição. "O tempo espiritual não seria uma simples
abstração do tempo vital"137, seria a
própria origem do tempo vital.
Valendo-se de um novo raciocínio transmutativo, depois do repouso fervilhante,
chega-se à conscientização desse tempo instantâneo. Esse tempo instantâneo se
liga ao vital pelas aquisições espirituais, já conceituadas, obtidas antes do
repouso ativo; mas também surge revigorado, graças à nova formalização do
novamente intuído e que se encontra à deriva, fora do plano vital. O tempo do
pensamento (instantes de tempo) é portanto superior ao tempo vital, porque, por
meio dele, há como comandar o repouso e a ação, além de ser pelo pensamento que
nascem as atitudes que revolucionam o mundo. Mas só a intuição do espiritual permite ver as inconsistências do vital e do
mental, dentro de um conjunto coerente.
O tempo
espiritual atua em seu próprio plano instantâneo, mas, como ele compõe os
tempos vital e mental, a ação dele, num instante, se reflete nos outros planos
temporais, atuando profundamente nesses mesmos planos, que não são os de seu
próprio transcurso. O reflexo desse mundo espiritual, que só a intuição capta, pode ficar só dentro de seu próprio plano
ou dentro do plano das idéias abstratas, ou se encaminhar para um plano mais
exterior, que é o físico, que envolve os planos emocional e mental. Assim, o
Tempo tem várias dimensões, várias espessuras, porque essas dimensões e
espessuras tem de ver com os inúmeros aspectos do Universo.
O
aspecto contínuo (tempo absoluto físico) existe no plano externo-físico, mas é,
na verdade, a soma de muitos tempos independentes. Assim, há lacunas que podem
ser ou não percebidas e só serão captadas por um raciocínio argumentador. Esse
raciocínio, a cada instante, sofre modificações, porque não se submete aos
pensamentos já definidos. As novas idéias surgem impulsionadas pelos
questionamentos do repouso fervilhante, que são respondidos no mesmo instante
pela intuição, de acordo com a qualidade do questionamento.
Ainda
no plano do transcurso das coisas (plano vital), desenvolve-se a relatividade
física (tempo da física), que, apesar do pluralismo temporal, ainda
"aceita a continuidade como característica evidente"138. Esse
pluralismo é muito diferente do que existe nas coincidências espirituais. No
plano do transcurso das coisas, há a necessidade do preenchimento das lacunas
do tempo, algo não necessário no plano do espírito. Alguns privilegiados,
apesar de viverem no plano físico, necessitam de uma expansão racional, de um
aprofundamento que os leve ao cogito(3), no qual se individualizam.
Este cogito é o invólucro da inteligência pura, no qual se originam as idéias
elevadas e singulares.
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