terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

NEUZA MACHADO - DO PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL

NEUZA MACHADO - DO PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL


Por intermédio dos novos pensamentos de seu Criador, o narrador assume o caminho individual, que leva à auto-reflexão, qualidade essencial para se chegar ao objetivo da consciência singular, que caracteriza o indivíduo inteligente. A inteligência é engrandecida por Bachelard e a inteligência é uma qualidade no Artista Guimarães Rosa. Aqueles que se encontram no cogito(1) não valorizam a inteligência, preferem seguir modismos que massificam, que transformam alguns grupos sociais em uma só massa pensante. A função da inteligência é questionar, argumentar, refletir sobre a validade da direção do impulso massificador. Essa função especulativa, segundo Bachelard, "cria lazeres e os fortalece"135, ou seja, cria prazeres (coisas boas), que fortalecem e aperfeiçoam tal função. A consciência pura produz a capacidade de escolha lúcida, agencia o livre-arbítrio.

A consciência pura, de acordo com Bachelard, se localiza no cogito(3) da autêntica individualidade, acima dos cogitos um e dois e próxima do cogito(4), cogito este já fora da linha vital. Seria, assim, o eu singular, consciente, lucidamente equilibrado, repleto de força e capacidade de escolha. A consciência pura pode ficar em estado de vigilância, pode esperar que alguma coisa se manifeste, como por exemplo as intuições espirituais, pode esperar alguma oportunidade para agir, pode aguardar e guardar (baú de memórias), pode vigiar para que não entre em seu mundo interior (plano do eu profundo) qualquer conhecimento nocivo. Esta consciência singular, por estar muito próxima do tempo espiritual, estará sempre em estado de liberdade, porque não estará totalmente submetida às pressões do mundo vital; não será suscetível ao julgamento do mundo, às cobranças sociais, porque estará no plano que, para os que não a entendem, aparecerá como uma vontade de nada fazer, já que não vai fazer nada, enquanto não for o seu momento de bem fazer alguma coisa.

Foi a consciência argumentativa do cogito(2) que fez o escritor de estórias sertanejas Guimarães Rosa mudar a face/fase de seu narrador em A hora e vez de Augusto Matraga, colocando nele seus próprios objetivos individuais de homem prestes a alcançar um plano elevado dentro dos vários patamares que compõem o pensamento individual. Seu narrador deixou de agir impulsionado pelo elan vital, apropriando-se da inteligência de quem o criou e lhe deu forma ficcional. Assim, o narrador assume os pensamentos dialetizados do Artista, questionando, argumentando, refletindo sobre a direção que pretende dar à narrativa, direcionando seus impulsos criadores. Por isto, Nhô Augusto, retornando ao Arraial do Murici, subjugado à nova forma de pensar do Artista, pôde se encantar com as minúcias da natureza, enquanto o narrador poetizava o sertão. O narrador, apropriando-se da função especulativa do Artista, criou um mundo diferente, embalado pelo prazer de estar ancorado numa dimensão quase particular (cogito(2)), já propenso a se desligar das opiniões externas. Esta última etapa da narrativa marca a nova decisão do Artista: de ora em diante, ele criará um sertão muito particular, suspenso num momento onde o antes não conta, e o que virá em termos históricos também não.

No âmbito da consciência argumentativa, intuiu o momento da manifestação do narrador moderno, suplantando o narrador experiente das comunidades antigas. Esperou, enquanto se posicionava como contador de estórias sertanejas, a oportunidade de se libertar das pressões do mundo. No plano da consciência argumentativa, depois da libertação, passa a vivenciar o impacto do juízo de descoberta. O sertão, nascido do eu questionador, estará assim propenso às críticas da sociedade, mas promoverá também uma futura conscientização de seus valores por esta mesma sociedade. Um espaço que nunca foi apreciado pelas elites vem à luz sob a égide de uma consciência que já se desprendeu do cogito(1) e que já não se incomoda mais em se dizer sertaneja (rústica), mesmo que já tenha alcançado outros graus no plano das exigências sociais.

Bachelard esclarece, quando teoriza sobre "as superposições temporais"136, que os vários graus de instantes formam um acontecimento, e o acontecimento é o fato, ou seja, está também contido no tempo absoluto. A qualidade desse tempo (tempo do pensamento) é que é diferente, mesmo se manifestando no tempo vital, considerado absoluto, mas, em verdade, já é um tempo vertical. É um tempo que aparenta ser contínuo e, por isto, ainda dentro dos limites existenciais. Esse tempo, entendido pela Física, cientificamente, ainda não foi suplantado, apesar das tentativas filosóficas para se provar a existência de outras dimensões paralelas de tempo, além dos limites vitais. As dimensões temporais, vistas em suas formas aparentes, limitadas ao plano experimental, só podem realmente ser captadas no plano de interseção entre aparência e essência, plano este pouco avaliado, desenvolvendo-se assim idéias verticais no nível filosófico. Este plano de interseção pode levar a um entendimento vertical (o instante) ou a um entendimento relativo (correlações de instantes), que estão contidos potencialmente no entendimento do todo (para Bachelard, os três cogitos do pensamento estão dentro do plano vital).

O entendimento teórico-mental do tempo relativo (um estágio acima do tempo absoluto) está baseado no estudo do movimento, enquanto característica da continuidade das seqüências dos instantes temporais. A qualidade no tempo relativo é mutável, de acordo com os pontos de referência, por isto, ela é plural. Esses pontos de referência correlacionam-se, conservam ordens objetivas de transcurso. Por estas razões, os pontos de referência do tempo relativo têm continuidade, porque, mesmo sendo constituídos de instantes destacados, que não guardam durações absolutas, como no tempo contínuo, transitivo, esses mesmos instantes não são considerados, mas sim o que os une. Assim, a seqüência pode ser quebrada, no tempo relativo (correlações de instantes), se os pontos de vista não forem harmônicos. Isto gera uma mudança, característica da descontinuidade, que evidencia a existência de instantes separados, qualidade do instante vertical.

O instante vertical pertence ao tempo quântico, qualitativo, centrado na mudança de qualidade. Cada instante desse tempo quântico é feito dentro de um contexto, que, ao ser observado destacadamente, apresenta uma qualidade diferente.

Para a teoria da descontinuidade, cada movimento pode ter uma qualidade, um sentimento, uma imagem, um pensamento que esteja predominando naquele instante, diferente da qualidade do movimento anterior e diferente também da qualidade registrada na teoria da continuidade.

Sob a orientação bergsoniana, os tempos, qualitativos, ocorrem paralelamente/ simultaneamente. Em outras palavras, holisticamente (organizadamente) um tempo está potencialmente contido no outro; a preponderância de um vai depender do ponto de vista escolhido; porém, para Bachelard, que não desmerece em absoluto os pontos de vista de Bergson, apenas rejeita a idéia da continuidade temporal, a intuição pura permite perceber os tempos destacados, suspensos entre o antes e o depois, anulando definitivamente as prováveis uniões entre eles. O filósofo, a partir da intuição, obriga-se a criticar o ponto de vista holístico (organizado) do tempo, admitindo um novo conceito de tempo. O tempo feito de acidentes de Bachelard se deve às várias dimensões que existem, superpostas e simultâneas, e que, por um ponto de vista macroscópico, podem parecer holísticas.

O tempo feito de acidentes está perto das inconseqüências quânticas, mais do que das coerências racionais ou das consistências reais (tempo absoluto) e mais do que das correlações de pontos harmônicos (tempo relativo), porque a cada instante há uma mudança na qualidade do evento que não tem conseqüência na qualidade do mesmo evento de um instante antes. Esse instante é único, porque há uma integração instantânea e completa das imagens, pensamentos e sentimentos, mas isso não quer dizer que um instante seja conseqüência do anterior. O evento está fora do ser aparente, está no pensamento. No instante em que o evento assume uma qualidade, o observador participa desta qualidade, como se ele também tivesse esta qualidade, e de fato ele tem, porque, nesse momento fervilhante, fica óbvio que tudo faz parte de um instante irreproduzível. Por isto, Bachelard fala de intuição, da captação da qualidade de um evento pela intuição, acrisolada no repouso fervilhante. Não haveria tempo também para fazer essa captação pela racionalização (esta só aparecerá depois do repouso fervilhante, na forma de um novo pensamento); é difícil manter uma meditação vital, porque esta dificuldade para meditar é que comprova o tempo feito de acidentes, que muito se aproxima das inconseqüências quânticas, tão voláteis, como foi dito antes.

Foi a dificuldade para a meditação que permitiu ao filósofo descobrir as incoerências e as inconsistências do descontínuo temporal. Por isto, procurou demonstrar que, reduzindo os tempos lineares a tempos instantâneos, a única qualidade evidente, completa e eficaz seria a qualidade espiritual, captada pela intuição. "O tempo espiritual não seria uma simples abstração do tempo vital"137, seria a própria origem do tempo vital. Valendo-se de um novo raciocínio transmutativo, depois do repouso fervilhante, chega-se à conscientização desse tempo instantâneo. Esse tempo instantâneo se liga ao vital pelas aquisições espirituais, já conceituadas, obtidas antes do repouso ativo; mas também surge revigorado, graças à nova formalização do novamente intuído e que se encontra à deriva, fora do plano vital. O tempo do pensamento (instantes de tempo) é portanto superior ao tempo vital, porque, por meio dele, há como comandar o repouso e a ação, além de ser pelo pensamento que nascem as atitudes que revolucionam o mundo. Mas só a intuição do espiritual permite ver as inconsistências do vital e do mental, dentro de um conjunto coerente.

O tempo espiritual atua em seu próprio plano instantâneo, mas, como ele compõe os tempos vital e mental, a ação dele, num instante, se reflete nos outros planos temporais, atuando profundamente nesses mesmos planos, que não são os de seu próprio transcurso. O reflexo desse mundo espiritual, que só a intuição capta, pode ficar só dentro de seu próprio plano ou dentro do plano das idéias abstratas, ou se encaminhar para um plano mais exterior, que é o físico, que envolve os planos emocional e mental. Assim, o Tempo tem várias dimensões, várias espessuras, porque essas dimensões e espessuras tem de ver com os inúmeros aspectos do Universo.

O aspecto contínuo (tempo absoluto físico) existe no plano externo-físico, mas é, na verdade, a soma de muitos tempos independentes. Assim, há lacunas que podem ser ou não percebidas e só serão captadas por um raciocínio argumentador. Esse raciocínio, a cada instante, sofre modificações, porque não se submete aos pensamentos já definidos. As novas idéias surgem impulsionadas pelos questionamentos do repouso fervilhante, que são respondidos no mesmo instante pela intuição, de acordo com a qualidade do questionamento.

Ainda no plano do transcurso das coisas (plano vital), desenvolve-se a relatividade física (tempo da física), que, apesar do pluralismo temporal, ainda "aceita a continuidade como característica evidente"138. Esse pluralismo é muito diferente do que existe nas coincidências espirituais. No plano do transcurso das coisas, há a necessidade do preenchimento das lacunas do tempo, algo não necessário no plano do espírito. Alguns privilegiados, apesar de viverem no plano físico, necessitam de uma expansão racional, de um aprofundamento que os leve ao cogito(3), no qual se individualizam. Este cogito é o invólucro da inteligência pura, no qual se originam as idéias elevadas e singulares.


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