NEUZA
MACHADO - DO
PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL
A
continuidade psíquica, para Bachelard, coloca um problema, já que os
encadeamentos psíquicos geralmente são hipóteses. A vida complexa é composta
por uma pluralidade de durações díspares: ritmos diferentes, durações sólidas e
insólitas em seu encadeamento, com potências desiguais em seus segmentos. A
continuidade psíquica não seria nunca um dado específico e pleno, ao contrário,
comporia sempre uma obra, construída
pela pluralidade de durações, sob o lento ajuste das coisas e dos tempos, sob a
ação do espaço sobre o tempo e a reação do tempo sobre o espaço e, em tal obra,
permaneceria (historicamente) apenas a duração pela razão, tão diferente da
duração pelas coisas.
Para
Bachelard, a duração verdadeira possui várias formas: a ação real do tempo
necessita da riqueza das coincidências, da sintonia dos esforços rítmicos. O
ritmo promove um repouso garantido, possibilita o reencontro com os impulsos
primeiros; seria, no caminho do ser, a noção temporal fundamental. Assim, os
chamados fenômenos da duração seriam construídos com ritmos, ou seja, sistemas
de instantes ou acontecimentos excepcionais, que marcam profundamente a vida
temporal. Esses sistemas de instantes ou acontecimentos excepcionais
sustentariam a regularidade da vida, os aspectos harmoniosos da vida, gerados
por pensamentos estáveis e seguros. Por esta ótica, o repouso, como o quer
Bachelard, seria uma vibração feliz, curando e desembaraçando a alma das
durações malfeitas.
Opondo-se
ao pleno bergsoniano, Bachelard
sustenta a filosofia da negatividade,
provando que uma vida rítmica, sustentada por pensamentos rítmicos e racionais
(observar que Bachelard não está preocupado com o aspecto sentimental ou
passional da questão), desembaraça a alma das falsas permanências,
desorganizando-a temporalmente sob a égide da razão. A filosofia da
negatividade direciona os esforços de dissociação até o tecido temporal e, com
isto, ilude os ritmos malfeitos, aquieta os ritmos forçados, excita os ritmos
langorosos, enfim, busca a síntese do ser no ajustamento do que está por vir,
movimentando a vida sensatamente ritmada pelos sons equilibrados da livre
intelectualidade.
No
capítulo "A distensão e o nada"105, Bachelard mostra que não é um
total opositor de H. Bergson, apenas não aceita sua duração plena, contínua, estável e segura,e, por isso, procura provar que em qualquer duração existe a
essência metafísica do risco — absoluto e
total, sem objetivo e sem razão —, e que esse risco possibilita a
destruição da segurança da felicidade de qualquer indivíduo. O risco absoluto
abala as estruturas das coisas estáveis como uma vertigem que atrai o sujeito
pensante para o perigo, para a novidade, para a morte, para o nada.
Por
este aspecto, o risco absoluto poderia ser detectado no momento em que o
sujeito pensante estivesse submetido ao repouso ativado. O repouso ativado (ou
fervilhante) seria o momento da distensão, do afrouxamento, do não-funcionamento
dos pensamentos comandados pela filosofia do cheio. Esse momento de distensão
(jamais pensar nesse repouso como algo lúdico e tranqüilo) propicia uma
identificação maior com o nada e a rejeição das confirmações secularmente
instituídas. Assim, paralelamente à filosofia
da qualificação bergsoniana, Bachelard postula a filosofia da aniquilação, demonstrando que o repouso ativado mediaria os dois aspectos filosóficos.
O
repouso ativado impediria ou promoveria a aniquilação total do indivíduo,
demonstraria o sucesso ontológico do ser,
se fosse observado posteriormente (depois do repouso) uma criação renovada do ser por ele mesmo. Esta criação renovada,
ligada ao ato espiritual da consciência em sua forma gratuita, instauraria, por
exemplo, uma resistência aos apelos do suicídio, demonstraria também o triunfo
do indivíduo pensante sobre a sedução do nada, mas demonstraria sobretudo que
os pensamentos surgidos depois da antevisão da aniquilação seriam totalmente
inéditos, diferentes dos já padronizados.
A filosofia
da aniquilação comprova que o ser, o movimento, o espaço, a duração, admitem
lacunas, e estas lacunas são sustentadas no espaço intermediário do instante
dinamizado, suspenso entre o antes e o depois. A filosofia da aniquilação, bachelardiana, supõe o nada como
limite, enquanto que a filosofia da qualificação, bergsoniana, supõe a substância como suporte. O nada bachelardiano postula o repouso da
ação natural da duração, já que uma função deve freqüentemente interromper-se
de funcionar. Depois da interrupção (do repouso fervilhante), surge o pensamento puro, resgatado da idéia do
nada. Assim, o pensamento puro, segundo Bachelard, recomeça da recusa da vida
estabilizada, na tentativa de reformulá-la. Com a interrupção da função, surge
o princípio da negação temporal.
Já que
a função (ação natural da duração ou o papel
da duração na realidade temporal) deve freqüentemente interromper-se de
funcionar, para Bachelard, é algo normal atingir o limite e pensar a questão do
repouso da ação natural da duração. O ato de pensar a questão do repouso
ativado revela que há diferentes estágios (fundamentais) na realidade temporal,
e este conhecimento só se torna possível quando se retrocede o princípio da
negação até a realidade temporal. O repouso ativado permite esse retrocesso e
faz entender a questão do nada; o repouso ativado (recusa da vida estável)
permite uma nova atuação do pensamento, agora claro, puro, surgido a partir do
vazio.
Entre o vazio e
cheio, parece-nos haver uma perfeita correlação. Um não é inteligível sem o
outro, e sobretudo uma ação não se esclareceria sem a outra. Se nos recusam a
intuição do vazio, estamos no direito de recusar a intuição do cheio.106
Bachelard não aceita os juízos
pré-estabelecidos: estes já surgem como argumentos frágeis, impedindo
a polêmica ou debate. Ao comentar os juízos de valor, critica explicitamente as
idéias de Bergson. A comparação de dois juízos pré-estabelecidos (esta mesa é branca em confronto com esta mesa não é branca) não gera
polêmicas, apenas mostra que a primeira afirmação denuncia o caráter
determinado e imediato do juízo de valor enquanto que a segunda denuncia o
caráter indeterminado e indireto do outro juízo de valor.
Para o
filósofo, vale mais o juízo da descoberta. Por exemplo, a descoberta da dália
azul (já que não há dálias azuis no âmbito do juízo pré-estabelecido) gerando
espanto, exclamações e naturalmente polêmicas ardentes. No entanto, prova-se a
existência de uma dália azul no âmbito do pensamento enérgico e decisivo. Todos
os juízos enérgicos, para Bachelard, são juízos negativos. Esse juízos
negativos evitam repetir velhas fórmulas de pensamento, velhas afirmações
enganosas. Os valores afirmativos não solucionam questões, apenas preenchem o
pensamento.
A
afirmação, pela ótica de Bachelard, não significa conhecimento positivo. A
afirmação da existência de uma dália azul destrói o juízo de valor que atribui
outras colorações já determinadas (outras cores além do amarelo, branco ou
rosa) para as dálias que enfeitam os jardins. Tal afirmação destrói juízos
anteriores, mas impõe uma nova construção do juízo que se faz desta flor; tal
afirmação aniquila as aparências da realidade, deixando em aberto a questão da
essência. Uma dália azul existe e faz parte da realidade do ser que sabe expor
argumentos decisivos. Os fenômenos existem ativos ou passivos, e os passivos
estão vagando por aí à espera de quem os descubra.
O juízo da descoberta, ainda pelo ponto de
vista de Bachelard, invalidaria certas afirmações plenas, que apenas preenchem
e não solucionam as questões que incomodam o ser e sua existência. Observando
que as afirmações nem sempre são sinônimos de conhecimento positivo e
demonstrando que "a vida psicológica deve ser captada em seus atos, em sua
ondulação, não em sua fonte magra e hipotética"107, o filósofo orienta-me quanto à
questão do Conhecimento. Para ele, o Conhecimento,
ao ser verbalizado, deve instaurar polêmica, deve ser destruído e
construído, sendo que a construção às vezes nunca termina.
O
pensamento transmutativo seria portanto a "única positividade clara de um
conhecimento"108, apreendida na consciência das retificações, nas insinuações,
nas persuasões, nas discussões polidas, nas ondulações do pensamento dialético.
O conhecimento dialetizado, descontínuo, sob o suporte de um fingido comportamento de continuidade,
como por exemplo a falsa aceitação de pensamentos plenos, subentendida em
apartes de supostas concordâncias, tais como, também fui dessa opinião, mas... etc, superaria inevitáveis
incidentes e promoveria uma demonstração do negativismo psicológico, ou seja,
uma temporária negação de suas idéias.
O juízo afirmativo fingido seria uma
aceitação provisória e obrigaria o adepto dos valores afirmativos plenos e
inteiros a aceitar outros pensamentos que contradissessem os seus. As regras
conceituais já determinadas impedem novas conceituações e por isso são
criticadas por Bachelard, que prefere desenvolver uma filosofia da aniquilação, propulsora de novos pensamentos que
atuarão no devir.
Para
Bachelard,
Todo
conhecimento preciso conduz a uma aniquilação das aparências, a uma
hierarquização dos fenômenos, ao ato de lhes atribuir de algum modo
coeficientes de realidade, ou, se preferirmos, coeficientes de irrealidade.
Analisa-se assim o real a golpes de negação. Pensar é fazer abstração de certas
experiências, é mergulhá-las voluntariamente na sombra do nada.109
Em
outras palavras, um conceito preciso deve impor a marca da recusa de valores
pré-estabelecidos, a marca de tudo que se nega em sua incorporação. É preciso
anular o vago e o incerto de um fenômeno para, posteriormente, remodelá-lo e
fixá-lo. Esta dialetização do conhecimento proporcionaria novos conceitos,
libertos dos valores afirmativos, já desgastados, mas mesmo assim considerados
plenos e seguros.
Bachelard,
procurando dialetizar a questão da distensão, ou seja, a questão do repouso, no
qual a inteligência se entrega a sua função especulativa, coloca-se no cerne do
ponto de vista funcional, abandonando
o ponto de vista ontológico. Assim,
retoma o problema, ressaltando o seu aspecto prático, enquanto experiência de
vida, para enfim esclarecer que a classificação dos conceitos "em juízos
afirmativos e negativos tem um real valor psicológico"110, se
instituída pela ótica funcional.
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