sábado, 14 de fevereiro de 2015

NEUZA MACHADO - DO PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL

NEUZA MACHADO - DO PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL


A continuidade psíquica, para Bachelard, coloca um problema, já que os encadeamentos psíquicos geralmente são hipóteses. A vida complexa é composta por uma pluralidade de durações díspares: ritmos diferentes, durações sólidas e insólitas em seu encadeamento, com potências desiguais em seus segmentos. A continuidade psíquica não seria nunca um dado específico e pleno, ao contrário, comporia sempre uma obra, construída pela pluralidade de durações, sob o lento ajuste das coisas e dos tempos, sob a ação do espaço sobre o tempo e a reação do tempo sobre o espaço e, em tal obra, permaneceria (historicamente) apenas a duração pela razão, tão diferente da duração pelas coisas.

Para Bachelard, a duração verdadeira possui várias formas: a ação real do tempo necessita da riqueza das coincidências, da sintonia dos esforços rítmicos. O ritmo promove um repouso garantido, possibilita o reencontro com os impulsos primeiros; seria, no caminho do ser, a noção temporal fundamental. Assim, os chamados fenômenos da duração seriam construídos com ritmos, ou seja, sistemas de instantes ou acontecimentos excepcionais, que marcam profundamente a vida temporal. Esses sistemas de instantes ou acontecimentos excepcionais sustentariam a regularidade da vida, os aspectos harmoniosos da vida, gerados por pensamentos estáveis e seguros. Por esta ótica, o repouso, como o quer Bachelard, seria uma vibração feliz, curando e desembaraçando a alma das durações malfeitas.

Opondo-se ao pleno bergsoniano, Bachelard sustenta a filosofia da negatividade, provando que uma vida rítmica, sustentada por pensamentos rítmicos e racionais (observar que Bachelard não está preocupado com o aspecto sentimental ou passional da questão), desembaraça a alma das falsas permanências, desorganizando-a temporalmente sob a égide da razão. A filosofia da negatividade direciona os esforços de dissociação até o tecido temporal e, com isto, ilude os ritmos malfeitos, aquieta os ritmos forçados, excita os ritmos langorosos, enfim, busca a síntese do ser no ajustamento do que está por vir, movimentando a vida sensatamente ritmada pelos sons equilibrados da livre intelectualidade.


II.7 - A Filosofia do Vazio em Contraposição à do Cheio

No capítulo "A distensão e o nada"105, Bachelard mostra que não é um total opositor de H. Bergson, apenas não aceita sua duração plena, contínua, estável e segura,e, por isso, procura provar que em qualquer duração existe a essência metafísica do risco — absoluto e total, sem objetivo e sem razão —, e que esse risco possibilita a destruição da segurança da felicidade de qualquer indivíduo. O risco absoluto abala as estruturas das coisas estáveis como uma vertigem que atrai o sujeito pensante para o perigo, para a novidade, para a morte, para o nada.

Por este aspecto, o risco absoluto poderia ser detectado no momento em que o sujeito pensante estivesse submetido ao repouso ativado. O repouso ativado (ou fervilhante) seria o momento da distensão, do afrouxamento, do não-funcionamento dos pensamentos comandados pela filosofia do cheio. Esse momento de distensão (jamais pensar nesse repouso como algo lúdico e tranqüilo) propicia uma identificação maior com o nada e a rejeição das confirmações secularmente instituídas. Assim, paralelamente à filosofia da qualificação bergsoniana, Bachelard postula a filosofia da aniquilação, demonstrando que o repouso ativado mediaria os dois aspectos filosóficos.

O repouso ativado impediria ou promoveria a aniquilação total do indivíduo, demonstraria o sucesso ontológico do ser, se fosse observado posteriormente (depois do repouso) uma criação renovada do ser por ele mesmo. Esta criação renovada, ligada ao ato espiritual da consciência em sua forma gratuita, instauraria, por exemplo, uma resistência aos apelos do suicídio, demonstraria também o triunfo do indivíduo pensante sobre a sedução do nada, mas demonstraria sobretudo que os pensamentos surgidos depois da antevisão da aniquilação seriam totalmente inéditos, diferentes dos já padronizados.

A filosofia da aniquilação comprova que o ser, o movimento, o espaço, a duração, admitem lacunas, e estas lacunas são sustentadas no espaço intermediário do instante dinamizado, suspenso entre o antes e o depois. A filosofia da aniquilação, bachelardiana, supõe o nada como limite, enquanto que a filosofia da qualificação, bergsoniana, supõe a substância como suporte. O nada bachelardiano postula o repouso da ação natural da duração, já que uma função deve freqüentemente interromper-se de funcionar. Depois da interrupção (do repouso fervilhante), surge o pensamento puro, resgatado da idéia do nada. Assim, o pensamento puro, segundo Bachelard, recomeça da recusa da vida estabilizada, na tentativa de reformulá-la. Com a interrupção da função, surge o princípio da negação temporal.

Já que a função (ação natural da duração ou o papel da duração na realidade temporal) deve freqüentemente interromper-se de funcionar, para Bachelard, é algo normal atingir o limite e pensar a questão do repouso da ação natural da duração. O ato de pensar a questão do repouso ativado revela que há diferentes estágios (fundamentais) na realidade temporal, e este conhecimento só se torna possível quando se retrocede o princípio da negação até a realidade temporal. O repouso ativado permite esse retrocesso e faz entender a questão do nada; o repouso ativado (recusa da vida estável) permite uma nova atuação do pensamento, agora claro, puro, surgido a partir do vazio.

Entre o vazio e cheio, parece-nos haver uma perfeita correlação. Um não é inteligível sem o outro, e sobretudo uma ação não se esclareceria sem a outra. Se nos recusam a intuição do vazio, estamos no direito de recusar a intuição do cheio.106

Bachelard não aceita os juízos pré-estabelecidos: estes já surgem como argumentos frágeis, impedindo a polêmica ou debate. Ao comentar os juízos de valor, critica explicitamente as idéias de Bergson. A comparação de dois juízos pré-estabelecidos (esta mesa é branca em confronto com esta mesa não é branca) não gera polêmicas, apenas mostra que a primeira afirmação denuncia o caráter determinado e imediato do juízo de valor enquanto que a segunda denuncia o caráter indeterminado e indireto do outro juízo de valor.

Para o filósofo, vale mais o juízo da descoberta. Por exemplo, a descoberta da dália azul (já que não há dálias azuis no âmbito do juízo pré-estabelecido) gerando espanto, exclamações e naturalmente polêmicas ardentes. No entanto, prova-se a existência de uma dália azul no âmbito do pensamento enérgico e decisivo. Todos os juízos enérgicos, para Bachelard, são juízos negativos. Esse juízos negativos evitam repetir velhas fórmulas de pensamento, velhas afirmações enganosas. Os valores afirmativos não solucionam questões, apenas preenchem o pensamento.

A afirmação, pela ótica de Bachelard, não significa conhecimento positivo. A afirmação da existência de uma dália azul destrói o juízo de valor que atribui outras colorações já determinadas (outras cores além do amarelo, branco ou rosa) para as dálias que enfeitam os jardins. Tal afirmação destrói juízos anteriores, mas impõe uma nova construção do juízo que se faz desta flor; tal afirmação aniquila as aparências da realidade, deixando em aberto a questão da essência. Uma dália azul existe e faz parte da realidade do ser que sabe expor argumentos decisivos. Os fenômenos existem ativos ou passivos, e os passivos estão vagando por aí à espera de quem os descubra.

O juízo da descoberta, ainda pelo ponto de vista de Bachelard, invalidaria certas afirmações plenas, que apenas preenchem e não solucionam as questões que incomodam o ser e sua existência. Observando que as afirmações nem sempre são sinônimos de conhecimento positivo e demonstrando que "a vida psicológica deve ser captada em seus atos, em sua ondulação, não em sua fonte magra e hipotética"107, o filósofo orienta-me quanto à questão do Conhecimento. Para ele, o Conhecimento, ao ser verbalizado, deve instaurar polêmica, deve ser destruído e construído, sendo que a construção às vezes nunca termina.

O pensamento transmutativo seria portanto a "única positividade clara de um conhecimento"108, apreendida na consciência das retificações, nas insinuações, nas persuasões, nas discussões polidas, nas ondulações do pensamento dialético. O conhecimento dialetizado, descontínuo, sob o suporte de um fingido comportamento de continuidade, como por exemplo a falsa aceitação de pensamentos plenos, subentendida em apartes de supostas concordâncias, tais como, também fui dessa opinião, mas... etc, superaria inevitáveis incidentes e promoveria uma demonstração do negativismo psicológico, ou seja, uma temporária negação de suas idéias.


O juízo afirmativo fingido seria uma aceitação provisória e obrigaria o adepto dos valores afirmativos plenos e inteiros a aceitar outros pensamentos que contradissessem os seus. As regras conceituais já determinadas impedem novas conceituações e por isso são criticadas por Bachelard, que prefere desenvolver uma filosofia da aniquilação, propulsora de novos pensamentos que atuarão no devir.

Para Bachelard,

Todo conhecimento preciso conduz a uma aniquilação das aparências, a uma hierarquização dos fenômenos, ao ato de lhes atribuir de algum modo coeficientes de realidade, ou, se preferirmos, coeficientes de irrealidade. Analisa-se assim o real a golpes de negação. Pensar é fazer abstração de certas experiências, é mergulhá-las voluntariamente na sombra do nada.109

Em outras palavras, um conceito preciso deve impor a marca da recusa de valores pré-estabelecidos, a marca de tudo que se nega em sua incorporação. É preciso anular o vago e o incerto de um fenômeno para, posteriormente, remodelá-lo e fixá-lo. Esta dialetização do conhecimento proporcionaria novos conceitos, libertos dos valores afirmativos, já desgastados, mas mesmo assim considerados plenos e seguros.

Bachelard, procurando dialetizar a questão da distensão, ou seja, a questão do repouso, no qual a inteligência se entrega a sua função especulativa, coloca-se no cerne do ponto de vista funcional, abandonando o ponto de vista ontológico. Assim, retoma o problema, ressaltando o seu aspecto prático, enquanto experiência de vida, para enfim esclarecer que a classificação dos conceitos "em juízos afirmativos e negativos tem um real valor psicológico"110, se instituída pela ótica funcional.


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