terça-feira, 8 de maio de 2012

Os Mura - tribo extinta

Os Mura - tribo extinta
 
                 Ulysses Bittencourt


         Os grupamentos Mura caracterizavam-se pelo nomadismo e pelas estrepolias de seus componentes, cuja movimentada presença se fazia notar em vastas extensões do teritório amazonense, principalmente no rio Solimões, entre as bacias do Madeira e Purus.
         Foram tais as desordens praticadas, as depredações e saques cometidos, que aqueles indígenas criaram fama de baderneiros e atrasados. Porém, tudo leva a crer que assim procediam em resposta à atitude violenta dos brancos invasores. Consta que em certa época permaneceram por algum tempo na margem do rio Negro, em frente à Vila da Barra, quando a travessia se tornou impraticável para os habitantes da futura cidade de Manaus.
         O tempo e as circunstâncias os foram vencendo e os últimos remanescentes se fixaram no Lago do Ayapuá, à margem esquerda do rio Purus, no Município de Manacapuru [ATUALMENTE, O AYAPUÁ PERTENCE AO MUNICÍPIO DE BERURI, QUE HÁ DECADAS FOI EMANCIPADO DE MANACAPURU, JÁ TENDO SIDO MUNICÍPIO AUTÔNOMO. (*)]. Existe um trabalho do Prof. Agnello Bittencourt, publicado no 'Jornal do Comércio' de Manaus, em 30 de outubro de 1923, sob o título 'Os Muras do Ayapuá', contando a respeito dos membros da velha tribo naquela região, com os quais o autor conviveu durante mais de três anos, no final do século passado. Declara o articulista: 'A ocupação desses indígenas é, ali, imemorial. Quando o Capitão Manoel Nicolau de Mello, em 1851, pernetrou e explorou aquela bacia lacustre, lá encontrou os muras, que de bom grado, receberam a gente do rio Negro, conduzida por aquele intemerato pernambucano, para o trabalho extrativo da castanha e de outros produtos florestais', (assim como ma pesca do pirarucu e peixe-boi). E prossegue: 'Travaram boas relações, não constando que tivesse surgido a mais leve desavença'. À época eram cerca de duas centenas de silvícolas. O Prof. Agnello afirma que os muras do seu conhecimento tinham índole diferente dos que dominavam os rios Solimões e Madeira. Pela má fama destes últimos, os do Ayapuá não gostavam de ser chamados muras, até porque o termo continha um significado depreciativo de qualificação do que como nome próprio da tribo.
         Os indígenas agrupados na propriedade do Cel. Mello, e em torno dele, diferenciavam-se dos demais do seu grupo étnico, principalmente pelos hábitos de conduta e fixação à terra. Quando muito, mudavam-se de um para outro lado do lago. Segundo informa ainda o Prof. Agnello, em 1923 restavam apenas uns trinta ou quarenta indivíduos morando em malocas, próximas das moradias dos cariuas, isto é, dos brancos, proprietários dos castanhais. Entre eles estava o velho Raimundinho, que morreu com mais de cem anos, já muito definhado e era transportado pelos parentes, para onde fossem, num aturá preso às costas dos rapazes, como se se tratasse de uma criança de colo.
         Já em janeiro de 1969, quando estive, novamente, no Lago do Uauaçú, acompanhado da família, vimos uma índia de cerca de setenta anos, trabalhando ainda na agricultura, e que diziam ser a última abencerragem do local. Falava em português entremeado de palavras tupi, sendo, a princípio, um tanto difícil compreender sua algaravia. Oferecemos-lhe sabonetes perfumados, o que foi muito do seu agrado, e logo pediu-nos cachaça. Não admitiu sob nenhum pretexto que a fotográfassemos (e só o fizemos pelas costas, sem que pressentisse).
         Lembro, também, de um episódio curioso, quando passamos no Ayapuá mais do que um ano ininterrupto, em 1922/23: certo dia uma índia procurou minha mãe e ofereceu-lhe ovos de galinha por preço muito inferior ao corrente. Julgando tratar-se de ignorância, minha mãe alertou-a a respeito, mas a índia, rindo com seu jeito malicioso, declarou com toda a franqueza saber do fato e assim fazer porque, além de ficar amiga, receberia melhores recompensas, o que realmente aconteceu; levou o preço pedido e mais uma infinidade de pequenas coisas...
         O certo é que os grupos indígenas dos mura, numerosos quando da ocupação da Amazônia, estão extintos [O AUTOR REFERE-SE AOS MURA DA REGIÃO DO BAIXO PURUS, onde ainda há índios, em localidade denominada Terra Vermelha, porém de outra etnia autóctone]. Os descendentes, não se considerando ligados à tribo, foram-se mesclando aos portugueses e nordestinos colonizadores. Com a crise econômica do declínio do valor da borracha (pois na região há, também, seringais) foram suprimidas a sub-delegacia de polícia, do Ayapuá, as duas escolas existentes e as subvenções oficiais para os 'navios de linha' para o Lago e, com isso, os moradores dali se foram transferindo gradativamente para Manaus, onde vieram aumentar o número de bairros populares. Um dos hábitos antigos era o de mandar para a capital as filhas moças, confiadas a famílias respeitáveis, para, no serviço caseiro, aprenderem utilidades domésticas. Aprendiam a ler e escrever, tornavam-se muitas vezes amigas de toda a confiança, cuidavam das crianças, várias casaram com bom enxoval e a amizade dos patrões, aos quais poderiam sempre recorrer como fonte de conselhos e proteção. Algumas serviram como amas-de-leite e acompanharam duas ou mais gerações de uma casa.
         Hoje, no Ayapuá, e quiçá em todo o Amazonas, há caboclos autênticos, descendentes às vezes imediatos de tribos destacadas, mas os mura, propriamente, constituem apenas o eco de um passado altaneiro."

(BITTENCOURT, Ulysses. Raiz [COLETÂNEA DE CRÔNICAS PUBLICADAS EM A CRÍTICA], Rio de Janeiro: Copy & Arte, 1985; diagramação e produção gráfica: Jocenir Ribeiro [A CRÔNICA TRANSCRITA CONSTA ÀS PP. 48-49])  
(*) - Prefeito do Município do Aiapuá, mas que raramente ia ao Lago, foi o saudoso jornalista manauara Jovino Lemos (irmão do na época famoso repórter [DA REVISTA O CRUZEIRO] Ubiratan de Lemos), como lembrou U. Bittencourt, em outra crônica.

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