NEUZA
MACHADO - DO
PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL
Em "São
Marcos", narrativa do corpus de Sagarana, o Artista pré-anuncia as descobertas das
perspectivas dialética e maravilhada, perspectivas estas que serão devidamente
recriada nas páginas de Grande
Sertão: Veredas. Em "São Marcos", o narrador, sob a
orientação mágica da feitiçaria (plano mítico-substancial) e da desautomatização da linguagem, e além
disso, procurando reorganizar esteticamente o real sertanejo, passa a ressaltar
as belezas das serras e grotas, quase entrevendo o mundo fechado e de
formas vagas do imaginário criativo.
"São
Marcos" é uma narrativa que mistura o gênero ensaístico (o narrador como
repórter de um lugar primitivo, mostrando as ideologias e superstições de um
povo) com a capacidade de desautomatizar a linguagem, ou seja, utiliza-se de um
linguajar insólito para descrever a natureza, portanto, já entrevendo a sua
imaginação criadora, que está a caminho. No entanto, sob o simples comando da
descrição, a poética da água145 já
começa a se destacar, assim como o verde
das folhas em meio ao colorido intenso e exterior de um mundo desconhecido e
mítico.
Do lado da
encosta e do lado do vale, temos a mata: marmelinho, canela, jacarandá,
jequitibá-rosa; a barriguda, armada de espinhos, de copa redonda; a
mamica-de-porca — também de coluna bojuda, com outros espinhos; o
sangue-de-andrade, que é "pau dereito"; o esqueleto de um
deixa-falar, sem uma folha, guardada apenas a grade resseca; e os jacarés novos, absurdos, de folhinhas
finas, em espiguilha, que nem folhas de sensitiva, enquanto a casca se eriça em
tarjas, cristas, listéis e caneluras, como a crista do dorso de um caimão.(...)
E nas ramas, rindo, cheirosos epidendros, com longos labelos marchetados de
cores, com pétalas desconformes, franzidas, todas inimigas, encrespadas,
torturadas, que lembram bichos do mar róseo-maculados, e roxos, e ambarinos —
ou máscaras careteantes, esticando línguas de ametista.(...) Mas, as imbaúbas!
As queridas imbaúbas jovens, que são toda uma paisagem!... Depuradas, esguias,
femininas, sempre suportando o cipó-braçadeira, que lhes galga o corpo com
espirais contrictas. De perto, na tectura sóbria — só três ou quatro galhos —
as folhas são estrelas verdes, mãos verdes espalmadas; mais longe, levantam-se
das grotas, como chaminés alvacentas; longe-longe, porém, pelo morro, estão
moças cor de madrugada, encantadas, presas, no labirinto do mato. (...) Pelas
frinchas, entre festões e franças, descortino, lá em baixo, as águas das
Três-Águas. Três? Muito mais! A lagoa grande, oval, tira do seu pólo rombo dois
córregos, enquanto entremete o fino da cauda na floresta. Mas, ao redor, há o
brejo, imensa esponja onde tudo se confunde: trabéculas de canais, pontilhado
de poços e uma finlândia de lagoazinhas sem tampa. (...) E as superfícies
cintilam, como raros jogos de espelho, com raios de sol, espirrando asterismos.
E, nas ilhas, penínsulas, istmos e cabos, multicrescem taboqueiras, tabúas,
taquaris, taquaras, taquariúbas, taquaratingas e taquarassus. Outras imbuíbas
mui tupis. E o buritizal: renques, aléias, arruados de buritis, que avançam
pelo atoleiro, frondosos, flexuosos, abanando flabelos, espontando espiques; de
todas as alturas e de todas as idades, famílias inteiras, muito unidas; buritis
velhuscos, de palmas contorcionadas, buritis-senhoras, e, tocando ventarolas,
buritis-meninos.146
Por enquanto, o
sonhador do sertão reproduz os
sonhos retorcidos de sua meia-noite psíquica,
imita o reflexo da paisagem
sertaneja, saído das águas mágicas
das lembranças. Ele reproduz linearmente
as cores e as formas de uma natureza que sempre o encantou (aqui, o verbo encantar no seu sentido etimológico), pois
a paisagem revisitada no decurso das
lembranças (o reflexo da superfície da lagoa oval do brejo) "determina o
devaneio que antecede a criação artística"147.
A grande obra,
saída dos devaneios da vontade (Grande
Sertão: Veredas), está por ora no porvir e reclama ser
apreendida.
A narrativa
"São Marcos" ressalta, além da descrição da natureza em seus aspectos
míticos (matéria mítica), os cultos secretos oriundos dos escravos africanos e
as antiquadas práticas de feitiçaria comuns no sertão. O narrador (citadino)
reavalia a distância entre o pensamento do homem culto e o do homem inculto,
descobrindo que os medos e superstições são inerentes a qualquer indivíduo,
independentes de cor e casta. A mandinga do preto Mangolô é a via de acesso
para que o branco letrado possa penetrar
temporariamente (no ápice da narrativa) na caverna
mágica da criação literária, local de iniciação, pois no Calango Frito,
"até os meninos faziam feitiço"148. Desta forma, apesar dos avisos de Sa Nhá Rita Preta, a
cozinheira, o narrador engeriza o
Mangolô, pois só por meio da provocação conseguirá romper os limites da
realidade e alcançar as imagens intermediárias da gruta (característica de
narrativa mítico-substancial), que o levarão ao labirinto, subterrâneo e criativo, de Grande
Sertão: Veredas.
As imagens da
gruta pertencem à imaginação do repouso, enquanto as do labirinto pertencem à
imaginação do movimento difícil, do movimento angustiante.149
O narrador de
"São Marcos" retirou-se para o aconchego da gruta/sertão sob o
comando das lembranças e, comodamente instalado nesse espaço, visita os pequenos detalhes que a
compõem. Se no início sentiu medo, aos poucos acomodou-se à idéia de novamente
conviver com uma realidade conhecida na infância, mas temporalmente perdida no
passado e esquecida na maturidade. O retorno ficcional ao sertão, em seu
aspecto diegético, é o retorno à gruta, ao útero, ao primitivo, qualquer que
seja o termo que simbolize a recuperação de uma vivência primeira. Por isto, as
imagens são naturais, verossímeis. O Artista reproduz aquilo que foi visto e
sentido inúmeras vezes. Por isto, ele ainda não recria o Sertão, apenas aceita a perfeita criação da natureza. Engerizando
o preto Mangolô, ele se obriga a penetrar no cerne da gruta/sertão, uma adesão que o faz sonhar interminavelmente, repousadamente,
depois dos primeiros sintomas de medo, obrigatoriamente sintomas iniciais das
futuras incursões em cavernas desconhecidas.
Bastam uns
poucos minutos de permanência para que a imaginação comece a ajeitar a casa.
(...) (O sonhador vê tudo) o recanto para o leito de samambaias, a guirlanda
das lianas e das flores que decora e esconde a janela contra o céu azul. Essa
função de cortina natural aparece com
regularidade em muitas grutas literárias.150
O
sonhador/narrador vê tudo: a mata e suas árvores, as ramas de epidendros e seus
contornos poéticos, as imbaúbas jovens, tão femininas, tão verdes, tão moças
cor de madrugada, encantadas; mas, é "pelas frinchas" (janelas?),
"entre festões e franças" (cortinas?), que o narrador descortina, "lá em baixo, as águas
das Três Águas".
Quando o
Artista se deixa flagrar olhando a
gruta, ele está olhando através da imagem da janela, que propicia "ver sem
ser visto"151.
O que ele deseja é registrar sua curiosidade, seu desejo de conhecer o segredo
da procriação. O sertão, na narrativa analisada, é momentaneamente o espaço do
recato, e a floresta é a virgem, que
ali se refugia. O narrador, alter ego do Artista citadino do século XX, mas de
origem sertaneja, é o invasor, que
vai macular aquele espaço de pureza.
O narrador registra despudoradamente
esta intimidade, há séculos guardada a sete chaves. Pelas frinchas, entre festões e franças, ele se apodera da
intimidade de uma família de buritis: buritis velhuscos, de palmas
contorcionadas, buritis-senhoras e buritis-meninos.
Por esta
perspectiva anulada (o termo perspectiva
anulada, aqui, não possui caráter depreciativo), mas extremamente pitoresca
e sedutora, seria possível analisar todas as narrativas de Sagarana
anteriores a A hora e vez de Augusto Matraga.
A partir de “O burrinho pedrês”, "A volta do marido pródigo",
"Sarapalha" (em que o narrador experiente
reproduz os sintomas da malária), "Duelo" (a estória de Turíbio Todo,
seleiro, papudo, traído e vingativo, mas, além de tudo, vítima da própria
vingança), "Minha gente" (retorno simbólico à terra natal),
"Corpo fechado" (a estória das façanhas
de Manuel Fulô, com certeza muito amigo do Doutor João Rosa, natural de
Cordisburgo, pequena cidade incrustada nas Gerais,
sertão de Minas152)
e "Conversa de bois" (graciosa fábula sertaneja), haveria
possibilidade de reunir e apresentar argumentos comprovadores, tais como
realçar a reunião de árvores e animais, flores coloridas, conhecimentos
variados; todas estas focalizações da perspectiva assinalada ansiando
ultrapassar os limites do sensivelmente dado, como por exemplo a "finlândia de lagoazinhas sem tampa"
(que lembra o espaço geográfico da Finlândia) e os "festões" (que lembram a França, em plena mata), e, enfim,
seria possível provar, com o apoio da filosofia bachelardiana evidentemente,
que a samambaia cresce em todos os cantos
do mundo, e que as reminiscências da Europa permanecem vivas em um povo
terceiromundista ainda ligado à metrópole européia que o concebeu.
Não seria
demais repensar a afirmativa de Rosa:
Sabe também que
uma parte de minha família é, pelo sobrenome, de origem portuguesa, mas na
realidade é um sobrenome suevo que na época das migrações era Guimaranes, nome
que também designava a capital de um estado suevo na Lusitânia? Portanto, pela
minha origem, estou voltado para o remoto, o estranho. Você certamente conhece
a história dos suevos. Foi um povo que, como os celtas, emigrou para todos os
lugares sem poder lançar raízes em nenhum. Este destino, que foi tão
intensamente transmitido a Portugal, talvez tenha sido o culpado por meus
antepassados se apegarem com tanto desespero àquele pedaço de terra que se
chama o sertão. E eu também estou apegado a ele...153
O Artista
Ficcional do sertão está voltado para o remoto, para o estranho, porque sua
origem antiqüíssima o atrai. Reencontrar seu início histórico, aventureiro, é algo impossível em meio à
agitação da modernidade. A elaboração de uma ficção experiente produz bem estar, fá-lo recuperar o calor da antiga
intimidade perdida e para-sempre desejada. O sertão do passado é o símbolo
desse desejo de aconchego, é o refúgio para o abrigo de sua própria solidão
modernizada. As imagens da gruta são repousantes, fazem parte de um território
secreto, só acessível aos iniciados em rituais primitivos ou descendentes de
raças antigas. O olhar está repousado e os encantos da natureza enfeitam sua
propriedade particular, enfeitam as suas imagens fundamentais.
Para ficarmos
bem sozinhos, é preciso que não tenhamos demasiada luz. Uma atividade subterrânea beneficia-se de
uma mana imaginária. É preciso
conservar um pouco de sombra ao nosso redor. É mister saber entrar na sombra
para ter força de escutar a nossa obra.154
As imagens
fundamentais do sertão da infância não poderiam jamais sair das mandingas do
preto Mangolô. Este é apenas o indutor, o ponto de partida para a viagem
retomada. O narrador, repousado, recupera a natureza, os cultos secretos, as
superstições; reavalia a distância entre o pensamento do homem culto e o do
homem inculto; descobre aproximações que independem de cor e casta; mas isto
ainda é pouco para quem deseja recolher-se à própria solidão. Sob a luz
intensa, os sonhos não podem ser concentrados, o narrador não poderá ouvir os sons de sua própria obra em
germinação. Zombar do feiticeiro Mangolô, no momento, é seu único trunfo para
alcançar o âmago de um espaço primitivo.
E eu abusava,
todos os domingos, porque, para ir domingar no mato das Três Águas, o melhor
atalho renteava o terreirinho de frente da cafua do Mangolô, de quem eu zombava
já por prática. Com isso eu me crescia, mais mandando, e o preto até que se
ria, acho que achando mesmo graça em mim.155
O ato de zombar
do sagrado exige castigo. O narrador,
submetido ao plano mítico-substancial, zomba do feiticeiro, para ser castigado
e, com isto, sentir e desvendar os
segredos de um espaço que ainda conserva formas anti-diluvianas.
Bem, ainda na
data do que vai vir, e já eu de chapéu posto, Sa Nhá Rita Preta minha
cozinheira, enquanto me costurava um rasgado na manga do paletó ("cozo a
roupa e não cozo o corpo, cozo um molambo que está roto..."),
recomendou-me que não engerizasse o Mangolô. Bobagem! No céu e na terra a manhã
era espaçosa: alto azul, glácio, emborcado, só na barra azul do horizonte
estacionavam cúmulos, esfiapando sorvete de côco; e a leste subia o sol,
crescido, oferecido — um massa-mel amarelo, com favos brilhantes no meio a
mexer.156
A claridade da
manhã impede o acesso visual às coisas secretas; o Artista Literário experiente ainda não possui poder para
alcançar o além dos limites conceituais; necessita perder a visão, ouvir o
inaudível; carece ser castigado com a cegueira, e o Calango-Frito (povoado
sertanejo), com seus feiticeiros, simboliza um dos últimos redutos de magia no
avançado mundo tecnológico. O Artista se traveste de caçador e incrédulo, para
desafiar as leis do desconhecido; traveste-se de caçador, porque não quer
dividir com o povo (com a massa, com
os cegos adeptos do cogito(1))
suas futuras descobertas.
Eu levava boa
matalotagem na capanga, e também o binóculo. Somente o trambolho da espingarda
pesava e empalhava. Mas cumpria com a lista, porque eu não podia deixar o povo
saber que eu entrava no mato, e lá passava o dia inteiro, só para ver uma
mudinha de cambuí a medrar da terra de-dentro de um buraco no tronco de um
camboatã; para assistir à carga frontal das formigas-cabaças contra a pelugem
farpada e eletrificada de uma tatarana lança-chamas; para namorar o namoro dos
guaxes, pousados nos ramos compridos da aroeira; para saber ao certo se o meu
xará joão-de-barro fecharia mesmo a sua olaria, guardando o descanso
domingueiro; para apostar sozinho no concurso de salto-a-vara entre os
gafanhotos verdes e os gafanhões cinzentos; para estudar o treino de
concentração do jaburu acromegálico; e para rir-me, à glória das
aranhas-d'água, que vão corre-correndo, pernilongando sobre a casca de água do
poço, pensando que aquilo é mesmo chão para se andar em cima.157
A ultrapassagem
do sensivelmente dado o guiará para um plano de autêntica solidão. No momento,
o caminhante só visualiza uma saída: a adesão aos valores do Maravilhoso, ou
seja, a submissão ao castigo do
Mangolô, que o tornará momentaneamente cego. Para ficar sozinho no meio do mato (da gruta), é necessário abster-se
da luz, o que proporcionará o ato de ouvir
com atenção o rumor inicial da criação literária. A gruta selvagem é o reduto da pura intuição. O Artista Literário
começa a intuir suas futuras formas de criação ficcional. A intuição provém de
um Mundo ainda não-conceituado. E o xará do joão-de-barro, em sua caminhada
para os cogitos superiores, procura zombar de João Mangolô, partícula das mil
faces do Artista brasileiro: um somatório de raças, de crenças e de idades
temporais.