sábado, 3 de março de 2012

EUCLIDES DA CUNHA - A fauna singular e monstruosa

Completa-a, ainda sob esta forma antiga, a fauna singular e
monstruosa, onde imperam, pela corpulência, os anfíbios, o que é
ainda uma impressão paleozóica. E quem segue pelos longos rios, não
raro encontra as formas animais que existem, imperfeitamente, como
tipos abstratos ou simples elos da escala evolutiva. A “cigana”
desprezível, por ex., que se empoleira nos galhos flexíveis das
oiranas, trazendo ainda na asa de vôo curto a garra do réptil...
Destarte a natureza é portentosa, mas incompleta. É uma construção
estupenda a que falta toda a decoração interior. Compreende-se bem
isto: a Amazônia é talvez a terra mais nova do mundo, consoante as
conhecidas induções de Wallace e Frederico Hartt. Nasceu da última
convulsão geogênica que sublevou os Andes, e mal ultimou o seu
processo evolutivo com as várzeas quaternárias que se estão formando
e lhe preponderam na topografia instável.
Tem tudo e falta-lhe tudo, porque lhe falta esse encadeamento de
fenômenos desdobrados num ritmo vigoroso, de onde ressaltam,
nítidas, as verdades da arte e da ciência - e que é como que a
grande lógica inconsciente das coisas.
Daí esta singularidade: é de toda a América a paragem mais
perlustrada dos sábios e é a menos conhecida. De Humboldt a Em.
Goeldi - do alvorar do século passado aos nossos dias, perquirem-na,
ansiosos, todos os eleitos. Pois bem, lede-os. Vereis que nenhum
deixou a calha principal do grande vale; e que ali mesmo cada um se
acolheu, deslumbrado, no recanto de uma especialidade. Wallace,
Mawe, W. Edwards, d’Orbigny, Martius, Bates, Agassiz, para citar os
que me acodem na primeira linha, reduziram-se a geniais escrevedores
de monografias.
A literatura científica amazônica, amplíssima, reflete bem a
fisiografia amazônica: é surpreendente, preciosíssima, desconexa.
Quem quer que se abalance a deletreá-la, ficará, ao cabo desse
esforço, bem pouco além do limiar de um mundo maravilhoso.
Há uma frase do Professor Frederico Hartt que delata bem o delíquio
dos mais robustos espíritos diante daquela enormidade. Ele estudava
a geologia do Amazonas quando em dado momento se encontrou tão
despeado das concisas fórmulas científicas e tão alcandorado no
sonho, que teve de colher, de súbito, todas as velas à fantasia:
- “Não sou poeta. Falo a prosa da minha ciência. Revenons!”
Escreveu; e encarrilhou-se nas deduções rigorosas. Mas decorridas
duas páginas não se forrou a novos arrebatamentos e reincidiu no
enlevo... É que o grande rio, malgrado a sua monotonia soberana,
evoca em tanta maneira o maravilhoso, que empolga por igual o
cronista ingênuo, o aventureiro romântico e o sábio precavido. As
“amazonas” de Orellana, os titânicos curriquerês de Guillaume de
L’Isle e a Mana del Dorado de Walter Raleigh, formando no passado um
tão deslumbrante ciclo quase mitológico, acolchetam-se em nossos
dias às mais imaginosas hipóteses da ciência. Há uma hipertrofia da
imaginação no ajustar-se ao desconforme da terra, desequilibrando-se
a mais sólida mentalidade que lhe balanceie a grandeza. Daí, no
próprio terreno das indagações objetivas, as visões de Humboldt e a
série de conjeturas em que se retravam, ou contrastam, todos os
conceitos, desde a dinâmica de terremotos de Russell Wallace ao
bíblico formidável das galerias pré-diluvianas de Agassiz.


À MARGEM DA HISTÓRIA

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