José Castello: O rato da roupa de ouro
A matéria
do poder
Por José
Castello
O GLOBO – 30.11.2013
Chega-me de Teresina, Piauí, “O rato
da roupa de ouro”, narrativa infantil de Dilson Lages Monteiro (FOTO),
com ilustrações de Ângela Rego (Nova Aliança Editora/Portal Entretextos). Um
delicado esforço para aproximar as crianças de um dos mais complexos temas do mundo
contemporâneo: o poder. Crianças precisam de limites.
A compreensão da opressão, porém, as
ajuda a entender melhor os limites desses limites e a distinguir o respeito ao
outro do desprezo pelo outro. Um tema doloroso, que Dílson transforma, porém,
em um relato inspirador. “A sombra da lua caminhava entre pedras. Galhos secos
espreguiçavam seus braços e pernas”, começa Dilson, humanizando a natureza e
tornando-a menos angustiante.
Os animais que a habitam vivem sob o
jugo de um rato. Ele dá as regras, ele diz como cada um dos bichos deve ser.
“Vence os dias o mais adaptado, o mais rápido, o mais atento, o maior em
esperteza e sabedoria”, pensa. E é assim, segundo seus próprios valores, e sem
considerar os alheios, que governa um casarão abandonado.
Tanto o rato é esperto que, em vez de
impor seu governo com a violência, o impõe com a adulação. Sua política é a da
submissão de almas. Tira seu poder não tanto da força, que não tem, mas da
astúcia, precioso e perigoso veneno. Mas o rato também tem seu limite: a cobra,
que desliza pelas frestas do casarão. Diante dela, o rato todo poderoso treme.
A cobra é seu inferno e, mais que isso, a fronteira que delimita seus atos.
Talvez — penso aqui — a cobra o leve
a experimentar a precariedade do poder.
Escritores conhecem isso muito bem.
Com seus rascunhos, anotações, esboços, eles tentam controlar narrativas e
personagens sobre os quais, a rigor, não têm controle algum. Todo escritor tem
um limite: sua própria fraqueza. Também o rato, cada vez que se defronta com a
cobra, prova dessa fronteira precária que ele, no entanto, logo ignora.
O relato de Dilson é narrado por um
frágil gafanhoto que, a toda hora, é obrigado a ouvir do rato uma ameaça:
“Quero ver apodrecer cada pedaço de sua folhagem, gafanhoto imprestável”. O
poder é cheio de vielas e de becos escuros. Na escuridão de suas entranhas
muita coisa parece ser o que não é. “Cheguei a pensar que me poupava em sinal
de gratidão”, admite o gafanhoto. “Eu ensinei o rato a pular e isso lhe
permitiu saltar para um galho quando, de surpresa, uma serpente deslizava,
pronta para o ataque”. Mas se existe algo que o rato — o poder — não tem é
gratidão. Não tem limites para seu ódio. Também com os grilos e os caracóis o
rato aprendeu a transformar-se em coisa morta, aprendeu a camuflar-se. Julgava
não lhes dever nada por isso. Mas o poder vê a piedade como uma forma de medo.
Qualquer leitor, por mais jovem que
seja, pode constatar as insuficiências do poder que o rato acredita possuir. A
começar por sua veneração pela serpente — “Admiro mesmo os mais fortes” — que,
apesar de majestosa, é a fronteira de sua desgraça. O rato admira ainda as
borboletas e os insetos voadores, porque, do contrário, com o frágil recurso da
leveza, são capazes de escapar de situações que, para ele, pesado e
iludido, se transformam em intenso perigo.
Um dia, uma tempestade arrasta o rato
poderoso para um buraco, onde ele se vê prestes a sufocar. A natureza é muito
mais forte do que ele, com sua arrogância, supõe. O gafanhoto se protege da
enxurrada montado no topo de uma árvore bem alta. “Do rato, só tive notícias no
dia seguinte. Para minha surpresa, dava ordens em um palácio”. A arrogância do
poder não tem fim e, mesmo da desgraça, um rato pode tirar mais força. No
buraco, seu corpo, em vez da lama, se cobre com um estranho pó amarelo,
que ele logo entende tratar-se de ouro. Mais ainda: logo entende que se tornou
num pequeno Midas, que transforma tudo o que toca em ouro também. “O rato,
então, percebeu que um poder misterioso tornava ouro tudo o que tocava”.
A generosidade do poder parece
inesgotável, enquanto, na verdade, ela só se impõe sob certas condições. Se
damos atenção a suas palavras, vemos que esse poder gerado pela desgraça se
torna ainda mais ameaçador. Mas é ele quem ameaça: “Quem não obedecer
transformarei em ouro”.
Só resta a sapos, grilos e
gafanhotos, abatidos como escravos, transportar pedaços de ouro para a toca
real. “No buraco já não cabia peça de ouro”. Mas o rato irá aprender que o
poder é transitório, que a realidade dá bruscas guinadas e, quando menos se
espera, inverte o destino das coisas. A realidade é fluida, móvel, e mesmo o
mais sólido poder, mais cedo ou mais tarde, pode ser arrastado pela enxurrada
do real.
Uma nova tempestade transforma seu
buraco de ouro e pureza em um mar de lama. “Parece que as águas de todos os
esgotos da cidade andavam juntas, tamanha a força com que entravam no
esconderijo dos bichos”. A lama é o reverso do ouro. Ela surge para indicar não
só os limites do poder, mas parte expressiva de sua origem.
O poder é fluido porque ele é sempre
uma tomada de posição diante do poder. O que faço? O que efetivamente posso
fazer? O que faço com o que efetivamente posso? Perguntas complexas atapetam o
caminho dos poderosos. A única maneira de tornar-se digno do poder é, em vez de
descartá-las, enfrentá-las. Mas o rato, confuso, levado pela lama revolta,
desmaia. “Acordou faminto, no antigo buraco em que morava. Olhou ao redor.
Ninguém. Ia sair, mas tremeu. Sentiu a respiração das serpentes”. O limite do
poder é outro poder.
Enquanto isso, o grilo — que sempre
apostou na leveza e nos saltos e se contentou com a precariedade de sua pequena
força —, sarado da perna, volta a sorrir. Ele compreende que o poder é leve e
transitório. Nunca dele esperou a salvação, mas apenas uma forma precária de
proteção. Nunca o viu como destino final, mas como um caminho não para levá-lo
para fora de si, mas para trazê-lo de volta a si. Por isso continua livre.
A história de Dílson Lages Monteiro
conduz seus pequenos leitores a uma confrontação precoce (e divertida) com a
fragilidade dos valores humanos. Mostra-lhes que eles são móveis, que eles são
instáveis, que eles são transitórios — que eles são, enfim, o que define o
próprio humano.
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