POETAS DO AMAZONAS
POETAS DO AMAZONAS
SEGUNDO ISAAC MELOhttp://almaacreana.blogspot.com.br/
Para
os que desconhecem a rica literatura amazônica, apresento, ora, alguns
dos principais poetas do Amazonas. Alguns conhecidos do grande público,
outros, nem tanto. Porém, todos de grande qualidade. Certamente há
muitos outros poetas e autores, mas, por ora, limito-me à esses de minha
predileção.
THIAGO DE MELLO
Thiago de Mello nasceu em Barreirinha em 1926, “um dos poetas mais influentes e respeitados no país”, e de importância mundial. É autor das seguintes obras poéticas: Silêncio
e Palavra, Edições Hipocampo, Rio de Janeiro, 1951; Narciso Cego,
Editora José Olympio, Rio de Janeiro, 1952; A Lenda da Rosa, Editora
José Olympio, Rio de Janeiro, 1956; Vento Geral (reunião dos livros
anteriores e mais dois inéditos: Tenebrosa Acqua e Ponderações que faz o
defunto aos que lhe fazem o velório), Editora José Olympio, Rio de
Janeiro, 1960; Faz Escuro mas eu Canto, Civilização Brasileira, Rio de
Janeiro, 1965; A Canção do Amor Armado, Civilização Brasileira, Rio de
Janeiro, 1966; Poesia Comprometida com a Minha e a Tua Vida, Civilização
Brasileira, Rio de Janeiro, 1975; Os Estatutos do Homem (com desenhos
de Aldemir Martins), Editora Martins Fontes, São Paulo, 1977; Horóscopo
para os que estão Vivos, Edição de luxo, ilustrada e editada por Ciro
Fernandes, Rio de Janeiro, 1982; Mormaço na Floresta, Civilização
Brasileira, Rio de Janeiro, 1984; Vento Geral, Poesia 1951-1981,
Civilização Brasileira, Rio de Janeiro 1981; Num Campo de Margaridas,
Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1986; De uma vez por todas,
Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1996; Campo de Milagres,
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998; Poemas preferidos pelo autor e
seus leitores: edição comemorativa dos 75 anos do autor, Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2001.
EMBALO DE REDE
“L’amour s’en va comme cette eau courante
L’amour s’en va
Comme la vie est lent
Et comme la espérance est violente”
Apollinaire
O nosso amor só se acaba
se for para começar.
Te perdes longe de mim,
para poder me encontrar.
Todo fim sabe a começo.
Na fundura do teu peito
dorme a clave do milagre
cujo segredo mereço.
Sozinho mais te proclamos
a pessoa preferida.
Asa de garça, pendão
no vento, estrela da vida.
que te cante a paz no peito.
Não é bênção para mim,
que perto estou já do fim.
te quero tanto, que tanto
dentro de ti me perdi.
Só pra sonhar que erga voo
de pássaro prisioneiro
a luz que lateja em ti.
No entardecer do Andirá,
na madrugada do Ramos,
8 de janeiro 98.
É COMO AMAR
Sou poeta, sou simplesmente
um ser limitado e triste,
sujo de tempo e palavras.
Contudo, capaz de amor.
Que este ofício de escrever,
sem tirar nem pôr, é o mesmo
que o ofício de viver;
quero dizer o de amar.
Entre as águas do Amazonas,
do Sena e do Mapocho, 94 a 97.
DIÁRIO DE UM BRASILEIRO
O brasileiro convive bem com o escândalo moral.
Os ladrões infestam os salões de luxo,
os Bancos estouram, os banqueiros
são cumprimentados com reverência,
o presidente do Congresso chama o senador
de bandido, sim senhor, vossa excelência.
O Presidente diz pela televisão
que “é preciso acabar com a roubalheira
nos dinheiros públicos”.
As pessoas das cidades grandes
vivem amendrontadas, qualquer
transeunte pode ser um assaltante.
As meninas cheiram cola. Depois
vão dar o que têm de mais precioso
ao preço de um soco na cara desdentada.
O brasileiro convive com o escândalo
como se fosse o seu pão de cada dia,
com uma indiferença letal.
Como se dormir na cama com um rinoceronte,
mas rinoceronte mesmo,
fosse a coisa mais natural do mundo,
chegando a cheirar camélias.
§. O povo, um dia.
Do povo vai depender
a vida que vai viver,
quando um dia merecer.
Vai doer, vai aprender.
MELLO, Thiago de. Campo de Milagres. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. p.27-28, p.181
MELLO,
Thiago de. Poemas preferidos pelo autor e seus leitores: edição
comemorativa dos 75 anos do autor. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2001. p. 218-219
ANÍBAL BEÇA
Aníbal
Beça nasceu em Manaus em 1946, e faleceu em agosto de 2009. Fora poeta,
compositor, tradutor, teatrólogo e jornalista. Integrou o Clube da
Madrugada, e pertenceu à Academia Amazonense de Letras. Em 1994 recebeu
o Prêmio Nacional Nestlé, em sua sexta versão, com o livro Suíte para os
Habitantes da Noite. É autor de Convite Frugal, Edições Governo do
Amazonas (1966); Filhos da Várzea, Editora Madrugada (1984); Hora Nua,
Editora Madrugada (1984); Noite Desmedida, Editora Madrugada (1987);
Mínima Fratura, Editora Madrugada (1987); Quem foi ao vento, perdeu o
assento, Edições Muraquitã (teatro, 1988); Marupiara – Antologia de
novos poetas do Amazonas, Edições Governo do Amazonas (organizador,
1989); Suíte para os habitantes da noite, Paz e Terra (1995); Ter/na
Colheita, Sette Letras (1999); Banda da Asa – poemas reunidos, Sette
Letras, (1999); Folhas da Selva, Editora Valer (2006); Chá das quatro,
Editora Valer (2006); Águas de Belém, Editora Muhraida (2006).
POSSO LER SUA MÃO?
Por acaso estou ao acaso
à espreita do ocaso de casos
que fogem ao casulo de cada um
cada caso é um caso:
coletivo casual
&
a esperança
é a primeira que corre
na pista da revelação
de que Deus é brasileiro
de papo amarelo
de olhos azuis
de longa cabeleira verde
&
sua túnica branca
se envergonha
diante
do
sutil
insulto/inconsúltil
Consulte a quiromante
diria o poeta ao acaso
Torne-se amante
da jogadora de búzios
Abra sua alma
à geografia astral
&
do mapa
solte sua tara
engastada no gogó
de enforcado do Gólgota
e encarte-se no tarot
Diria ainda o poeta
aos de alma ecológica
aos de paz celestial
– entre um Saddam & um Clinton –
sirvam-se
de um drink de Santo Daime
alistem-se nas forças armadas
do exército da salvação
da Irmandade da Cruz:
remember Jim Jones
bispo Macedo?
XÔ SATANÁS!
O salário do pecado é a morte!
Disse um pastor aos paaca-novas
enquanto 77 kaiwás & guaranis
– inclusive meninas de 15 anos –
seguiam o exemplo de Judas
pelo nó da culpa
Os pajés aposentaram Jurupari
não espanam mais os males
nem as curas
nem o uso de plantas medicinais
Os chocalhos os trocanos gambás
se calaram
estão vazios os sons de Uakti
nem se sabe mais
o gosto gostoso
do tarubá yagé caxiri
&
a língua pentecostal
(juntamente com os fuzis
da senhora Calha Norte)
é quem defuma
o que era rito
do seu tauari
Quando chegar o natal &
depois o carnaval
a tradição manda
na santa semana
que se coma novamente
o cólera
nos peixes que vêm
do Peru
de páscoa &
choquemos
os ovos de magos coelhos
alquimistas férteis
da terra de Brida de Nosso Senhor
promissora & prometida
aos olhos de espiar a fé
num teto qualquer
nem que seja nos viadutos
da paulicéia da garoa
embaixo das 1a 2a 3a pontes
dos elevados da Manaus moderna
ou
no aterro do Flamengo
tudo sob às vistas
do redentor que lindo!
& os expulsos
dos campos
posseiros sem posses
sem terras
sem tetos
querendo um cantinho & um violão
Que bossa a nossa
Nova?
Nem tanto
Que bosta
a nossa de cada mangue
alagada entre as nossas pernas
Ah chuvas de março!
Mocambos
bodós-na-lama
palafitas
igarapés
nos dai hoje
as fezes de ontem
que engordam
os jaraquis de domingo
&
os caranguejos de cada dia do ano
na comunhã do nosso cotidiano
mínimo
Ó salário minguante
como a lua dos vira-latas
uivando para
a seguridade
magra
social socialites
carajás de caras sujas
na rima dos marajás
do mar de Búzios
Margarita & Aruba
É
Deus é brasileiro
&
cada um
herdará um lote de azul
livre de IPTUs
quando estiver sentado
de cócoras com ele
à sua direita ou à sua esquerda
Por acaso
o poeta está à espera
dessa aliança?
Mesmo em preto & branco
Sem technicolor by de luxe?
A ilusão
fica por conta
dos olhos do mundo:
porque por aqui vai tudo bem
como no ano que vem
por que Deus é brasileiro
gosta de carnaval & e agora anda
amarrado
ao boi-bumbá
(quem não gosta é intelectual e pentecostal)
&
gosta ainda de levar
um céu de vantagens
Certo?
E assim prosseguimos
a reboque do fusquinha
numa paz ecológica
juntamente com os galos-da-serra
os micos-leões
& os jacarés de Nhamundá
Sempre abençoados
pelo santo descamisado
São-Francisco-de-Assis-é-dando-que-se-recebe
Quando o carnaval passar
o traficante estará nas salas de aula
fazendo campanha
pela privatização do ensino
Privado de tod o mundo uni-vos!
Os homens de branco
hipócritas/Hipócrates
penduram troféus
estropiados ex-votos
nos imundos corredores
dos estaleiros de plantão
&
nós comendo casca de ferida
querida
porque tumor
amor
não os seduz
assim como o cancro a AIDS o pus
exsudato de votos
amealhados em consultas
datapreviamente & pagas assepticamente
Lazarentos de
todo o mundo uni-vos!
Sabemos todos
ser um caso de polícia
mas as virgens
os parentes dos chacinados
os sequestrados
os estuprados
&
principalmente os de boa fé
preferem relaxar & gozar
Estuprados de
todo o mundo uni-vos!
Ave mesa
das nossas refeições
onde comemos os ossos do ofício
&
as espinhas
do desemprego e da inflação
Santificada seja a nossa poupança
venha a nós o vosso over
assim como nas DBs
como no Fundão
&
não nos deixai cair
na sarjeta
sem
que tenhamos
as notas verdes
da aposentadoria
de cavalo-do-cão
a
m
é
m
XXXIX
Giga para curta viagem e ir na paixão
Ir na boleia sem teu coração
Não quero não
Ir na viagem verde de olhos verdim
Eu quero sim
Ir de carona sem levar paixão
Eu não quero não
Ir na tua asa feito passarim
Eu quero sim
Ir na clara nuvem sem tesão
Não quero não
Ir na tua boca doce alfenim
Eu quero sim
Ir na esperança sem tua canção
Não quero não
Ir na tua gruta e plantar um jasmim
Eu quero sim
Ir na voz do gozo com meu flautim
Eu quero sim
Ir na tua loucura até o fim
Eu quero sim eu quero sim eu quero sim
PALAVRA-PALAVRA
Mais difícil sentir-te
do que decifrar-te:
Palavra de Honra
(pacto de escorpiões)
Palavra de Amigo
(assovio de sereias)
Palavra de Ordem
(diálogo de surdos)
Palavra de fé
(gosma de lesmas)
PA
LAVRA
lavoura de muito adubo
esterco quarto-minguante
pá de re-mover mica
e re-lavrar o brilho
do
ab-surdo!
BEÇA, Aníbal. Banda da asa: poemas reunidos. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998. p.98, p.267-268, p.353-360
ASTRID CABRAL
Astrid
Cabral nasceu em Manaus em 1936. Integrou o Clube da Madrugada. Recebeu
o Prêmio Olavo Bilac, da Academia Brasileira de Letras (1987) com Lição
de Alice; o Prêmio Nacional de Poesia Helena Kolody (1998)
com Intramuros; o Prêmio Nacional de Poesia da Academia Brasileira de
Letras (2004) com Rasos d`água. É autora de Alameda, 1963; Ponto de
cruz, 1979; Torna-viagem, 1981; Zé Pirulito, 1982; Lição de Alice, 1986;
Visgo da terra, 1986; Rês desgarrada, 1994; De déu em déu, 1998;
Intramuros, 1998; Rasos d`água, 2003; Jaula, 2006; Ante-sala, 2007;
Antologia Pessoal, 2008; 50 Poemas escolhidos pelo autor, 2008; Les
doigts dans l'eau, 2008; Cage, 2008.
A FOGUEIRA
Em dezembro, sonhar com janeiro,
em janeiro pensar: fevereiro
vai ser bem diferente
A semana inteira chocar o sábado,
no sábado, esperar o domingo.
No domingo dizer: no outro, quem sabe?
O tempo todo apoiar-se na bengala
da ilusão, a preferir a cegueira
à visão do abismo.
Cansei-me da farsa.
Fiz uma fogueira, joguei
a esperança dentro dela
e arregalei os olhos.
NAVIO-ESQUIFE
Correm as águas do rio
corre veloz o navio.
Entre as faces do vento
entre as faces do tempo
corremos nós.
Ao abraço de que foz
viajam as águas
viajamos nós?
Árvores nas margens
céleres passam
sob remansos de céu
onde se apaga o sol.
Eis que longe o porto
acende seu colar de luzes:
grinalda para os mortos
que no navio-esquife
ante-somos todos.
CARESTIA
Amor custa bem caro.
Mesmo assim depenamos bolsos
e bolsas de moedas raras.
Por ele pagamos, em prestações
nem sempre suaves, quanto
de entrada supúnhamos
de todo não poder:
o alto preço dos sustos,
a conta escorchante
das noites em claro,
os juros extorsivos
do medo de perdê-lo,
a tristeza do saldo zero.
Queixamo-nos de carestia
se de amor-próprio ainda
nos sobra algum trocado,
mas que fazer quando só
amor é o lucro que buscamos?
CABRAL, Astrid. De déu em déu: poemas reunidos (1979/1994). Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998. p.31, p.37, p.52
ELSON FARIAS
Elson
Farias nasceu em Itacoatiara em 1936. Integrou o Clube da Madrugada.
Pertence à Academia Amazonense de Letras. É autor de Barro
verde, Manaus, União dos Estudantes do Amazonas, 1961; Estações da
várzea, Manaus, Ed. Sérgio Cardoso, 1963; Três episódios do rio, Manaus,
Ed. Sérgio Cardoso, 1965; Ciclo das águas, Manaus, Governo do Estado
do Amazonas, 1966; Dez canções primitivas, Manaus, ed. do autor,
1968; Um romanceiro da criação, São Paulo, Monumento, 1969; Do amor e da
fábula, Rio de Janeiro, Arte nova, 1970; Imagem, Rio de Janeiro,
Conquista/Academia Amazonense de Letras,1976; Roteiro lírico de Manaus
em 1900, Manaus, Governo do Estado do Amazonas,1977; Made in Amazonas,
Manaus, Puxirum,1978; Palavra Natural, Brasília, Clube de Poesia e
Crítica, 1980; Romanceiro, Manaus, Puxirum, 1985; Balada de
Mira-anhanga, Manaus, 1993, A destruição adiada, Manaus, 2002; Memórias
Literárias, Manaus, Valer, 2005; As aventuras do Zezé – Viajando pela
História do Amazonas, Manaus, Valer, 2012.
UMA CANÇÃO DE GESTA
1.
Vida carente de vida,
mundo vivo sem vivente,
úmida noite de chuva
que canta e sabe o que canta
e não repete esse canto
só para fazer de conta,
para dizer que viveu
vivendo o que jamais viu,
que matou onça a cacete,
a nado atravessou rio.
1.1
Vou contar aqui as vidas
do menino que nasceu
às margens do riomundo,
riomundo que o sorveu
folha seca no remanso,
redemoinho do rio.
1.2
Existia pelas águas
mariscando pedra e praias,
vivia dos benefícios
que o rio lhe concedia.
Vivia dos benefícios
da ribanceira de insetos,
da água e da lama que
lhe davam peixes de escama.
Se alimentava de peixes
igual a uma ave de inverno,
se de carne, só de caça,
nas fronteiras desse inferno.
Morreu por dentro dos raios
noite negra, escuridão,
se enrolou no seu lençol
pra não ouvir o trovão,
sofreu de febre e frieira,
provou do ardor da sezão.
1.3
Foi tentado pelas almas
por detrás da vã certeza,
tremeu como treme
verde contra a correnteza.
Viu uma caveira viva
de homem bêbado no rio,
caveira com claros traços
de vida a cobrir-lhe de aura,
caveira toda roída,
roída de fio a fio,
de afogado sem beleza,
marca amarga deste rio.
1.4
Se refez da morte certa,
peixe armado com as galhas,
lutando contra a sua linha,
perdido nos seus anzóis.
Se refez da morte certa
precisando atravessar
o Amazonas de banzeiros
no tempo dos temporais.
1.5
Perseguiu os bichos fêmea
como se busca mulher,
soube da morte de um homem
sandeu de amor por mulher.
1.6
Dizia de cor os nomes
dos motores que passavam,
corria a chamar os outros
se via um de nome novo,
companheiros do alvoroço
que lhe enchia o coração
quando vestia uma roupa
nova, da linha ao botão.
1.7
Ouviu com olhos abertos,
mas, abertos de doer,
as histórias que contavam
da vida para ele ouvir,
histórias sempre mentidas
porque não lidas, ouvidas
e se ouvidas, corrompidas.
Não lidas porque, a não ser
um ou outro de mais sorte,
ninguém se arvorava a ler
e escrever sabiam poucos,
um escrever sem ideias
de garranchos e borrões,
não pela pena ruim
mas pela rude ignorância
sem um dedo de pudor,
com arroubos literários,
veleidades de escritor.
2.
Os seres mortos aterram,
aterra a figura falsa,
flores de pano sem água,
fruta sem ar de quintal.
Vejo em tudo a vida avara
do menino que encontrei,
futuro sem ser futuro,
letra falida de lei,
caibro de casa caída,
solidão das que eu andei.
2.1
Chorar, não mais, porque choro
não convence, e o convencer
a chorar, fere o decoro
de homem feito pra viver.
2.2
Por isso conto esta história
irreal, sem conclusão,
tais aquelas de memória
contadas no barracão.
Me propus contar a vida
das vidas de um só vivente,
relatar vida por vida,
passo a passo, uma por uma,
e me encerro certo, certo
de não ter história alguma.
3.
A não ser que não se saiba
bem certo o que é ser viver,
se converta a ação em ato
de morrer e nunca abrir
os olhos para a paisagem
num grande hausto de aspirar
a aurora nova das coisas
e dos bens da terra no ar;
a não ser que se concebam
as coisas tais elas são
e não se mova uma palha
para a sua transformação.
4.
Transformar como quem abre
na pura estrela do dia
as tapagens da vontade
contra a voz neutra, vazia.
Transformar como quem dobra
a ilusão, com toda fé,
como envira de munguba
na textura do topé.
Transformar como quem rompe
os gritos num só grito,
eficaz tal como o golpe
da gaponga no igapó
ou como a clave distante
do machado a transformar
a mata verde em coivara
disposta para plantar.
A PALAVRA
Rio se integra
com seu mistério
como a cachaça
no corpo do homem.
Abre a janela
da fala e cala
dentro da boca
a flor brotada.
Rebenta o grito,
quebra o silêncio,
aurora o dia
e volta nova.
É corpo do homem
que não se acaba
rio que integra
esta palavra.
ROMANCE DO BANHO
Era morena tostada,
forte, esbelta como um cão,
os cabelos eram claros
de saboroso castanho;
longas tiras escorriam
na costa vincada em curvas
– eram cobras encravadas
no dorso de uma raiz;
o calcanhar era firme,
seu andar arroliçado,
as ilhargas mal roçavam
nas pregas da saia fina.
*
Fendeu-se o cerrado verde
de patativas e anus,
filhos de caba, sol quente,
ventos gerais, água e mel;
ela vinha – balde, cuia,
dentes expostos, carnudos
os lábios, flor de papoula
a cantar e a se despir.
*
Ela vinha, mas menino
balador de patativas,
não sabia descobri-la;
pressentia apenas vagos
sons das patas elegantes
dos poldros do meu instinto,
rachando cones de pedra
no meu raciocínio mole.
*
Ela esfalfou-se nas águas,
misturou-se com os peixes,
camarões a beliscaram,
escamas, pés, gumes virgens;
o relampeio das palmas
como línguas de uma faca;
a sombra escura no fundo,
as coxas alvas e turvas;
peixes, menina de banho,
anáguas brancas ao sol.
FARIAS, Elson. Do amor e das fábulas. Rio de Janeiro: Artenova, 1970. p.43-52
FARIAS, Elson. Romanceiro. Rio de Janeiro: José Olympio, 1990. p.89, p.58-59
VIOLETA BRANCA
Violeta Branca nasceu em Manaus em 1915, e faleceu
no Rio de Janeiro em outubro de 2000. Primeira mulher a ingressar numa
academia de letras no Brasil, a Academia Amazonense de Letras, em 1937.
Integrou também o Clube da Madrugada. É autora de Ritmos de inquieta
alegria (1935); e Reencontro: poemas de ontem e de hoje (1982).
POEMA DAS TUAS MÃOS
As tuas mãos nervosas, quentes, largas,
harpejam nos meus sentidos
a música ideal da emoção.
Para os teus dedos criadores,
sou o piano mágico vibrando
ao influxo de tua ardente inquietação.
Tuas mãos frementes,
arrancam angústias sonorizadas
de meus nervos,
que se retesam como cordas harmoniosas.
Tuas mãos imperiosas,
tuas mãos rebeldes,
cantam silenciosas aleluias de gestos,
quando compõem poemas de volúpia,
gritos incontidos de alegria pagã,
correndo ligeiras,
leves,
torturantes,
no teclado branco de meu corpo...
VOLÚPIA
O beijo que deste no meu pulso
cobriu de angústia
a forma imaterial dos meus sentidos.
Não percebeste o latejar das veias
ao contato de teus lábios,
e nem adivinhaste
que foi o prazer que me fez silenciar...
Teu beijo teve a agudez
de um estilete inutilizando o meu pudor.
Não viste o sangue
que afluiu à minha boca?
Foi a volúpia falando
Na eloquência da cor.
EXTASE
Percorri os caminhos essenciais da alegria e do amor.
Pequei na embriaguez emotiva
dos sons, das cores
dos contatos e dos sabores,
na amarga delícia de fugir de meu próprio espírito,
para viver
a vida unânime dos sentidos.
Percorri os caminhos abertos às emoções humanas
na ânsia total
de desvendar o sortilégio da alma,
a aflição da carne,
o transcendentalismo do pensamento.
Percorri todos os caminhos,
rolei em abismos transfigurados,
pairei em surtos infinitos,
vivi ascensões vertiginosas
e descidas rápidas de estrela cadente,
quando, como uma alvorada luminosa,
que se abre
numa imitação rubra de rosas matinais,
eu percorria
os caminhos essenciais
da beleza e de esplendor,
vibrando, extasiada, na glória suprema de ser
a escrava pagã
da alegria e do amor.
BRANCA, Violeta. Ritmos de inquieta alegria. Manaus: Valer, 2004. p.86, p.113
ROGEL SAMUEL
Rogel
Samuel nasceu em Manaus em 1943. Poeta, escritor, doutor em letras,
professor aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É autor
de Crítica da Escrita, 1979; Manual de Teoria Literária, Editora Vozes,
14 edições; Literatura Básica, Editora Vozes, em 3 volumes, 1985; O que é
Teolit?, Editora Marco Zero, 1986; 120 Poemas, 1991; Novo Manual de
Teoria Literária, Editora Vozes, 6ª. Edição, 2011; O amante das
amazonas, Editora Itatiaia 2a edição, 2005; Fios de luz, aromas vivos,
Fortaleza, Expressão Gráfica Editora, 2012; Teatro Amazonas, Edua,
Manaus, 2012. Sócio Correspondente da Academia Amazonense de Letras.
NÃO TENDO CHEGADO AS FLORES
De primavera, gozo o prazer
de dar-te a prévia rosa
queiramos ou não que desabroche
na mão da tua lâmina terna
e sem dizer o que devemos
ponho os olhos nos limites da estrada.
Quem assim te afague, ó meu amor
que ainda te amo como agora
folha da tua árvore querendo
ver-te como estrela
o mais de sobretodas as senhoras
olham de perto o incerto par.
Sejamos lógicos com estas grinaldas
de primavera que inventei sem peso
me apaixonei sem me aproximar.
PROCURO A FALA ADEQUADA
e o dizer fácil
rara rima
como toque
de carimbo
Talvez não veja a originária poesia
na lucidez vazia
saída da velha lei
Quero o verso, quero o verso
que diga um pouco do mundo
a pular para outros tons
menores, porém profundos
NÃO GOSTO DE COISAS FUGIDIAS
que me escapam antes de as ter
Amo os remansosos laços
que assistem, calmos, nos passos
e voltam ao lar, feito pássaros
fáceis
no ar do espaço aberto entre montanhas
plácidas
E pensamentos lógicos
sem rápidas inquietações
pouso anguloso da estrada
onde nos abrigamos para uma única
noite de eterno
LUIZ BACELLAR
Luiz
Bacellar nasceu em Manaus, a 4 de setembro de 1928, e faleceu em 2012.
Em 1959, recebeu o prêmio Olavo Bilac, conferido pela Prefeitura do
antigo Distrito Federal (Rio de Janeiro), pelo seu livro de estreia
Frauta de Barro. Em 1968, recebeu o Prêmio de Poesia do Estado do
Amazonas, pelo livro Sol de Feira. É autor de Frauta de Barro (1963);
Sol de Feira (1973); Quatro Movimentos (1975); Pétalas do Crisântemo
(1985); Quarteto (1998); Satori (200); Borboletas de fogo (2004);
Quatuor (2005).
VARIAÇÕES SOBRE UM PRÓLOGO
Em menino achei um dia
bem no fundo de um surrão
um frio tubo de argila
e fui feliz desde então;
rude e doce melodia
quando me pus a soprá-lo
jorrou límpida e tranquila
como água por um gargalo.
E mesmo que toda a gente
fique rindo, duvidando
destas estórias que narro,
não me importo: vou contente
toscamente improvisando
na minha frauta de barro.
É o tema recomeçado
na minha vária canção.
II
Jorre a módula toada
com seu churriante humor
que sempre com ar de magia
sai o canto do cantor.
Canto como u’a menina
colhendo amoras no mato
(com medo de estar sozinha)
num tom faceto e gaiato.
Se vires, leitor, o que há de
agreste no que aqui trouxe
com estas canções que colhi,
sentirás minha saudade
provando o gosto agridoce
das amoras que escolhi...
É o tema recomeçado
na minha vária canção.
III
Nos longes da infância paro;
Há uma inscrição sobre o muro:
Frauta clara, arroio escuro,
frauta escura, arroio claro.
E esse cavalo capenga?
E esse espelho espedaçado?
E a cabra? E o velho soldado?
E essa casa solarenga?
Tudo volta do monturo
da memória em rebuliço.
Mas tudo volta tão puro!...
E, mais puro que tudo isso,
essa anárquica inscrição
feita no muro a carvão.
São temas recomeçados
na minha vária canção.
CANTIGA DO AMANHECER
O ovo do sol
canta nas landes
uma cantiga de gemas
com as claras nuvens
batidas de ventos.
Ovo da nhambu
a casca azul do céu
se abre em passarinhos
que já chilreiam
no choco desse ovo louro.
Pelo pasto verde claro
vai aquele touro novo
em seu cortejo
de borboletas
retouçando o dia
que recomeçou quando o voo
do ovo se derramou.
Amanhecia.
QUARTETO (excerto)
Eis que, da Primavera, o olente passo
já se ouve sobre o manto que a campina
despe; o olmo elegante a fronde inclina
à brisa recebendo em verde abraço.
Se entrechoca na fonte o cristal baço
do gelo liquescente; a peregrina
canção da cotovia matutina
se dilui pelo ar de eflúvios lasso.
Antes que Flora o matizado cetro
deponha e se emudeça o brando pletro
que entoa à páfia déa hinos e preces,
nua orgia de cores – infinitas! –
tudo em torno de amor vibra e palpita,
só tu, meu coração, não reverdeces...
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