quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Meu Natal

Meu Natal
 
ROGEL SAMUEL
 
Não fui feliz na infância. Menino triste, doentio, solitário. Tive até poliomielite. Sou e estou muito melhor agora, na velhice. Nunca conheci a felicidade do que minha amiga X designa de “aconchego familiar”. Ela me atribuiu isso. Engano dela. Comecei a ser feliz quando, aos 18 anos, vim sozinho para o Rio de Janeiro.
Mas gosto muito de Natal.
Atualmente não tenho nenhuma família viva. Moro só.
Mas me lembro dos natais da década de 40, em Manaus.
Meu pai era, naquela época, o que se poderia dizer um homem rico. Comerciante, dono da “Radiomotor”, uma espécie de loja de departamentos da época, no centro da cidade. Minha mãe foi a primeira mulher a dirigir um automóvel, ali. Quando ela passava, as crianças gritavam: “Olha uma mulher dirigindo!”
Por isso, eu tinha literalmente um quarto cheio de brinquedos americanos. Não era ali que eu dormia, meu quarto de dormir era na parte da frente da enorme escura e triste casa.
Aquele cômodo era o “quarto dos brinquedos”, e não era pequeno. De um lado, a porta de entrada, do outro uma grande janela que dava para o pátio lateral, onde meu pai tinha uma preciosa coleção de orquídeas.
A porta abria para um corredor que vinha da sala até a cozinha e, interessante, eu nem me lembro bem da cozinha para trás, pois que eu era proibido de entrar na cozinha. Nem sei se tinha quarto de empregados (havia muitos), lavanderia etc. A casa ainda deve existir lá, na Rua 24 de Maio, em Manaus.
Sei que na sala meu pai tinha um piano e uma vitrola RCA gigantesca, um móvel grande como uma cômoda, e talvez a maior coleção de discos 48 rotações de músicas clássicas da cidade. Ele era um músico muito bom, tocava piano e violino. Grande intelectual, falava fluentemente sete idiomas, inclusive alemão, sua verdadeira língua materna, onde foi alfabetizado, e usava um alfabeto gótico. Ele era francês, nascido em 1911 em Remate de Males, no Amazonas, filho de um judeu rico comerciante de borracha, meu avô Maurice, e levado do Rio Juruá para Estrasburgo com meses de idade. Coisas daquela época maluca do ciclo da borracha no Amazonas.
Depois, meu pai faliu e ficamos tão pobres que a família toda foi morar numa casinha de vila com minha avó Edília. Meu pai foi morar na lancha.
Mas... e o Natal?
Sim, sim.
Na época da Radiomotor meu papai noel era riquíssimo. Não só de brinquedos caros (tive todos da época, inclusive em vitrolinha de corda).
Mas ganhava muito produto cultural, como livros.
Já cresci numa biblioteca.
Meu pai me deixava mexer nos livros dele, que tinha até uma Bíblia em hebraico (que meu pai sabia ler). E obras completas de Shakespeare, Goethe etc. Ele gostava de recitar Goethe em alemão.
Certa vez ganhei a coleção completa em capa dura das obras de Monteiro Lobato.
Alguém me presenteou de livros no Natal que tenho até hoje! Inclusive aquela obra-prima que são “As primaveras” de Casimiro de Abreu, que releio ainda agora.
Eu tinha tudo para não ser tão ignorante, hoje!
Mas pelo menos tive grandes natais, naquela época.

2 comentários:

Alma Acreana disse...

Muito bom o texto dessas suas reminiscências infantis, me faz viajar também.

Também acompanho esta página diariamente.

Fraterno abraço!

ROGEL DE SOUZA SAMUEL disse...

obrigado