Meu Natal
ROGEL SAMUEL
Não fui feliz na infância. Menino triste, doentio,
solitário. Tive até poliomielite. Sou e estou muito melhor agora, na
velhice. Nunca conheci a felicidade do que minha amiga X designa de
“aconchego familiar”. Ela me atribuiu isso. Engano dela. Comecei a ser
feliz quando, aos 18 anos, vim sozinho para o Rio de Janeiro.
Mas gosto muito de Natal.
Atualmente não tenho nenhuma família viva. Moro só.
Mas me lembro dos natais da década de 40, em Manaus.
Meu pai era, naquela época, o que se poderia dizer um
homem rico. Comerciante, dono da “Radiomotor”, uma espécie de loja de
departamentos da época, no centro da cidade. Minha mãe foi a primeira
mulher a dirigir um automóvel, ali. Quando ela passava, as crianças
gritavam: “Olha uma mulher dirigindo!”
Por isso, eu tinha literalmente um quarto cheio de
brinquedos americanos. Não era ali que eu dormia, meu quarto de dormir
era na parte da frente da enorme escura e triste casa.
Aquele cômodo era o “quarto dos brinquedos”, e não era
pequeno. De um lado, a porta de entrada, do outro uma grande janela que
dava para o pátio lateral, onde meu pai tinha uma preciosa coleção de
orquídeas.
A porta abria para um corredor que vinha da sala até a
cozinha e, interessante, eu nem me lembro bem da cozinha para trás,
pois que eu era proibido de entrar na cozinha. Nem sei se tinha quarto
de empregados (havia muitos), lavanderia etc. A casa ainda deve existir
lá, na Rua 24 de Maio, em Manaus.
Sei que na sala meu pai tinha um piano e uma vitrola
RCA gigantesca, um móvel grande como uma cômoda, e talvez a maior
coleção de discos 48 rotações de músicas clássicas da cidade. Ele era um
músico muito bom, tocava piano e violino. Grande intelectual, falava
fluentemente sete idiomas, inclusive alemão, sua verdadeira língua
materna, onde foi alfabetizado, e usava um alfabeto gótico. Ele era
francês, nascido em 1911 em Remate de Males, no Amazonas, filho de um
judeu rico comerciante de borracha, meu avô Maurice, e levado do Rio
Juruá para Estrasburgo com meses de idade. Coisas daquela época maluca
do ciclo da borracha no Amazonas.
Depois, meu pai faliu e ficamos tão pobres que a
família toda foi morar numa casinha de vila com minha avó Edília. Meu
pai foi morar na lancha.
Mas... e o Natal?
Sim, sim.
Na época da Radiomotor meu papai noel era riquíssimo.
Não só de brinquedos caros (tive todos da época, inclusive em vitrolinha
de corda).
Mas ganhava muito produto cultural, como livros.
Já cresci numa biblioteca.
Meu pai me deixava mexer nos livros dele, que tinha
até uma Bíblia em hebraico (que meu pai sabia ler). E obras completas de
Shakespeare, Goethe etc. Ele gostava de recitar Goethe em alemão.
Certa vez ganhei a coleção completa em capa dura das obras de Monteiro Lobato.
Alguém me presenteou de livros no Natal que tenho até
hoje! Inclusive aquela obra-prima que são “As primaveras” de Casimiro de
Abreu, que releio ainda agora.
Eu tinha tudo para não ser tão ignorante, hoje!
Mas pelo menos tive grandes natais, naquela época.
2 comentários:
Muito bom o texto dessas suas reminiscências infantis, me faz viajar também.
Também acompanho esta página diariamente.
Fraterno abraço!
obrigado
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