Reportando-me
à tese de Anaxágoras de Clazomene, de que “o homem pensa porque tem mãos”[i],
revisitada por José Américo da Motta Pessanha, no Prefácio ao livro O
Direito de Sonhar, de autoria do filósofo francês Gaston Bachelard, repenso
esta assertiva de Anaxágoras, permitindo-me transferi-la ao aludido narrador
tradicional, anterior à Era Moderna. Por este prisma, procuro reavaliar aquele
narrador horizontal, que se esforçou por pensar a realidade (recopilando-a
literariamente) resguardado por mãos trabalhadoras, ligadas ao prazeroso
exercício de “bem narrar” (bem escrever), mas, ainda, preso a uma “perspectiva
anulada”[ii],
uma perspectiva exteriorizada, superficial, fenomênica. Assim, o pensar em
profundidade ficou interditado, porque as “mãos trabalhadoras” dos narradores
antigos e medievais, e dos novelistas eram mais poderosas e só alcançavam
pensar as aparências (não me refiro aos romancistas das seguintes estéticas
literárias da Era Moderna). Será importante recuperar o fato de que as novelas
em prosa (sintagmáticas, sempre conceituais), diferentes dos romances
paradigmáticos da Era Moderna, em seu caminhar histórico até ao momento, não
lograram transformar-se em ficção-arte, continuaram lineares, e, aos poucos,
perderam aquela graça própria dos narradores iniciais, das novelas ou romances
de cavalaria em versos, atualmente, já reconhecidos como narradores épico-medievais.
Entretanto, o
narrador moderno descobriu que pensava porque tinha “olhos” e mão poderosa (e,
aqui, repito, refiro-me aos criadores excepcionais de um tipo de ficção que
começou com Miguel de Cervantes, no início do século XVII), aquele narrador da
Era Moderna que instaurou, nos meios intelectuais de então, um gênero literário
estreante atualmente conhecido por “narrativa em prosa” ou “narrativa
ficcional”, para diferenciá-lo da epopéia (Gênero Épico) e das novelas
medievais de cavalaria (lineares), escritas primitivamente em versos
(posteriormente,
adaptadas em prosa, para o gosto dos nascentes burgueses).
O narrador
moderno, cujos olhos o obrigavam a ver o momento incógnito de uma
novíssima Era desconcertada, amedrontadora,
intuiu que, por intermédio de uma perspectiva dialetizada, o seu ato de
narrar alcançaria camadas desconhecidas daquela realidade que lhe estava
próxima, escoltado por seu singularíssimo grau de conhecimento do mundo e por
sua capacidade de registrar, ao longo de sua narrativa, palavras
plurissignificativas, que levassem o leitor a pesquisar os seus vários
significados, e, com isto, obrigando-o a interagir com a camada oculta do texto
ficcional. O criador desse iniciante ardil ficcional foi Miguel de Cervantes,
quando criou a expressão “moinhos de vento”, expressão que remete aos diversos
obstáculos enfrentados por seu personagem principal, o Quixote (um herói
decaído, impossibilitado de representar os antigos heróis do passado medieval),
acompanhado de seu fiel escudeiro Sancho Pança (o personagem-representante
legal, racional, da Era que se iniciava). Como bem se pode avaliar, a origem da
plurissignificação literária é ficcional; a forma poética lírica a adotou,
posteriormente, (A poesia lírica, inclusive a renascentista, anterior ao século
XVII, não é plurissignificativa; possui os fenômenos estilísticos do gênero
lírico, mas não se vale da plurissignificação, um fenômeno literário da Era
Moderna, a partir da estética barroca).
O ciclo de
narradores ficcionais modernos, iniciado a começar de Cervantes, termina aqui
no Brasil no final do século XIX e anos iniciais do XX, com as narrativas
realista-impressionistas, de Machado de Assis a Lima Barreto. Assim, as
narrativas ficcionais do século XX, de escritores brasileiros do pós-22, em
conformidade com as expressões literárias dos escritores de outros países
ocidentais (James Joyce, Kafka e outros), já poderiam ser inseridas, em se
tratando de Era, naquela a que denominamos de Pós-Moderna. Segundo os
especialistas, há ainda muita dificuldade para um julgamento eficiente sobre o
início desta atual Era, pois ela está muito próxima, historicamente, de nossa
realidade existencial. Entretanto, penso que o século XX (desde a sua
alvorada), presentemente, já poderá ser recebido como o princípio de algo bem
diferente da Era anterior. Teria de gastar um tempo distendido para provar tal
tese. Por enquanto, não é esta a intenção que me orienta. Mas, de qualquer
forma, para o desenvolvimento de minhas reflexões sobre o romance de Rogel
Samuel, catalogarei os anos iniciais do século XX como o início desta nova Era,
chamada (depois de diversas negações e reprovações) de Pós-Moderna.
[i] ANAXÁGORAS DE CLAZOMENE. In: BACHELARD, Gaston. O Direito de Sonhar. 3. ed. Tradução: José Américo Motta Pessanha,
Jacqueline Raas, Maria Lúcia de Carvalho Monteiro, Maria Isabel Raposo. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 1991: XIV.
Nenhum comentário:
Postar um comentário