terça-feira, 29 de março de 2011

CRONICA DE MACHADO DE ASSIS


Vês este tapume? Digo-vos que não fi­cará tábua sobre tábua. E assim se cum­priu esta palavra do Dr. Barata Ribeiro, que imitou a Jesus Cristo, em relação ao templo de Jerusalém. Olhai, porém, a diferença e a vulgaridade do nosso século. A palavra de Jesus era profética: os tempos tinham de cumpri-la. A do presidente da intendência, que era um simples despacho, não precisou mais que de alguns trabalha­dores de boa vontade, um advogado e vin­te e quatro horas de espera. Ao cabo do prazo, reapareceu o nosso chafariz da Cario­ca, o velho monumento que tem o mesmo no­me que nós outros, filhos da cidade, o nosso xará, com as suas bicas sujas e quebradas, é certo, mas eu confio que o Dr. Barata Ri­beiro, assim como destruiu o tapume, assim reformará o bicume. E poderá ser preso, açoitado, crucificado; ressurgirá no tercei­ro minuto, e ficará à direita de Gomes Freire de Andrade.

Já que se foi o tapume, não calarei uma anedota, que ao mesmo tempo não posso contar. Valham-me Gulliver e o seu inven­to para apagar o incêndio do palácio do rei de Lilliput. Recordam-se, não? Pois sai­bam que uma noite lavrava um princípio de incêndio no tapume, — algum fósforo lançado por descuido ou perversidade. Um Gulliver casual, que ia passando, correu a apagá-lo. Pobre grande homem! Esbarrou com um soldado de sentinela, ao lado da Imprensa Nacional, que não consentiu na obra de caridade daquele corpo de bom­beiro. Perseguido pela visão do incêndio (há desses fenômenos), o nosso Gulliver viu fogo onde o não havia, isto é, no próprio edifício da Imprensa Nacional, lado opos­to, e correu a apagá-lo. Não achou sombra de sentinela! Disseram-lhe mais tarde que a sentinela do tapume era a mesma que o governador Gomes Freire mandara pôr ao chafariz, em 1735, e que a Metropolitana, por descuido, não fez recolher. Vitalidade das instituições!
Mas esse finado tapume faz lembrar um tempo alegre e agitado, tão alegre e agi­tado quão triste e quieto é o tempo presente. Então é que era bailar e cantar. Dançavam-se as modas de todas as nações; não era só o fadinho brasileiro, nem a quadrilha fran­cesa; tínhamos o fandango espanhol, a ta­rantela napolitana, a valsa alemã, a habanera, a polca, a mazurca, não contando a dança macabra, que é a síntese de todas elas. Cessou tudo por um efeito mágico.
Os músicos foram-se embora, e os pares vol­taram para casa.
Só o acionista ficou, — o acionista moderno, entenda-se, o que não, paga as a­ções. Tinham-lhe dito: — aqui tem um pa­pel que vale duzentos, o senhor dá apenas vinte, e não falemos mais nisso.
— Como não falemos?
— Quero dizer, falemos semestralmente; de seis em seis meses, o senhor re­cebe dez ou doze por cento, talvez quinze.
— Do que dei?
— Do que deu e do que não deu.
— Que não dei, mas que hei de dar?
— Que nunca há de dar.
— Mas, senhor, isso é quase um debên­ture.
— Por ora, não; mas lá chegaremos.
Desta noção recente tivemos, há dias, um exemplo claro e brilhante. Uma assembléia, tomando contas do ano, deu com três mil contos de despesas de incorporação. Na­da mais justo. Entretanto, um acionista propôs que se reduzissem aquelas despesas; outro, percebendo que a medida não era simpática, lembrou que ficasse a direto­ria autorizada a entender-se com os incorporadores para dar um corte na soma. A assembléia levantou-se como um só homem. Que reduzir? que entender-se? E, por cerca de cinco mil votos contra dez ou onze, aprovou os três mil contos de réis. A razão adivinha-se. A assembléia compreendeu que a incorporação, como a ação, devia ter sido paga pelo décimo, e conseguintemente que os incorporadores teriam recebido, no máximo, trezentos contos. Pedir-lhes re­dução da redução seria econômico, mas não era razoável, e instituiria uma justiça de dois pesos e duas medidas. Votou os três mil contos, votaria trinta mil, votaria trinta milhões.
Hão de ter notado a facilidade com que meneio algarismos, posto não seja este o meu ofício; mas desde que Camões & C. puseram uma agência de loterias no beco das Cancelas, creio que, ainda sem ser Camões, posso muito bem brincar com cifras e números. Na explicação do Sr. Dr. Ferro Cardoso, por exemplo, acerca da não eleição, o que mais me interessou, foram os oito mil eleitores que deixaram de votar no candidato, já porque eram milhares, já por- que o argumento era irrespondível. Com efeito, ninguém obriga um homem a aceitar a cédula de outro; se a aceita e não vota, é porque cede a uma força superior.
Tudo é algarismo debaixo do sol. A própria circular do bispo aos vigários, acerca dos padres e sacristãos associados para vender caro as missas, reduz-se, como vêem, a somas de dinheiro. Grande rumor nas sacristias. Grande rumor na imprensa anônima. Pelo que me toca, não sendo padre nem sacristão, cito este acontecimento da semana, não só por causa dos algarismos, mas ainda por notar que o bispo adotou neste caso o lema positivista; Viver às claras. Em vez de circular reservada, fê-la pública. Mas como, por outro lado, já alguém disse que o positivismo era “um catolicismo sem cristianismo”, a questão pode explicar-se por uma simpatia de ori­gem, e os padres que se queixem ao bispo dos bispos.
Onde não creio que haja muitos milha­res de contos é na República Transatlântica de Mato Grosso. O dinheiro é o nervo da guerra, diz um velho amigo; mas um fi­no e grande político desmente o axioma, afirmando que o nervo da guerra está nas boas tropas. Haverá este nervo em Mato Grosso? Quanto a mim, creio que a jovem república não é mesmo república. Aquele nome de Transatlântica dá idéia de um gra­cejo ou de um enigma. É talvez o que fi­que de toda a campanha. Também pode ser que a palavra, como outras, tenha sentido particular naquele Estado, e traga uma significação nova e profunda. Às vezes, de onde não se espera, daí é que vem. Há dias, dei com um verbo novo na tabuleta de uma casa da Cidade Nova: “Opacam-se vidros”. Digam-me em que dicionário viram pala­vra tão apropriada ao caso.

A semana - Obra Completa de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, Vol. III, 1994. Publicado originalmente na Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, de 24/04/1892 a 11/11/1900.


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