segunda-feira, 28 de março de 2011

CRONICA DE MACHADO DE ASSIS


30 de abril



Uma folha diária, recordando que as quermesses tinham sido fechadas por serem verdadeiras casas de tavolagens, noticiou que elas começam a reaparecer. Já há uma na Rua do Teatro; o pretexto é uma festa de caridade. E a folha chama a atenção da polícia.



A notícia — dizemo-lo sem ofensa — é mui própria de um século utilitário e prático. Não se poderia achar exemplo mais vivo do espírito da nossa idade, que põe a alma das coisas de lado para só admirar a face das coisas. Invertemos a caridade; ela não é, para nós, o móvel da ação, o sentimento da esmola e do benefício; é o resul­tado da coleta. Dou cinco mil réis para comprar uns sapatos de criança (se há ain­da sapatos de cinco mil réis); o mundo, se os sapatos não são comprados, grita contra a especulação. Queremos a caridade escriturada, legalizada, regulamentada, com relatório anual, contas, receita e despesa, saldo. Onde está aqui o espírito cristão?



A quermesse é tavolagem. Que tenho eu com isso, se me convida a fazer bem? Não se trata (reflita o colega), não se trata de beneficiar a um estranho, mas a minha al­ma. Vá o dinheiro para um faminto, para a escola, ou simplesmente para as algibei­ras do empresário, nada tem com isso a mi­nha salvação. A caridade não é um efeito, é uma causa. As quermesses são ocasiões in­ventadas para a prática do evangelho. O fim dessas instituições é exercitar a virtu­de, e tanto melhor se o dinheiro recolhido alimentar um vício. É o preceito de Horácio e do gasômetro: Ex fumo dare lucem.



Um exemplo. Há em certa rua, por onde passo todos os dias, um homem senta­do na soleira de uma porta, chapéu na mão, a pedir uma esmolinha. Esse homem, que deve andar por cinqüenta e tantos anos, padece de um pé sujo, — creio que o es­querdo. Quando lhe descobri essa única moléstia, travou-se em minha consciência um terrível conflito. Darei o meu vintém ao homem ou não? Fui ao meu grande S. Paulo, ao meu Santo Agostinho, fui princi­palmente aos casuístas mais célebres, e achei em todos que não se tratava do pé de um homem, mas da alma de outro. A rigor, pode-se dar até a um pé lavado. Daí em diante, dou ao homem o meu vintém certo. E não se diga que é porque fui estudar a solução do problema nos livros moralistas. Tenho visto pobres mulheres que passam com o vestidinho desbotado, a sua cor doen­tia, pararem adiante, e, às escondidas, tirarem do bolso o vintenzinho ganho à força de agulha ou de goma, e irem depositá-lo no chapéu do homem. Este, em bemol: “Os anjos a acompanhem, minha santa senhora!”



A quermesse pode ter os pés sujos. Não me cabe verificar se os vai lavar; cabe-me, sim, dar o dinheiro (e, quanto mais, me­lhor), para cumprir o preceito de Jesus: “Não queirais entesourar para vós tesouros na terra, onde a ferrugem e a traça os consome; mas entesourai para vós te­souros no céu, onde não os consome a fer­rugem nem a traça”.



A terra fez-se para entesourar algu­mas coisas, mas só as que não entendem com a nossa consciência moral, os atos que não vêm do coração, mas da cabeça. Que rico tesouro da terra nos deu a comissão de instrução pública do conselho munici­pal! No meio dos debates daquela casa, — tantas vezes acres e apaixonados, — é doce e consolador elevar o espírito a sentenças como esta: “Foi esta lei (a instrução) que organizou as sociedades primitivas, que re­geu seus principais destinos, que domina as condições de existência dos primeiros povos e que os obrigou a esse longo pere­grinar dos séculos”. E, depois de comparar a instrução a um elo que liga o passado ao presente e o presente ao futuro, escreve es­ta ousada e forte imagem, seguida de outra não menos ousada nem menos forte: “A hu­manidade, porém, é como a hiena faminta e insaciável. É como o Ahasverus da lenda que não pode parar, — tem de caminhar e caminhar sempre!” Não se pode pintar melhor a necessidade crescente da instrução da espécie humana.



Ao mesmo tempo, lembra-me os dias da mocidade. Ó Ahasverus! Também eu te vi caminhar, caminhar, caminhar sempre, naquela madrugada dos meus anos, tão linda, e tão remota! De noite, quando a insônia me arregalava os olhos com os seus dedos magros, — ou de manhã, quando eles se abriam ao sol, via o eterno andador, andando, andando... Lá me saiu um ver­so; há de ser algum que não me chegou a sair da cabeça.



Via o eterno andador, andando, andan­do. Justamente, um verso. Aí está o que é ter metrificado lendas em criança; não se pode falar delas sem vir à métrica de per­meio. Ó infância, ó versos! E as associa­ções? Havia algumas nesse tempo em que se discutiam e votavam teses históricas e filosóficas. Qual foi maior: César ou Napoleão? Esta era a mais comum dos debates; e se alguma coisa pode consolar esses dois grandes homens da morte que os tomou, é a certeza de que têm cá em cima da terra verdadeiros amigos e certo equilíbrio de sufrágios.



Também agora há teses, mas são ou­tras. Esta semana o Instituto dos Advoga­dos debateu um ponto interessante, a saber, se, em face da Constituição e das leis, os títulos nobiliários dados por governos es­trangeiros fazem perder a qualidade de ci­dadão. A maioria adotou a afirmativa: 16 votos contra 8. Mas, examinando a tese, o Instituto esqueceu uma hipótese. O Sr. Geminiano Maia, do Estado do Ceará, recebeu de um governo estrangeiro o título de barão de Camocim. Pergunto; esta hipótese entra acaso na tese do Instituto? O título pelo doador, é estrangeiro, mas é nacional pela localidade. Camocim é no território do Brasil. Para mim, que não tenho preparos jurídicos, este título não ti­ra a qualidade de cidadão ao Sr. Maia: an­tes o faz mais brasileiro, se é possível. Maia é um nome comum. Camocim é um nome nacional. Examine o Instituto essa hipótese.
A semana




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Texto-fonte:

Obra Completa de Machado de Assis.

Rio de Janeiro: Nova Aguilar, Vol. III, 1994.



Publicado originalmente na Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, de 24/04/1892 a 11/11/1900.




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