quinta-feira, 31 de março de 2011

CRONICA DE MACHADO DE ASSIS









A semana - Obra Completa de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, Vol. III, 1994. Publicado originalmente na Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, de 24/04/1892 a 11/11/1900.

Mato Grosso foi o assunto principal da semana. Nunca ele esteve menos Mato, nem mais Grosso. Tudo se esperava daquelas paragens, exceto uma república, se são exatas as notícias que o afirmam, porque há outras que o negam; mas neste caso a minha regra é crer, principalmente se há telegrama. Ninguém imagina a fé que te­nho em telegramas. Demais, folhas européias de 13 a 14 do mês passado, falam da nova república transatlântica como de coisa feita e acabada. Algumas descrevem a bandeira.

Duas dessas folhas (por sinal que lon­drinas) chegam a aconselhar ao governo da União que abandone Mato Grosso, por lhe dar muito trabalho e ficar longe, sem real proveito. Se eu fosse governo, aceitava o conselho, e pregava uma boa peça à nova república, abandonando-a, não à sua sorte, como dizem as duas folhas, mas à Inglater­ra. A Inglaterra também perdia no negócio, porque o novo território ficava-lhe mui­to mais longe; mas, sendo sua obrigação não deixar terra sem amanho, tinha de suar o topete só em extrair minerais, desbastar, colonizar, pregar, fazer em suma de Mato Grosso um mato fino.

Eu, rigorosamente, não tenho nada com isto. Não perco uma unha do pé nem da mão, se perdermos Mato Grosso. E não é melhor que me fique antes a unha que Mato Grosso? Em que é que Mato Grosso é meu? Não nego que a idéia da pátria deve ser acatada. Mas a nova república não bra­dou: abaixo a pátria! como um rapaz que fez a mesma coisa em França, há três meses, e foi condenado à prisão por um tri­bunal. Mato Grosso disse apenas: Anch'io son pittore, e pegou dos pincéis. Não des­truiu a oficina ao pé, organizou a sua. Uma vez que pague, além das décimas, as tintas, pode pintar a seu gosto, e tanto melhor se fizer obras-primas.

Pátria brasileira (esta comparação é melhor) é como se disséssemos manteiga nacional, a qual pode ser excelente, sem impedir que outros façam a sua. Se a nova fabrica já está montada (estilo dos estatu­tos de companhias e dos anúncios de teatros), faça a sua manteiga, segundo lhe parecer, e, para falar pela língua argentina, vizinha dela e nossa: con su pan se la coma.

Vede bem que a nova república é una e indivisível. Aqui há dente de coelho; pa­rece que o fim é tolher a soberania a Co­rumbá, a Cuiabá, que poderiam fazer as suas constituições particulares, como os di­versos Estados da União fizeram as suas. Eu só havia notado, em relação a estes, a diferença dos títulos dos chefes, que uns são governadores, como nos Estados Uni­dos da América, outros presidentes, como o presidente da República. A princípio supus que a fatalidade do nosso nascimento (que é de chefe para cima) obrigava a não chamar governador um homem que tem de reger uma parte soberana da União; mas, consultando sobre isso uma pessoa grave do interior, ouvi que a razão era outra e histórica, isto é, que a preferência de presidente a governador provinha de ser este título odioso aos povos, por causa dos antigos go­vernadores coloniais. Não só compreendi a explicação, mas ainda lhe grudei outra, observando que, por motivo muito mais an­tigo, foi acertado não adotar o título de juiz, como usaram algum tempo em Israel (fedor judaico) — justamente!

Entretanto, outra pessoa, sujeita ao terror político, tem escrito esta semana que alguns Estados, em suas constituições e legislações, foram além do que lhes cabia; que um deles admitia a anterioridade do casamento civil, outro já lançou impostos gerais, etc. Assim será; mas obra feita não é obra por fazer. Se o exemplo de Mato Grosso tem de pegar, melhor é que cada pin­tor tenha já as suas telas prontas, tintas moídas e pincéis lavados: é só pintar, expor e vender. A União, que não tem terri­tório, não precisa de soberania; basta ser um simples nome de família, um apelido, meia alcunha.

Depois de Mato Grosso, o negócio em que mais se falou esta semana (não con­tando a reunião do Congresso), foi o pro­cesso da Geral. Os diretores presos tive­ram habeas-corpus. Apareceu um relatório contra os mesmos, e contra outros, mas apareceu também a contestação, depoimen­tos e desmentidos, além de vários artigos, os quais papéis todos, juntos com o que se tem escrito desde começo, cortados em ti­ras de um centímetro de largura, e unidos tira a tira, dão uma fita que, só por falta de cinco léguas, não cinge a terra toda; mas, como não é negócio que se acabe com soltu­ras nem relatórios, calculam os matemáti­cos do Clube de Engenharia que as cinco léguas que faltam, estarão preenchidas até quinta-feira próxima, e antes de outubro pode muito bem

Dar outra volta completa

Ao nosso belo planeta.

Tudo isso para se não saber nada! Eu, pelo menos, de tudo o que tenho lido a res­peito desta Geral, só uma coisa me ficou clara (aqui os credores arregalam os olhos) e foi a legalização, e portanto a legitimação da palavra zangão, com o seu plural zangões. Aquele nome fora adotado antigamente com a prosódia verdadeira, — a que tinha, que era zângão, e conseguintemente fazia no plural zângãos. Mas o povo achou mais fácil ir carregando para diante, e pôr o acento na segunda sílaba, fazendo zangão e zangões. Nunca os tinha visto escritos; achei-os agora judicialmente, e não me irri­to com isso. O Sr. Dr. Castro Lopes, que há pouco tratou de bençam, querendo que se diga benção, e bênções, é que há de explicar por que razão o povo em um caso escorrega para diante e em outro para traz. Eu creio que tudo provém da situação da casca de banana, que, se está mais próxima do bico do sapato, faz cair de ventas, se mais perto do tacão, faz cair de costas. Zangão, bençam. Creiam, meus amigos, é a única idéia que há de ficar dos autos.



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