quarta-feira, 23 de março de 2011
ÚLTIMA JORNADA
ÚLTIMA JORNADA
MACHADO DE ASSIS
I
E ela se foi nesse clarão primeiro,
Aquela esposa mísera e ditosa;
E ele se foi o pérfido guerreiro.
Ela serena ia subindo e airosa,
Ele à força de incógnitos pesares
Dobra a cerviz rebelde e lutuosa.
Iam assim, iam cortando os ares,
Deixando embaixo as fértiles campinas,
E as florestas, e os rios e os palmares.
Oh! cândidas lembranças infantinas!
Oh! vida alegre da primeira taba;
Que aurora vos tomou, aves divinas?
Como um tronco do mato que desaba,
Tudo caiu; lei bárbara e funesta:
O mesmo instante cria e o mesmo acaba.
De esperanças tamanhas o que resta?
Uma história, uma lágrima chorada
Sobre as últimas ramas da floresta.
A flor do ipê a viu brotar magoada,
E talvez a guardou no seio amigo,
Como lembrança da estação passada.
Agora os dois, deixando o bosque antigo,
E as campinas, e os rios e os palmares,
Para subir ao derradeiro abrigo,
Iam cortando lentamente os ares.
II
E ele clamava à moça que ascendia;
“— Oh! tu que a doce luz eterna levas,
E vais viver na região do dia,
Vê como rasgam bárbaras e sevas
As tristezas mortais ao que se afunda
Quase na fria região das trevas!
Olha esse sol que a criação inunda!
Oh quanta luz, oh! quanta doce vida
Deixar-me vai na escuridão profunda!
Tu ao menos perdoa-me, querida!
Suave esposa, que eu ganhei roubando,
Perdida agora para mim, perdida!
Ao maldito na morte, ao miserando,
Que mais lhe resta em sua noite impura?
Sequer alívio ao coração nefando.
Nos olhos trago a tua morte escura.
Foi meu ódio cruel que há decepado,
Ainda em flor, a tua formosura.
Mensageiro de paz, era enviado
Um dia à taba de teus pais, um dia
Que melhor fora se não fora nado.
Ali te vi; ali, entre a alegria
De teus fortes guerreiros e donzelas,
Teu doce rosto para mim sorria.
A mais bela eras tu entre as mais belas,
Como no céu a criadora lua
Vence na luz as vívidas estrelas.
Gentil nasceste por desgraça tua;
Eu covarde nasci; tu me seguiste;
E ardeu a guerra desabrida e crua.
Um dia o rosto carregado e triste
À taba de teus pais volveste, o rosto
Com que alegre e feliz dali fugiste.
Tinha expirado o passageiro gosto,
Ou o sangue dos teus, correndo a fio,
Em teu seio outro afeto havia posto.
Mas, ou fosse remorso, ou já fastio,
Ias-te agora leve e descuidada,
Como folha que o vento entrega ao rio.
Oh! corça minha fugitiva e amada!
Anhangá te guiou por mau caminho,
E a morte pôs na minha mão fechada.
Feriu-me da vingança agudo espinho;
E fiz-te padecer tão cruas penas,
Que inda me dói o coração mesquinho.
Ao contemplar aquelas tristes cenas
As aves, de piedosas e sentidas,
Chorando foram sacudindo as penas.
Não viu o cedro ali correr perdidas
Lágrimas de materno amado seio;
Viu somente morrer a flor das vidas.
O que mais houve da floresta em meio
O sinistro espetáculo, decerto
Nenhum estranho contemplá-lo veio.
Mas, se alguém penetrasse no deserto,
Vira cair pesadamente a massa
Do corpo do guerreiro; e o crânio aberto,
Como se fora derramada taça
Pela terra jazer, ali chamando
O feio grasno do urubu que passa.
Em vão a arma do golpe irão buscando,
Nenhuma houve; nem guerreiro ousado
A tua morte ali foi castigando.
Talvez, talvez Tupã, desconsolado,
A pena contemplou maior do que era
O delito; e de cólera tomado,
Ao mais alto dos Andes estendera
O forte braço, e da árvore mais forte
A seta e o arco vingador colhera;
As pontas lhe dobrou, da mesma sorte
Que o junco dobra, sussurrando o vento,
E de um só tiro lhe enviou a morte.”
Ia assim suspirando este lamento,
Quando subitamente a voz lhe cala,
Como se a dor lhe sufocara o alento.
No ar se perdera a lastimosa fala,
E o infeliz, condenado à noite escura,
Os dentes range e treme de encontrá-la.
Leva os olhos na viva aurora pura
Em que vê penetrar, já longe, aquela
Doce, mimosa, virginal figura.
Assim no campo a tímida gazela
Foge e se perde; assim no azul dos mares
Some-se e morre fugidia vela.
E nada mais se viu flutuar nos ares;
Que ele, bebendo as lágrimas que chora,
Na noite entrou dos imortais pesares,
E ela de todo mergulhou na aurora.
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