domingo, 4 de novembro de 2012

BACELLAR (crônica antiga)


LUIZ BACELLAR

Rogel Samuel
 
 

            Passei o Natal em Manaus.
            Desembarco tarde da noite, mesmo assim ainda consigo energia para encontrar uns queridos amigos no Galvez, onde conversamos até o início da madrugada, ao ar livre.
            No dia seguinte, depois do café da manhã no hotel, saio para rever minha cidade.
            A primeira pessoa que encontro: Luiz Bacellar.
Ele é o poeta maior da Amazônia. Escreveu pouco. Retrata tardes  manauaras, quentes, ensolaradas, vazias, quase inúteis. Fala de  quintais, saputilheira, dos sanhaçus, da prata das aranhas. Da infância,  da "Porta para o quintal":
Bem haja o sol e a brisa neste canto! 
Cá fico maginando a tarde inteira 
deixando relaxar nesta cadeira 
de embalo o corpo bambo de quebranto. 
Brincam nas folhas da saputilheira 
brilhos metalescentes, cor de amianto 
saltitam sanhaçus de curto canto, 
aranhas tecem prata na trapeira. 
As telhas debruçadas dos beirais 
vão com as calhas de lata, lá entre elas, 
coisas de chuva e vento conversando 
quais velhinhas comadres; nos varais 
a roupa brinca de navio de velas 
minha infância perdida reinventando... 

Ele já viveu numa casa brasileira, bem grande. Bem interiorana. Conhece a  porta, sua paisagem - o quintal, árvores, varais, infâncias, o passado.  A porta para o quintal dá para vida voltada sobre si mesma, para dentro,  o recolhido, uterino. Não a porta do espaço público. Mas do interno. A  rua difere, como no "rondel da cana":
caba - colete
rolete - cana
danças na rua
tua pavana,
dança que a tua
dança é geral
dançada ao vento
do canavial

Há uma hierarquia metafísica na poesia, na poética do seu encontro com  sua cidade. A poesia de unidade, de tempo, aquela cidade ficava uma  pacata província pós-moderna (moderno foi o extrativismo da borracha), 
pós-modernismo decadentista, o da econômica crise dos 50 anos - de 1912  a 1962. 

No texto fragmentos do passado recente, destruído pela civilização de  shopping da "zona franca". Manaus devagar, tudo se centralizava na  Avenida Eduardo Ribeiro e poucas mais. Manaus de chafarizes, estatuária 
afrancesados. Manaus das tacacazeiras. Da lembrança.
Ponha, numa cuia açu 
ou numa cuia mirim 
burnida de cumatê: 
camarões secos, com casca, 
folhas de jambu cozido 
e goma de tapioca. 
Sirva fervendo, pelando, 
o caldo de tucupi, 
depois tempere a seu gosto: 
um pouco de sal, pimenta 
malagueta ou murupi. 
Quem beber mais de 3 cuias 
bebe fogo de velório. 
Se você gostar me espere 
na esquina do purgatório. 
(Receita de tacacá)

Às vezes o poema se inventa clássico, como no "rondel do sapoti":
pardo mamilo
de cunhatã
que aromatizas
o ar da manhã
tua rosa polpa
destila mel
poma leitosa
doce farnel

tuas duras folhas
verdes espelhos
bisando o sol
a passarada
te faz varanda 
para o arrebol

Quando vou a Manaus, das primeiras pessoas que encontro é Bacellar. Ele  aparece, fidalgo (que é), sai da moldura de um quadro de símbolos  antigos: pontes, feiras, S. Jorge, Cachoeirinha, São Sebastião. Sai com 
seus "Sonetos provincianos", "Três noturnos municipais", "Romanceiro  suburbano", "Sol de feira". Existe um caso de amor com aquela cidade  em cada poema. Ele a ama, e nela se reconhece: 
Como um prisioneiro
a lua me espia pelas
grades do banheiro. 


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