HOMEM, AMAZÔNIA E ECOLOGIA: A CONTRIBUIÇÃO DO PENSAMENTO DE DJALMA BATISTA
Isaac Melo
Pode-se,
sem falso louvor, situar Djalma Batista entre os grandes estudiosos
amantes da Amazônia; um amazonófilo, utilizando-se, aqui, da expressão
cunhada por Gilberto Freyre para se referir a Leandro Tocantins. A
ecologia, posteriormente a integrar as ciências ecológicas, passou a
ganhar feições próprias, como ciência, a partir do século XIX,
adquirindo expressiva força na década de 1960, com o advento dos
movimentos ambientais. Apesar de ser alvo de estudos desde tempos
remotos, como os desenvolvidos, na Grécia antiga, por Hipócrates e
Aristóteles, referentes à história natural, só mais recente o nosso
“grande lar” passou a ser objeto de atenção e estudo científico.
A
Amazônia, enquanto grande reserva natural do planeta, desde a lenda das
amazonas, propagada pelo relato de Frei Gaspar de Carvajal, em 1542,
sempre atraiu sobre si a curiosidade exploratório-científica, sobretudo
nos séculos XVIII e XIX, exemplificada, entre outras, pelas clássicas
expedições naturalistas de La Condamine (1735), Alexandre Rodrigues
Ferreira (1786), Martius-Spix (1817-1820), Bates-Wallace (1848), Agassiz
(1865-1866). Inicialmente a natureza exercia o predomínio sobre o fator
humano. Aquela era maior do que este, e o absorvia. Daí a expressão de
Euclides da Cunha, em princípio do século XX, inebriado pela
grandiosidade da selva frente ao homem: “O homem, ali, é ainda um
intruso impertinente”. Porém, com o aumento do fluxo humano, entre
outros, proporcionado pela migração, somado ao aperfeiçoamento da
técnica que permitiu desenvolver novas tecnologias, a Amazônia passou a
sofrer considerável impacto sobre o seu meio natural. O que antes
parecia ser inviolável, indobrável, mostra-se um complexo sensível às
intervenções humanas desmedidas. A Amazônia passa então a necessitar ou a
exigir uma ética que regule e oriente o agir humano sobre ela. A
ecologia ou as ciências ecológicas vem colaborar, nesse primeiro
momento, para tal reflexão, ao conceber o homem em interação com toda a
biosfera.
Djalma
Batista (1916-1979) encontra-se entre aqueles que vem colocar a Amazônia
na grande pauta da reflexão nacional e mesmo internacional, num momento
em que a própria Amazônia passa a ser alvo da cobiça internacional,
frente ao descaso governamental brasileiro, que, pode-se afirmar, não
sabia como integrá-la ao restante do país. Cientista, pesquisador,
escritor, literato, homem de profunda cultura, Djalma, arguto nas
observações e rigoroso nos registros, distancia-se do pensamento
romantizado acerca da Amazônia para lançar um olhar mais acurado e
crítico, com embasamento científico, às grandes questões que se
apresentavam à complexa realidade amazônica.
Médico
formado pela famosa Faculdade de Medicina da Bahia (1939), quando de seu
retorno à Amazônia, aos 23 anos, lança-se ao estudo dos diversos
problemas que assolavam a região, entre os quais, as doenças tropicais, a
hanseníase e a tuberculose, onde alcança resultados notáveis. Quando
mais adiante assume a direção do Instituto Nacional de Pesquisas da
Amazônia (INPA), de 1959 a 1968, irá reclamar a necessidade do
desenvolvimento tecnológico da região aliado ao desenvolvimento cultural
de seus habitantes.
A
Amazônia de Djalma ainda é, em grande parte, desconhecida
cientificamente, por isso ele afirmava que “a Amazônia, se não é o
infinito, é pelo menos o indefinido” (2003, p.65), por isso a
necessidade de pesquisadores para descerrar o ‘véu de Ísis’ que envolvia
a região, hoje, em parte, desnudada pelos modernos satélites que
exibem, com precisão, detalhes dos lugares mais remotos da planície
amazônica. Por isso afirmava que a natureza amazônica não estava
suficientemente conhecida e estudada, o que ainda persiste.
Djalma
não encarava a Amazônia segundo os critérios tradicionais da geografia
física, política ou continental, mas a partir da geografia humana. Logo
percebeu o ponto nevrálgico da ocupação amazônica. Para ele, toda a
história da Amazônia tinha sido, até aquele momento, uma colonização
desorganizada, em que a produção extrativa era a base de todo erro
estrutural da economia, devido sua condição arcaica. Compreendia que
todo o processo de ocupação tinha sido uma aventura, a serviço de
empreendimentos mercantis, que começaram desde a primeira hora. “A
ocupação da Amazônia, nos moldes de uma política meramente imediatista, é
propriamente um crime”, ressaltava o cientista (cf. 1976, p.128).
Acerca
do boom gomífero, a borracha, Djalma afirmava que esta era o verdadeiro
símbolo da Amazônia, contemporaneamente, cujas oscilações constituiram o
fluxo e o refluxo das marés sociais e econômicas. Entrevia, no entanto,
a transposição desse símbolo para o rio, em perene movimento, sempre
adiante, a insinuar, a exemplificar, a impor a atividade. Hoje diríamos
as rodovias, e mesmo, o transporte aéreo. Segundo ele, o alvorecer
promissor de um ciclo de cultura na Amazônia, proporcionado pela
borracha, não correspondeu totalmente à expectativa, pois, na economia
permanecemos sempre extrativistas e predatórios, e não principiamos
sequer a construir uma economia no sentido capitalista; na alimentação,
deixamos os enlatados, porém, continuamos a receber quase tudo de fora, o
que poderia ser cultivado em nossas terras; o comércio em geral ainda
não era comércio, mas puro escambo, troca de mercadorias por gêneros.
Além disso, a condição de vida do povo, em geral, não havia progredido.
O
resultado da época do fastígio, a toda a Amazônia, segundo Djalma, teria
sido um certo quê de novo-rico, ou de aristocrata arruinado, que levou a
exibicionismos e exteriorização muito além das reais possibilidades do
meio. Da saga da especiaria aliada à exploração gomífera surgiu um
sacrificado, ao mesmo tempo herói e mártir, que era o homem, em cuja
defesa Djalma se colocava intransigentemente. Por meio da defesa à
natureza, ele chegava à defesa do homem transposto àquelas paragens. Por
isso, o pensamento djalmiano se contrapõe a do ‘homem impertinente’, de
Euclides da Cunha. Assevera Djalma: “Reanimando o habitante da
Amazônia, através da educação, enquanto a paisagem seja defendida, é
preciso aprender a tirar, do que a terra possui ou pode dar, com a
aplicação de novas técnicas e de nova orientação, as vantagens e os
privilégios que não soubemos ou não pudemos até agora valorizar” (1976,
p.101). A floresta não é uma redoma de cristal, de aura intocável, ela
poder ser manejada de forma racional em favor de seus habitantes. É
possível desenvolver, preservando.
Diferente
de certos ecologistas radicais hodiernos, para Djalma a floresta não
deve constituir uma barreira ao desenvolvimento da Amazônia, mas ser
considerada um dos mais preciosos recursos. O que tem de se criar,
afirmava o pesquisador, são bases econômicas realmente estáveis,
simultâneas a bases culturais, que permitam o progresso da terra e
representem boas condições para sua gente, sem que se destruam as
potencialidades da terra e sem que o homem seja tentado a emigrar por se
sentir abandonado e sem horizontes (cf. 1979, p.291). Lição que ainda
não foi assimilada de toda. Depreende-se assim, que o desenvolvimento do
homem amazônico encontra-se sempre atrelado à preservação da floresta.
Por isso era categórico em afirmar: “é preciso de qualquer maneira
defender a ecologia amazônica” (1979, p.25).
A
preservação da floresta se conjugaria com o desenvolvimento cultural do
povo. Djalma atacava o subdesenvolvimento cultural como um dos
principais problemas da Amazônia a ser superado: “O que sei é que o
importante, na Amazônia, é preparar o povo para procurar suas próprias
soluções, criadas pela experiência de seus homens devidamente
esclarecidos e amadurecidos, sem cópias nem modelos alienígenas” (1976,
p.213). É claro que numa reflexão atualizada, o subdesenvolvimento
cultural, apesar de não está superado, poderia ser substituído pelos
grandes latifúndios agro-pecuários que devastam e dominam, rápido e
assombrosamente, grandes áreas na Amazônia. Por isso Djalma pregava a
necessidade de se criar uma consciência da importância da natureza
amazônica, que deve ser conhecida e amada, para poder ser defendida na
sua ecologia, isto é, nas relações que os seres têm de guardar entre si,
partindo do homem, que é o comandante lógico de todo o processo
transformador.
A
educação assume um lugar de destaque no pensamento djalmiano. A cultura
amazônica declinava, afirmava ele, pois havia se chegado a um nível de
cultura muito baixo. Por isso os seus esforços, para o estudo do
“complexo amazônico”, de formar pesquisadores locais, acrescidos aos de
fora, enquanto esteve à frente do INPA. Essa pobreza generalizada,
agravada pelo isolamento, teria suas raízes na ausência, pouca
oportunidade ou má orientação da educação, e, consequentemente,
subdesenvolvimento psicossocial ou sóciocultural. Portanto, para ele, a
solução estaria na educação, que levantaria o nível cultural da
população, dando-lhe novos horizontes, com a valorização do trabalho e
novas perspectivas de vida, que deveria ser boa e digna, em qualquer
lugar; estaria também na criação de novas condições econômicas,
reduzindo o extrativismo a um número suportável pela natureza, sem que
esta se desgastasse de modo ameaçador como estava acontecendo (cf. 1979,
p.90), e prossegue até hoje.
A
cultura, a que se chegaria pela educação, seria um forte fator para o
desenvolvimento e aperfeiçoamento da humanidade: “Estou convicto de que
só há uma força, hoje, no mundo, capaz de sustentar os ideais supremos
de Liberdade, de Justiça Social e de Paz: é a cultura” (2003, p.97).
Djalma prosseguia afirmando que a memória, o raciocínio, a imaginação, o
espírito crítico, dependem de exercício, treinamento e estímulo: só
eles poderão conduzir à ciência, à arte, à criação literária, à
filosofia, ao domínio das ideias e dos fatos, isto é, à cultura, como o
patrimônio espiritual de um povo. Ainda acrescentava que essa
civilização só poderia surgir de um movimento de cima para baixo, isto
é, do homem de estudo para a massa, e com a elevação gradual desta,
através de uma sistemática e eficiente divulgação do saber. Se não havia
pesquisadores e cientistas, então o que se devia fazer era formá-los.
Por isso ele propunha, em primeiro plano, a organização de uma Faculdade
de Filosofia, Ciências e Letras. Como homem de letras, chegou mesmo a
expressar: “Precisamos, enfim, de poetas, de muitos poetas na Amazônia,
que eternizem no verso os anseios e os sentimentos do povo” (2003,
p.94). É incomum ouvir apelos assim vindos do meio científico. Mas
Djalma era um devoto do homem diante do altar da natureza.
Acerca
da criação de um possível Centro de Estudos Amazônicos, em tom quase
poético, Djalma se deleitava com a ideia que este só lhe podia trazer o
concurso, inútil porque vazio, despretensioso porque sincero, de sua
mocidade, formada no culto devocional e no amor afervorado pela terra e
pelo homem amazônicos: terra feiticeira e boa, portentosa e triste, que
encerra o futuro da humanidade no seu seio carinhoso – no recesso ignoto
de suas florestas, onde corre a seiva fecunda de uma botânica
intrincada e nova, e toda uma zoologia que assombra e fascina; na trama
vascular de seus caudalosos rios; no sistema nervoso de suas cidades,
vilas e povoados, vibrando ao toque mágico de suas convulsões potâmicas,
geológicas e econômicas (cf. 2003, p.12).
Naquele
momento crítico da história brasileira, em que o governo militar passou
a incentivar a ocupação da Amazônia, Djalma alertava: “Não basta para o
Brasil a posse física da Amazônia, urge recuperá-la para a economia e
criá-la para a cultura brasileira” (2003, p.94). Isso não queria dizer
uma ocupação desorganizada e uma exploração predatória, pois o que mais o
impressionava constantemente naquele momento era o desmatamento
desmedido, contra o qual ergueu sua voz veementemente. Por isso
ressaltava que tudo nos cumpre fazer para defendê-la, e, defendendo-a,
desenvolvê-la. Considerava uma estultície pensar em reduzir toda a
riqueza amazônica a dinheiro, porque, em troca dele, teríamos o deserto.
Além disso, a floresta comporta valor em si mesmo. A grande esperança
continuava sendo, entretanto, o despertar da consciência ecológica,
assegurava.
Por
fim, decorridos mais de três décadas da publicação de sua principal
obra, O Complexo da Amazônia (1976), e de seu falecimento (1979), seu
pensamento ainda permanece uma verdade que não se esgotou e um
testemunho que não envelheceu. Um homem que levantou ardorosamente a
bandeira da preservação da Amazônia, num momento em que pouco se falava
ou se conhecia em relação à ecologia. A Amazônia persiste a necessitar
de outros Djalmas capazes de ir além de sua época, na busca de solução e
empreendimentos que ajudem cada vez mais a garantia de todos ao bem
supremo da vida, numa era em que esta se vê constantemente ameaçada. Que
a memória de Djalma Batista não se reduza a nomes de avenidas e
escolas, mas ganhe a consciência dos homens, de quem foi defensor
intransigente, pois “asseguro que nada mais sou que um dos que muito
desconhecem a Amazônia, pertencendo, no entanto, ao grupo dos que
almejam entendê-la e defendê-la”. O que fez de modo ímpar.
REFERÊNCIAS
BATISTA, Djalma. O complexo da Amazônia: análise do processo de desenvolvimento. Rio de Janeiro: Conquista, 1976.
BATISTA, Djalma. Amazônia, Cultura e Sociedade (Org. Tenório Teles). Manaus: Editora Valer, 2003.
Um comentário:
Rogel
também agradeço a gentileza pela publicação do texto!
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