quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

NEUZA MACHADO: O FOGO DA LABAREDA DA SERPENTE

 NEUZA MACHADO: O FOGO DA LABAREDA DA SERPENTE
 

SOBRE O AMANTE DAS AMAZONAS DE ROGEL SAMUEL

Na primeira fase, a busca de conhecimento histórico ofereceu-lhe também um princípio ficcional. Ribamar de Sousa começa a sua trajetória diferenciada, de Patos, Pernambuco (realidade histórica), ao Manixi Amazônico (realidade ficcional), assinalando a data do início de suas peripécias existenciais em busca do extraordinário: “madrugada do Natal de 1897” . O princípio assinalado denuncia a caminhada do homem do século XX: aquele que não pode mais se estabelecer em seu meio comunitário, pois, adulto, sujeito a uma vida de mendicância, terá “de começar a correr, prisioneiro das colocações, e a seguir estrada com tigelinha de flandres” .  Este princípio, á moda tradicional, nesta ficção anticonvencional, só se tornou possível, em plena pós-modernidade entrópica, graças ao auxílio da História. As chamadas narrativas de estruturas inovadoras da pós-modernidade, principalmente as da Primeira Fase, não se atêm ao tempo vital (tempo linear, do relógio), são narrativas de acontecimento, visualizando apenas o presente e não preocupadas com um clímax que as leve a um fecho à moda tradicional.
No entanto, se atento para os enclaves que superexcedem no todo deste romance em especial, recupero uma terceira fase, autenticamente reveladora das imposições respeitantes às inovadoras formas estruturais de narrar da pós-modernidade. No capítulo sete, o arcabouço mítico desaparece para oferecer o espaço ao narrador da fase final do século XX. O próprio título do capítulo já é por si uma revelação peculiar: “SETE: DESAPARECE”. Quem desaparece? Do desaparecido, falarei depois. Por ora, a palavra desaparece se projeta como um referente (um sinal) de finalização da narrativa mítica e de nova mudança narrativa: do mítico para o plano da ficção-arte (a anterior sinalizou a caminhada do histórico para o mítico). No capítulo seguinte (capítulo Oito), há um “ponto” indefinido direcionando a mudança de estilo narrativo, revelando a decadência da realidade sócio-substancial amazonense, apresentada inicialmente pela maneira de narrar grandiosa da linguagem histórico-lendária.
Contudo, ainda não me desenredei de Paxiúba. O arcabouço mítico-ficcional diferenciado exige-me novas reflexões sobre este poderoso personagem. Ele, neste momento em que o reflito, está vindo ao encontro de Zilda, a “esposa do Laurie Costa,” (...) “lavadeira pessoal do Palácio, das roupas brancas, exceto as lavadas em Lisboa” . Ele está vindo também ao encontro de minhas reflexões teórico-críticas. Vejo-me em expectativa: assim como a outra energética Zilda, a da mitologia germânica, a poderosíssima guerreira da vitória, a guerreira de ferro, terei de vencê-lo teoricamente e reflexivamente - pela razão, pelo conhecimento, pela ponderação inovadora -, terei de vencer suas guardas míticas e seus desafios existenciais. Não posso deixar-me seduzir teluricamente pelo seu fabuloso porte, descomunal, colocando-me em perigo diante das já insuficientes e, ainda, exigidas análises significativas (dogmáticas), as quais estão aqui a digladiarem-se com as minhas inferências fenomenológico-interpretativas.
Paxiúba surge no desenrolar ficcional pós-moderno como personagem “cínico, atravessador”, anunciando que, mesmo possuidor de uma aura mítica (que, pelo ponto de vista épico, deveria ser de autêntica pureza), ele não será concebido como tal. Seu papel é o de “atravessador”, de intermediário entre as três dimensões da efetiva ficção criativamente alterada: a sócio-substancial, a mítico-substancial e a ficcional-arte. Desde o seu surgimento até ao final da escrita rogeliana, ele atuará com desenvoltura nestes três planos da criação literária. Seu poder será atuante. Pari passu com o primeiro personagem-narrador, a sua importância se revelará sempre ativada.
“Seu poder vinha do cheiro de camaru”. Em volta da Alta Palmeira dos Igapós (Paxiúba), com seus três caules indivisos (o social, o mítico e o ficcional) e sua mítica coroa de flores (o cocar), manifesta-se a interferência do cheiro do camaru, uma pequena árvore de flores aromáticas, de fruto indeiscente (que não se abre espontaneamente ao atingir a maturação). O cheiro agradável, afrodisíaco, verbenáceo, impregna criativamente todos os capítulos referentes a Paxiúba. Ao longo da leitura, o cheiro vai anestesiando inclusive o leitor. Eis o poder indiscutível do herói ficcional. Eis o poder indiscutível desta narrativa especialmente. Seu personagem não é apenas um simples simulacro, como os personagens representantes das ficções paraliterárias (os representantes dos textos de novela televisiva e cinema, ou mesmo das novelas paraliterárias - lineares, sintagmáticas -, produzidas para a massa). Paxiúba terá vida ficcional permanente, enquanto o romance existir e houver leitores-eleitos. A Ficção-Arte não se materializa apenas para o entretenimento do leitor. A Ficção-Arte exige do ficcionista (incluindo posteriormente o leitor) a plena-atenção, como recomenda com encômio a filosofia budista (normas filosófico-religiosas que, não por acaso, administram a vida espiritual do escritor aqui destacado).
Paxiúba, o bruto, o fundamental, o da impressão fugidia para a certeza, correta e culposa, aproxima-se do porto do Laurie Costa, porque o semi-humano (o semideus) interessou-se por uma mortal, uma comum lavadeira do Palácio Manixi. Ele terá de tomá-la sexualmente do Laurie Costa, o marido, para, assim, transitar livremente na dimensão humana. (Assim se comportou Júpiter, ao se relacionar com Alcmena, esposa de Anfitrião; assim se comportaram os Anjos do único Deus dos Hebreus, nos Evangelhos Apócrifos, ao se relacionarem com as “filhas dos homens”). Entretanto, é o cheiro do camaru (camará, cambará) que vigora “na interseção vazia” entre o dito e o não-dito desta obra ficcional incomum. Paxiúba, graças ao perfume do camaru, ultrapassa as regras do narrar mítico, “fundamental”, para vigorar na “lógica da tenebrosa região infantil”, energeticamente ficcional, de quem escreve. Ele se revela não apenas pelo poder do mito, mas por meio da “força hipnótica (do pensar efervescente, do repouso ativado), para fora, para novas submissões”. Ele é o somatório de todos os indígenas, bugres e caboclos que povoaram o arcabouço mítico-infantil do ficcionista nascido ali, naquelas paragens, a manifestarem-se, exigindo dele que, mesmo saindo de seu lugar de origem, não poderá deixar de revelar as suas impressões primeiras, as suas particularidades e as particularidades de seus contemporâneos.
O discurso mítico é a oratória da “ordem”, é a explanação (oral ou escrita) de fatos e seres grandiosos (humanos ou não), estruturalmente inseparáveis da tradição de um povo. Paxiúba possui a chave da verdade mítica de quem escreve, mas, quem terá de manuseá-la é o primeiro narrador (narrador do segundo), enquanto personagem principal das ocorrências narradas. Paxiúba possui o poder de mando, assim como os grandes guerreiros e personalidades notáveis do passado. E os legendários heróis do passado mítico (passado que se perde nas fendas do tempo, anterior aos severos dogmas do cristianismo) não conheceram a natureza íntima da bondade. A “ordem” dos olhos e o “sorriso sensual perverso” caracterizam a face reduplicada do personagem Paxiúba. O ser mítico é selvagem, primitivo. Possui o que Max Weber classificou como “poder do ontem eterno” ou “poder do carismático-guerreiro”. A “ordem” dos olhos é para que o narrador diga somente verdades (apreciáveis ou não), mesmo que o narrar mítico da pós-modernidade seja a edificação intelectual de uma narrativa em prosa, idealizada. A Floresta Amazônica, revista ficcionalmente pelo escritor nascido ali, em suas imediações, concentra a essência do mito de antigas eras, mas, aqui, insolitamente revestido pela roupagem do arcabouço mítico-lendário dos índios daquela localidade. A pureza mítica poderá ser classificada como a integridade vivencial do ser primitivo, aquele que não foi maculado por exigências ideológicas (sociais ou religiosas). O ser primitivo não conheceu (não conhece) o ônus do pecado cristão. Paxiúba não é cristão. É um ser original. Então, quem reconhece o “sorriso sensual e perverso, sublinhado por esboço de pecado” a fotografá-lo, é o narrador. A “ordem” mítica dos olhos de Paxiúba possui a pureza do primitivismo heróico. O bugre não sabe o que seja pecado, e não creio extratexto que Frei Lothar (um outro personagem importante) o tenha catequizado. Quem se percebe avaliando o “sorriso sensual e perverso” de Paxiúba é o narrador. Quem avalia o olhar do “pecado” o fotografando é o narrador, aquele que, historicamente, conhece os dogmas do cristianismo, no que tange a relacionamentos sexuais. As “baixezas” do olhar de Paxiúba saíram do “espelho” simbólico-ficcional duplicado e “sublimado” de quem narra, não da pureza primitiva do mito.
Paxiúba “se efetivara guerreiro de épocas irregulares, de tempo inverso” (invertido), possuidor dos “remotíssimos mecanismos ardilosos, das possibilidades do corpo”, ou seja, “remotíssimos mecanismos ardilosos” da urgência sexual. O guerreiro de épocas contrárias às regras (de civilidade), nesta dimensão da narrativa ficcional rogeliana, é a personificação do ser mitológico. Este ser em especial (o Paxiúba) conhece as normas e os preconceitos sexuais do ser civilizado, por isto é “capaz de muito realizar sexualmente, pois sabe sedimentar (endurecer), a partir de seu apetite carnal fabuloso, “o músculo vivo e assumido”. Seu poder é o da força bruta. Se há algo que deseja, ele o toma. Por isto, “era bom de não se encontrar de repente, na estrada deserta”. Por isto, a exigência da cautela, da precaução. Por isto Zilda, a esposa do Laurie Costa, “uma certa e acocorada lavadeira das roupas (roupas do Palácio), agachada sobre a prancha lisa do tabuão de sabão” , se assusta com o “regular da urgência daquele olhar” .


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