quinta-feira, 27 de março de 2014

NEUZA MACHADO: O FOGO DA LABAREDA DA SERPENTE




SOBRE O AMANTE DAS AMAZONAS DE ROGEL SAMUEL


Bachelard diz: “O indivíduo não é a soma de suas impressões gerais, é a soma de suas impressões singulares. Assim se criam em nós os mistérios familiares, que se designam em raros símbolos”. O narrador de O Amante das Amazonas (o primeiro, o segundo, o terceiro; quantos forem) concentra em si as impressões vivenciais, singulares, do criador ficcional pós-moderno. Os “mistérios familiares”, cerceadores, realçados na filosofia bachelardiana, acenam as suas presenças incomodantes nesta ficção extraordinária  (extraordinária aqui não possui sentido encomiástico; o meu propósito para exibi-la é interpretativo-reflexivo). Assim, os raros símbolos (os símbolos importantes que povoaram/povoam/povoarão o amplo imaginário-em-aberto do segundo narrador), restritos a esses mistérios familiares convertem-se em arcabouço heróico, porque as “verdades” da mitologia indígena brasileira, “verdades” oriundas dos conceitos vivenciais exemplares, adquiridos desde a infância e adolescência, sempre fizeram parte da vida do criador ficcional da pós-modernidade brasileira. E permanecerão ativadas, enquanto vigorar o seu itinerário existencial como cidadão do mundo.
“Foi perto da água e de suas flores que melhor compreendi ser o devaneio um universo em emanação, um alento odorante que se evola das coisas pela mediação de um sonhador” , reflete Gaston Bachelard, no capítulo “Imaginação e Matéria” de seu livro A Água e os Sonhos. Por este prisma, foi assim que, às margens dos igarapés ou mesmo ladeando os largos e caudalosos rios amazonenses, manifestou-se, por meio da quentíssima aragem manauara (vento), proveniente da Floresta, o “cheiro do camaru”, anunciando ao primeiro narrador a presença do mítico personagem, o bugre Paxiúba, por intermédio da íntima e distinta compreensão do devaneio de “um universo em emanação” .
Repensando a matéria ar como um renovado elemento condutor para a alteração do exterior narrativo, é como se no capítulo seguinte, destinado à elevação do fantástico Paxiúba, o “cheiro do camaru” “fosse o prosseguimento do sonho [do narrador pós-modernista] na noite velada”, dissolvendo e “anestesiando” as lembranças ruins e, ao mesmo tempo, reanimando o fluxo narrativo por meio de uma novíssima “impressão extraordinária”.
O narrador principal, neste capítulo, ainda necessita de seu primeiro narrador, o Ribamar de Sousa, para revelar aos leitores de seu presente histórico (aos realmente interessados em sua recriação ficcional sobre a glória e decadência do Império Amazônico) e aos leitores do futuro (aqueles que inequivocamente irão julgar o valor de sua ficção-arte) as diversas realidades - sócio-míticas e sócio-políticas - do Manixi, incluindo também o seu deslumbrante apogeu e melancólico declínio. Nos capítulos finais, o Ribamar de Sousa se transformará e passará o comando do proceder narrativo ao segundo (e principal) narrador. Contudo, enquanto personagem significativo, ao longo do romance, nas páginas finais, mesmo ostentando a fisionomia do poder capitalista em declínio, a sua presença será de régia importância.


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