sábado, 15 de março de 2014

NEUZA MACHADO: DO PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL

NEUZA MACHADO: DO PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL
 
 
I - INTRODUÇÃO

 
 
Nestas páginas iniciais, em diálogo com Gaston Bachelard, o meu objetivo é demonstrar a possibilidade de se alcançar o cogito(4) da realidade espiritual por intermédio da Arte Literária, sem que, com isto, o indivíduo (orientado por exigências do intelecto) se desequilibre no plano das atitudes de vida socialmente aceitas.
           
Neste caso específico, nos capítulos seguintes, estarei a dialetizar e a reinterpretar algumas narrativas de Guimarães Rosa, seguindo uma provável cronologia, intencionando provar que o Artista brasileiro, nato do sertão, conseguiu elevar-se ao referido cogito no plano da Literatura-Arte.
 
O cogito(4), na filosofia bachelardiana, é um estágio de pensamento de difícil ascensão, já ligado ao plano do Espírito, o qual possibilita ao ser humano projetar-se para fora da linha vital. Por este ângulo, Bachelard admite a possibilidade de vários cogitos superpostos, inclusive a possibilidade de cogitos desconhecidos acima do cogito(4). Porém, visando o equilíbrio mental/social do homem, destaca apenas três potências do pensamento (cogito(1), cogito(2) e cogito(3)), afirmando que estas forças são as únicas que ainda oferecem uma particular felicidade ao indivíduo (conhecedor do cogito(3) do pensamento puro), além de proporcionarem a aceitação de idéias elevadas por parte dos representantes dos cogitos um e dois.
 
Por este ponto de vista, aqueles que alcançam o cogito(3) não se desprendem totalmente dos cogitos um e dois, vivendo numa interação salutar com os outros membros da sociedade, no plano do cogito ao cubo (plano vital), e recebendo desses uma respeitosa reverência. Em outras palavras, os que recebem a marca da individualidade são aceitos como excepcionais, mas não são considerados totalmente excêntricos pelo grupo social a que pertencem, ao contrário, suas idéias são bem recebidas e imitadas.
 
Enquanto os cogitos um e dois são lineares — cogito(1): primário / cogito(2): transitivo —, o cogito(3) é lacunar, pois é propriedade exclusiva do indivíduo que pensa além dos pensamentos instituídos. O cogito(3) seria assim o plano mental do ser humano possuidor da chamada consciência pura (ou consciência singular). A consciência pura seria a consciência daqueles que não se deixam envolver pelos valores vitais.
 
A ascensão ao cogito(4) (plano espiritual), segundo Gaston Bachelard, oferece perigos ao pensador, pois se situa fora das exigências vitais. Entretanto, poderá ser pressentido por estudiosos capacitados, por intermédio de insólitos textos ou de estranhos desenhos das chamadas pessoas iluminadas.
 
No que diz respeito ao reconhecimento do cogito(4) nas narrativas de Guimarães Rosa, as quais serão aqui realçadas, e certamente nos capítulos a elas destinados, apresentarei a minha posição de teórico-crítica exclusivamente ligada à Teoria Literária, uma vez que dialogarei com as teorias filosóficas de Gaston Bachelard pelo ponto de vista da interdisciplinaridade, reivindicando, sempre que for necessário, a minha condição dual de analista e intérprete do texto literário, de acordo com os preceitos da interdisciplinaridade. Centralizando meus argumentos interpretativos no cogito(4), procurando provar que o referido cogito pode ser detectado no plano da Literatura-Arte, intenciono desvincular-me das tradicionais barreiras dos modelos críticos formalistas/cientificistas, por meio da contribuição de pensamentos oriundos da filosofia assinalada, admitindo assim novas possibilidades de incursão crítica no universo literário.
 
Entretanto, uma importante advertência devo aqui salientar: esta teoria não é bachelardiana como parece ser. Utilizo-me de alguns pensamentos de Bachelard, aproprio-me de algumas de suas idéias e estarei aqui em permanente diálogo com seus textos, mas o argumento que me orienta relaciona-se com a hermenêutica (a renovada hermenêutica do final do século XX e início do século XXI), proporcionando-me distinguir no texto alheio o reflexo de meus próprios conhecimentos. Por tais motivos, hermeneuticamente estarei dialogando com a filosofia de Bachelard, uma filosofia ligada à razão, à sabedoria, às origens do pensamento do homem e suas causas posteriores; uma orientação filosófica que tem por base uma fenomenologia que imerge na mais profunda raiz do pensamento ocidental. E, de certo modo, conscientemente poderei dizer que este é o meu Bachelard, isto é, tenho de Bachelard uma certa leitura e aproximação muito mais literária do que filosófica.
 

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