quinta-feira, 20 de março de 2014

A grandeza despojada

 


A GRANDEZA DESPOJADA

NEUZA MACHADO



Entretanto, apesar do ou graças ao conflito, a partir da página oitenta e nove, um novíssimo narrador rogeliano se obrigou a surgir para revelar aos leitores que, desde o início da narrativa, o interregno capitalista esteve ali presente (o lado capitalista do Manixi), ansioso por destruir a grandeza mítica do lugar. Subitamente, aparecem ratos na narrativa. Os dois poderes não poderão permanecer juntos naquele espaço efervescente de transição. Um deverá destruir o outro. A mudança narrativa instiga o leitor interessado. Ele terá de descobrir (se houver ou não um fecho narrativo tradicional) quem sairá vencedor. Quem está despojando a grandeza da Floresta Amazônica? Como desvelar o Manixi (o Palácio e as terras que o rodeiam) ao longo da narrativa rogeliana? Por que “o sumiço do filho de Pierre Bataillon, um homem que vivia debaixo do ouro no Alto Juruá, permanece encoberto de tal mistério, sempre um acontecimento mitificado na imaginação do povo amazonense e acreano, e todas as hipóteses, levantadas então, não se puderam justificar, nem explicar”? Por que a Cidade de Manaus revela-se, na segunda etapa da narrativa como segundo espaço de mediação ficcional? E os ratos? Por que os ratos? Há ratos na Floresta. Há ratos na Cidade. Há “ratos” entre “as tábuas do chão”, “ratos” como “um traço cinematográfico, contínuo”, um “corroer” que incomoda, ativando a sensibilidade e a inteligência do leitor, demonstrando que, holisticamente, há “ratos” em todas as partes do mundo a abalar os primordiais e puros alicerces da civilização. Não foi o narrador Ribamar (o narrador tradicional das histórias contadas e relidas) que viu os tais ratos, foi o outro narrador (o das histórias lidas, relidas e inúmeras vezes repensadas), porque somente um narrador capacitado para tal função poderia formalizar criativamente o início da decadência da época da borracha (aquele que vê “o risco preto no chão”), ou seja, o início da decadência do plano das exigências conceituais a interagir com um discurso saído da própria “consciência fervilhante” (G. Bachelard).


MACHADO, Neuza. O Fogo da Labareda da Serpente: Sobre O Amante das Amazonas de Rogel Samuel

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