terça-feira, 18 de março de 2014

NEUZA MACHADO: O FOGO DA LABAREDA DA SERPENTE


NEUZA MACHADO: O FOGO DA LABAREDA DA SERPENTE


SOBRE O AMANTE DAS AMAZONAS DE ROGEL SAMUEL

Nesse singularmente instante criativo, a substância essencial para o “ócio” dipsomaníaco (repouso fervilhante a impulsionar o criador ficcional para a representação dramática da morte) é a água negra, e, para este tipo de água, “que permite penetrar num dos refúgios materiais elementares” , não existem palavras consoladoras. Por tal razão, percebe-se um veto contra a chamada explicação linear (exemplar), instaurando-se o vazio ficcional (ou espaço em branco), sobre o qual o leitor terá de se debruçar e preenchê-lo com o seu próprio imaginário. Esta forma pós-moderna de narrar, no parágrafo em questão, está perceptível. O ficcionista-narrador, submetido por sua vez ao seu próprio repouso fervilhante, enquanto seu primeiro personagem-narrador se debatia/se debate na milenar água do histórico-ficcional, logo a seguir, desvendou o caminho secreto que o levaria a interagir com o plano mitificado da realidade amazonense. Por esse ângulo interpretativo-reflexivo instaura-se o interregno fabuloso de Paxiúba, pois o primeiro narrador Ribamar de Sousa “não soube de mais nada do que se passou, “não [soube] como [fugiu e mergulhou] “na invisível água do igarapé de treva fria e rápida, e [como foi] levado e [afastado] dali”. Os “parentes” morreram, “mas... [ele] ainda estava vivo e não ferido”.  No caso, a água de “treva fria”, mitificada, não permitiu a morte de Ribamar, dignificando-o também como o narrador decisivo da segunda seqüência mítico-ficcional.
As narrativas de acontecimento não se submetem à delimitação do narrar tradicional. Se não há explicação para o acontecido, o episódio será classificado como essencial para o reconhecimento da narrativa fantástica, uma vez que o personagem-atuante Ribamar de Sousa se recuperou, de uma forma diferenciada, diga-se de passagem, no plano das probabilidades existenciais. O narrador  duplicado teria ainda muito o que viver, para que, depois da aparição do bugre Paxiúba, pudesse narrar, à moda do escritor ficcional do século XX, a decadência sócio-substancial do Amazonas.
Entretanto, para o prosseguimento de minha reflexão sobre o ativo exercício de escrita ficcional do primeiro narrador, logo depois da morte dos “parentes” e da ascensão narrativa ao plano mítico, plano este reservado para a inserção do “lendário e eterno”  Paxiúba, continuo a exigir aqui o auxílio filosófico de Gaston Bachelard.
“O ser é antes de tudo um despertar, e ele desperta na consciência de uma impressão extraordinária”. O primeiro narrador, submetido ao segundo, despertou, primeiramente, por intermédio de uma consciência ativada, extraordinariamente impressionada com a descoberta ficcional do plano mítico amazonense, constituído a partir da insígnia do bugre Paxiúba. Se ele, enquanto um sobrevivente do ataque dos Numas, ataque este que ocasionou o incêndio da floresta, e, por conseqüência, a morte dos “parentes”, levado pela correnteza do “igarapé de treva fria e rápida”, não se lembra de como se salvou, em contrapartida, tem a certeza de que “uma correnteza negra [o abraçou, o envolveu, o levou]. Ele também tem o conhecimento de que [bateu] “em paus e pedras”, mas que [prosseguiu], “noite a dentro, breu a fora, sem pesar, por dentro, extasiado e sem pensar, com as estrelas, como se tudo aquilo fosse o prosseguimento de [seu] sonho na noite velada e muito burra e muito cega, hipnótica, horrorosa, continuando assim por muitas horas entre as sombras, segredos e lágrimas”, sentindo tudo a se dissolver ... Sim”.




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