[TIARA DA RAINHA VITÓRIA]
Neuza
Machado: Esplendor e decadência do império amazônico
Sobre
o romance O amante das amazonas de
Rogel Samuel
Ribamar de Sousa: O Ficcional Personagem-Representante do
Capitalismo Decadente da Cidade de Manaus
“Aquele era
um cômodo sem janela, debaixo da escada, e ali dentro sentia-se muito calor,
umidade e mofo”. “Para Ribamar, um luxo”, porque era pensado por um narrador
pós-moderno/pós-modernista de Segunda Geração em “um tempo abstrato privado de
qualquer espessura”. A seguir, guiado pelo segundo narrador, Ribamar vai
conhecer a Cidade, a extensão inolvidável do pequeno/dilatadíssimo porão de
quem realmente conhece o próprio espaço “de intimidade” a ser ficcionalmente
apresentado.
Às vezes uma
dialética de intimidade e de expansão adquire, num grande poeta, uma forma tão
suave que esquecemos a dialética do grande e do pequeno que, no entanto, é a
dialética básica. Então a imaginação já não desenha, ela transcende as formas
desenhadas e desenvolve com exuberância os valores da intimidade.
Em suma, toda riqueza íntima aumenta ilimitadamente o espaço interior onde ela
se condensa. O sonho fecha-se aí e desenvolve-se no mais paradoxal dos gozos,
na mais inefável das felicidades.[i]
E é graças a
essa “dialética de intimidade e de expansão”, cujo plenipotenciário é o próprio
escritor, por sua vez recortado em material opaco como segundo narrador, que
Ribamar sai do porão da casa de Juca das Neves para o sucesso no Orbe
sócio-político de Manaus. E ainda graças a essa “dialética de intimidade e de
expansão”, o humilde caboclo malvestido, o nordestino da cidade de Patos,
Pernambuco, provindo agora do Seringal Manixi, pode “transcender” as anteriores
“formas desenhadas”, históricas, e se desenvolver exuberantemente, graças aos
“valores da intimidade” do segundo narrador.
Naquele dia, Ribamar
conhecera o Hotel Cassina, em decadência, a se transformar no Cabaré Chinelo.
Conhecera o Alcazar, a Livraria Royal, na Rua Municipal, 85, expostas as
novidades de Garcia Redondo, de João Grave, de Júlio Brandão e Bento Carqueja ─
autores da moda. Ali havia um livro de Carmen Dolores, outro de Haeckel. Eram
panegíricos e leitura recreativa. A “Biblioteca para o Povo”, a “Biblioteca
Racionalista”. Os Serões da Aldeia, de João de Lemos. Um livro se intitulava De
cara alegre, custava $50. Juca das Neves tinha parte da biblioteca de
Pierre Bataillon em casa. Melina não tocava mal. Ribamar recordava-se de Pierre
Bataillon tocando Schubert. Alvarengas rebocavam pélas de borracha. Ribamar
passara pela porta do London Bank. As alvarengas suaves entravam na
porta do banco. Ivete, quando era servente, andava quase nua. Ribamar estranhou
encontra-la, agora, grande dama, casada com Antônio Ferreira.[ii]
“Naquele dia,
Ribamar conhecera o Hotel Cassina, em decadência, a se transformar no Cabaré
Chinelo”, conheceu também “a Livraria Royal”, conheceu os “valores da
intimidade” de quem nasceu para desfrutar os essenciais prazeres da vida, do
luxo (hotel deluxo) ao conhecimento (livraria), mas que, momentaneamente, se
encontrava a vivenciar algumas perdas materiais (a perda do nome, da
importância social em sua cidade de nascimento). A partir da endosmose
do segundo narrador, o agora personagem Ribamar de Sousa, que, no momento, está
a centralizar o romance pós-moderno/pós-modernista, pode instalar-se no porão
da casa de Juca das Neves para, posteriormente, intuir, com acuidade, “o apagar
do apogeu capitalista” de base familiar no Estado do Amazonas (“o Hotel Cassina
a se transformar no Cabaré Chinelo”) e, conseqüentemente, a desestabilização
sócio-econômica de sua Capital centralizadora, Manaus (até hoje, a sua única
cidade maior).
Em um
parágrafo, à moda pós-moderna/pós-modernista, o alter ego de Rogel Samuel
resume a catástrofe que se abateu sobre aquela região do Amazonas, sobre sua raiz
sócio-familiar, sobre sua própria dinâmica de vida, depois dos chamados anos
dourados de meteórica riqueza. “Meio século” durou a crise econômica. “As
famílias ricas” partiram para a Europa; “fortunas colossais se reduziram a pó”;
“mulheres ficavam viúvas” e “passavam a costurar, para sobreviver”; “jóias eram
vendidas a qualquer preço”, e, inclusive, “Maurice Samuel, um dos ricos” (o avô
paterno do escritor Rogel Samuel), “perdeu até os móveis de sua casa,
penhorados, e mudou-se para pequena casa alugada na Silva Ramos”. A Cidade
estava abandonada, desgovernada. Os laços familiares estavam destruídos.
Os filhos, abandonando os pais, as raízes, em busca de outras regiões
financeiramente mais compensadoras. Inúmeros Ribamares saindo de Manaus, com
tigelinha de flandres na mão em busca de serviços bem remunerados
(ou não) nas capitais de outros Estados do Brasil. E as perguntas não obtinham
respostas: Por que o capital desaparecera da Cidade e tudo que era sólido,
desfizera-se no ar e ruíra como um castelo de cartas?
Era impossível salvar o Armazém das Novidades,
do qual só restavam móveis velhos, um luxo fora de moda. Apesar de tudo,
Ribamar abria diariamente a loja. O patrão não aparecia, para não se humilhar
junto aos credores. Abatido, prostrado, quase sempre bêbado, se escondendo em
casa como se uma doença o tivesse aprisionado. Juca das Neves envelheceu logo.
Era um homem aniquilado? O dinheiro começava a faltar para a alimentação. Ele
vendia objetos e jóias para poder ir ao mercado. Naquele dia se vencia uma das
letras que ele não podia saldar. Por isso estava afundado na cama, à espera da
morte.
Mas Ribamar apareceu no
limiar da porta.[iii]
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