domingo, 9 de março de 2014

Ribamar de Sousa: O Ficcional Personagem-Representante do Capitalismo Decadente da Cidade de Manaus


[TIARA DA RAINHA VITÓRIA]
Neuza Machado: Esplendor e decadência do império amazônico

 

Sobre o romance O amante das amazonas de Rogel Samuel

 

Ribamar de Sousa: O Ficcional Personagem-Representante do Capitalismo Decadente da Cidade de Manaus

 

“Aquele era um cômodo sem janela, debaixo da escada, e ali dentro sentia-se muito calor, umidade e mofo”. “Para Ribamar, um luxo”, porque era pensado por um narrador pós-moderno/pós-modernista de Segunda Geração em “um tempo abstrato privado de qualquer espessura”. A seguir, guiado pelo segundo narrador, Ribamar vai conhecer a Cidade, a extensão inolvidável do pequeno/dilatadíssimo porão de quem realmente conhece o próprio espaço “de intimidade” a ser ficcionalmente apresentado.

 

Às vezes uma dialética de intimidade e de expansão adquire, num grande poeta, uma forma tão suave que esquecemos a dialética do grande e do pequeno que, no entanto, é a dialética básica. Então a imaginação já não desenha, ela transcende as formas desenhadas e desenvolve com exuberância os valores da intimidade. Em suma, toda riqueza íntima aumenta ilimitadamente o espaço interior onde ela se condensa. O sonho fecha-se aí e desenvolve-se no mais paradoxal dos gozos, na mais inefável das felicidades.[i]

 

E é graças a essa “dialética de intimidade e de expansão”, cujo plenipotenciário é o próprio escritor, por sua vez recortado em material opaco como segundo narrador, que Ribamar sai do porão da casa de Juca das Neves para o sucesso no Orbe sócio-político de Manaus. E ainda graças a essa “dialética de intimidade e de expansão”, o humilde caboclo malvestido, o nordestino da cidade de Patos, Pernambuco, provindo agora do Seringal Manixi, pode “transcender” as anteriores “formas desenhadas”, históricas, e se desenvolver exuberantemente, graças aos “valores da intimidade” do segundo narrador.

 

Naquele dia, Ribamar conhecera o Hotel Cassina, em decadência, a se transformar no Cabaré Chinelo. Conhecera o Alcazar, a Livraria Royal, na Rua Municipal, 85, expostas as novidades de Garcia Redondo, de João Grave, de Júlio Brandão e Bento Carqueja ─ autores da moda. Ali havia um livro de Carmen Dolores, outro de Haeckel. Eram panegíricos e leitura recreativa. A “Biblioteca para o Povo”, a “Biblioteca Racionalista”. Os Serões da Aldeia, de João de Lemos. Um livro se intitulava De cara alegre, custava $50. Juca das Neves tinha parte da biblioteca de Pierre Bataillon em casa. Melina não tocava mal. Ribamar recordava-se de Pierre Bataillon tocando Schubert. Alvarengas rebocavam pélas de borracha. Ribamar passara pela porta do London Bank. As alvarengas suaves entravam na porta do banco. Ivete, quando era servente, andava quase nua. Ribamar estranhou encontra-la, agora, grande dama, casada com Antônio Ferreira.[ii]

 

“Naquele dia, Ribamar conhecera o Hotel Cassina, em decadência, a se transformar no Cabaré Chinelo”, conheceu também “a Livraria Royal”, conheceu os “valores da intimidade” de quem nasceu para desfrutar os essenciais prazeres da vida, do luxo (hotel deluxo) ao conhecimento (livraria), mas que, momentaneamente, se encontrava a vivenciar algumas perdas materiais (a perda do nome, da importância social em sua cidade de nascimento). A partir da endosmose do segundo narrador, o agora personagem Ribamar de Sousa, que, no momento, está a centralizar o romance pós-moderno/pós-modernista, pode instalar-se no porão da casa de Juca das Neves para, posteriormente, intuir, com acuidade, “o apagar do apogeu capitalista” de base familiar no Estado do Amazonas (“o Hotel Cassina a se transformar no Cabaré Chinelo”) e, conseqüentemente, a desestabilização sócio-econômica de sua Capital centralizadora, Manaus (até hoje, a sua única cidade maior).

Em um parágrafo, à moda pós-moderna/pós-modernista, o alter ego de Rogel Samuel resume a catástrofe que se abateu sobre aquela região do Amazonas, sobre sua raiz sócio-familiar, sobre sua própria dinâmica de vida, depois dos chamados anos dourados de meteórica riqueza. “Meio século” durou a crise econômica. “As famílias ricas” partiram para a Europa; “fortunas colossais se reduziram a pó”; “mulheres ficavam viúvas” e “passavam a costurar, para sobreviver”; “jóias eram vendidas a qualquer preço”, e, inclusive, “Maurice Samuel, um dos ricos” (o avô paterno do escritor Rogel Samuel), “perdeu até os móveis de sua casa, penhorados, e mudou-se para pequena casa alugada na Silva Ramos”. A Cidade estava abandonada, desgovernada. Os laços familiares estavam destruídos. Os filhos, abandonando os pais, as raízes, em busca de outras regiões financeiramente mais compensadoras. Inúmeros Ribamares saindo de Manaus, com tigelinha de flandres na mão em busca de serviços bem remunerados (ou não) nas capitais de outros Estados do Brasil. E as perguntas não obtinham respostas: Por que o capital desaparecera da Cidade e tudo que era sólido, desfizera-se no ar e ruíra como um castelo de cartas?

 

Era impossível salvar o Armazém das Novidades, do qual só restavam móveis velhos, um luxo fora de moda. Apesar de tudo, Ribamar abria diariamente a loja. O patrão não aparecia, para não se humilhar junto aos credores. Abatido, prostrado, quase sempre bêbado, se escondendo em casa como se uma doença o tivesse aprisionado. Juca das Neves envelheceu logo. Era um homem aniquilado? O dinheiro começava a faltar para a alimentação. Ele vendia objetos e jóias para poder ir ao mercado. Naquele dia se vencia uma das letras que ele não podia saldar. Por isso estava afundado na cama, à espera da morte.


 

Mas Ribamar apareceu no limiar da porta.[iii]





[i] Idem: 40.


[ii] SAMUEL, Rogel, 2005: 119 - 120.


[iii] Idem: 140.

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