Neuza
Machado: Esplendor e decadência do império amazônico
Sobre
o romance O amante das amazonas de
Rogel Samuel
Ribamar de Sousa: O Ficcional Personagem-Representante do
Capitalismo Decadente da Cidade de Manaus
“Era
impossível salvar o Armazém das Novidades do qual só restavam móveis
velhos, ou seja, um luxo fora de moda. Apesar de tudo, Ribamar abria
diariamente a loja”, pois dela dependia a sua futura projeção social. Juca das
Neves, “um dos ricos” que ficara pobre, à época da recessão, “envelheceu logo”,
“era um homem aniquilado”. “Naquele dia se vencia uma das letras que ele não
podia saldar. Por isso estava afundado na cama, à espera da morte”. “Mas
Ribamar apareceu no limiar da porta”, acenando-lhe com a possibilidade de
recuperação financeira e social.
Por mais que
me apegue à filosofia bachelardiana, para refletir e/ou teorizar sobre a endosmose
do segundo narrador rogeliano, levando o seu primeiro narrador à condição de
personagem ficcional sem poder narrativo, e, com isto, impelindo-o a interagir
com o recanto mais profundo de sua própria “casa onírica”, não posso deixar de
perceber que “este” mesmo narrador possui conhecimento histórico-político de
elevadíssimo nível. Assim, este parágrafo reflete, neste instante ficcional e
metafísico, um interessante momento paradoxal. Ao mesmo tempo em que o primeiro
narrador se transforma em importante personagem (de fora para dentro),
visitando os recantos íntimos da “casa onírica” do segundo, “este” segundo
narrador passa a desenvolver um novo “olhar de dentro para fora”, avaliando,
inclusive, a derrocada financeira de Maurice Samuel, o pilar da família paterna
do escritor, naquelas antigas fortificações amazonenses. Os anos de perdas
sócio-financeiras foram drásticos para a família Samuel, de origem judaico-francesa.
Os brilhos dos sobrenomes notáveis ─ quase todos estrangeiros ─ já não causavam
reverência à nova sociedade que estava surgindo, provinda das camadas
populares. Aquele fora o momento do seringueiro escravo, do retirante
nordestino que, durante anos, muito lutou pela vida, naqueles entrançamentos da
Floresta, “a ferir a árvore da borracha, a defumar o látex, a empilhar as pélas
de borracha, a ouvir aquele permanente ruído de gorgulho oleoso do
acotovelamento das águas escuras do Igarapé do Inferno”[i],
pois os poderosos seringalistas estavam acuados pelos novos rumos da política
monetária. Juca das Neves estava vivendo o seu tempo azarado de
bancarrota, mas, a ele estava destinado um anjo salvador. Foi aí que
Ribamar de Sousa apareceu “no limiar da porta”. O herdeiro de fato do “ontem
eterno” sócio-político, ou seja, o segundo narrador alter ego do
escritor, não poderia buscar para si a honraria de salvar o Armazém das
Novidades, e, por conseqüência, a Cidade. As entrópicas transformações
sócio-políticas contrárias às Leis Políticas anteriores, naquele momento,
determinavam as novas direções partidárias. Aquele era um instante de impasse
histórico, a privilegiar o oprimido em detrimento do opressor.
Ribamar não tinha aberto o Armazém
naquele dia. Já estava amasiado com alguém que você finalmente vê aparecer
nesta minha obra ─ Diana Dartigues. Mas ainda a deixarei em paz, por enquanto.
Diana era muito mais nova do que ele.
Fazia anos que ele trabalhava ali, quase sem nada
receber. Mas Ribamar aprendeu com espantosa velocidade e logo compreendeu a
situação da firma. Juca das Neves tinha sabido confiar nele ─ em parte porque
ele era único. Como sinal de amizade, deu-lhe um cômodo na parte superior da
casa, um aposento confortável, com duas janelas que se abriam para o jardim.[ii]
Ribamar já não era o mesmo. Elegante, bonito e bem
cuidado, tinha-se transformado no homem que você veio a conhecer já velho.
Andava com as melhores roupas, (...). Ribamar exibia-se numa coleção de paletós
caros, o H. J. inglês, camisas de seda de colarinho duro.[iii]
─ Diga-me, seu Juca: Quanto valem suas casas na Frei
José dos Inocentes?
─ Nada, meu filho ─ respondeu o velho, cansado. São casas velhas, hipotecadas...
Ribamar avançou sobre a cama
e sentou-se numa cadeira próxima. Acendeu um cigarro. Estava estranhamente
calmo. Estava estranhamente confiante. E
começou a falar.[iv]
A conversa foi demorada.
(...). Do que se depreendia da conversa, e se ficou sabendo, Ribamar ia
conseguir que as dívidas fossem adiadas, e ele, Ribamar, ia viajar no dia
seguinte até Transvaal, na Rua das Flores, que estava à venda, e ia ele,
Ribamar, fazer em pessoa uma proposta à Dona Conchita Del Carmen, e trazer as
mulheres de lá para a cidade de Manaus, para as casas da Frei José dos
Inocentes, onde iam ser instaladas. Em suma, Ribamar ia abrir o maior negócio
da história da crise amazonense e único rentável. Que ia prosperar dali em
diante, principalmente porque teriam o apoio da família Gonçalves da Cunha, do
Comendador Gabriel, então Governador, que daria a proteção policial, e Juca das
Neves se comprometia a saldar as dívidas quando o lugar estivesse funcionando a
contento.[v]
Ribamar
apareceu resguardado pelo poder ficcional do segundo narrador. Este segundo,
como representante legal do antigo poder em decadência, como
representante daqueles que perderam o nome ilustre do passado
(sobrenome), não se viu no direito de, para si mesmo, reivindicar uma demanda
para um renovado poder sócio-político na Cidade de suas aspirações maiores, na
Cidade de seu inolvidável amor filial. A população, até aquele momento,
inferiorizada, menosprezada socialmente e politicamente, começava a reagir
contra os abusos do antigo poder dos tiranos magnatas, naquele agonizante
momento de impasse político. A criativa saída ficcional do escritor de O
Amante das Amazonas, sem dúvida, um escritor de origem abastada (neto de
Maurice Samuel, aquele magnata amazonense de origem judaico-francesa que perdeu
tudo, à época da recessão, da crise), possuidor de interativa consciência
literária, mas, felizmente, não-vigiada, foi delegar tal
função ao seu primeiro narrador, o Ribamar (d’Aguirre) de Sousa, o
representante do povo.
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