terça-feira, 11 de março de 2014

Neuza Machado: Esplendor e decadência do império amazônico

Neuza Machado: Esplendor e decadência do império amazônico
 
Sobre o romance O amante das amazonas de Rogel Samuel
 
Ribamar de Sousa: O Ficcional Personagem-Representante do Capitalismo Decadente da Cidade de Manaus
 
 
 
“Era impossível salvar o Armazém das Novidades do qual só restavam móveis velhos, ou seja, um luxo fora de moda. Apesar de tudo, Ribamar abria diariamente a loja”, pois dela dependia a sua futura projeção social. Juca das Neves, “um dos ricos” que ficara pobre, à época da recessão, “envelheceu logo”, “era um homem aniquilado”. “Naquele dia se vencia uma das letras que ele não podia saldar. Por isso estava afundado na cama, à espera da morte”. “Mas Ribamar apareceu no limiar da porta”, acenando-lhe com a possibilidade de recuperação financeira e social.
Por mais que me apegue à filosofia bachelardiana, para refletir e/ou teorizar sobre a endosmose do segundo narrador rogeliano, levando o seu primeiro narrador à condição de personagem ficcional sem poder narrativo, e, com isto, impelindo-o a interagir com o recanto mais profundo de sua própria “casa onírica”, não posso deixar de perceber que “este” mesmo narrador possui conhecimento histórico-político de elevadíssimo nível. Assim, este parágrafo reflete, neste instante ficcional e metafísico, um interessante momento paradoxal. Ao mesmo tempo em que o primeiro narrador se transforma em importante personagem (de fora para dentro), visitando os recantos íntimos da “casa onírica” do segundo, “este” segundo narrador passa a desenvolver um novo “olhar de dentro para fora”, avaliando, inclusive, a derrocada financeira de Maurice Samuel, o pilar da família paterna do escritor, naquelas antigas fortificações amazonenses. Os anos de perdas sócio-financeiras foram drásticos para a família Samuel, de origem judaico-francesa. Os brilhos dos sobrenomes notáveis ─ quase todos estrangeiros ─ já não causavam reverência à nova sociedade que estava surgindo, provinda das camadas populares. Aquele fora o momento do seringueiro escravo, do retirante nordestino que, durante anos, muito lutou pela vida, naqueles entrançamentos da Floresta, “a ferir a árvore da borracha, a defumar o látex, a empilhar as pélas de borracha, a ouvir aquele permanente ruído de gorgulho oleoso do acotovelamento das águas escuras do Igarapé do Inferno”[i], pois os poderosos seringalistas estavam acuados pelos novos rumos da política monetária. Juca das Neves estava vivendo o seu tempo azarado de bancarrota, mas, a ele estava destinado um anjo salvador. Foi aí que Ribamar de Sousa apareceu “no limiar da porta”. O herdeiro de fato do “ontem eterno” sócio-político, ou seja, o segundo narrador alter ego do escritor, não poderia buscar para si a honraria de salvar o Armazém das Novidades, e, por conseqüência, a Cidade. As entrópicas transformações sócio-políticas contrárias às Leis Políticas anteriores, naquele momento, determinavam as novas direções partidárias. Aquele era um instante de impasse histórico, a privilegiar o oprimido em detrimento do opressor.
               
Ribamar não tinha aberto o Armazém naquele dia. Já estava amasiado com alguém que você finalmente vê aparecer nesta minha obra ─ Diana Dartigues. Mas ainda a deixarei em paz, por enquanto. Diana era muito mais nova do que ele.
 
                Fazia anos que ele trabalhava ali, quase sem nada receber. Mas Ribamar aprendeu com espantosa velocidade e logo compreendeu a situação da firma. Juca das Neves tinha sabido confiar nele ─ em parte porque ele era único. Como sinal de amizade, deu-lhe um cômodo na parte superior da casa, um aposento confortável, com duas janelas que se abriam para o jardim.[ii]
 
Ribamar já não era o mesmo. Elegante, bonito e bem cuidado, tinha-se transformado no homem que você veio a conhecer já velho. Andava com as melhores roupas, (...). Ribamar exibia-se numa coleção de paletós caros, o H. J. inglês, camisas de seda de colarinho duro.[iii]
 
─ Diga-me, seu Juca: Quanto valem suas casas na Frei José dos Inocentes?
 
                Nada, meu filhorespondeu o velho, cansado. São casas velhas, hipotecadas...
 
Ribamar avançou sobre a cama e sentou-se numa cadeira próxima. Acendeu um cigarro. Estava estranhamente calmo. Estava estranhamente confiante. E
começou a falar.[iv]
 
A conversa foi demorada. (...). Do que se depreendia da conversa, e se ficou sabendo, Ribamar ia conseguir que as dívidas fossem adiadas, e ele, Ribamar, ia viajar no dia seguinte até Transvaal, na Rua das Flores, que estava à venda, e ia ele, Ribamar, fazer em pessoa uma proposta à Dona Conchita Del Carmen, e trazer as mulheres de lá para a cidade de Manaus, para as casas da Frei José dos Inocentes, onde iam ser instaladas. Em suma, Ribamar ia abrir o maior negócio da história da crise amazonense e único rentável. Que ia prosperar dali em diante, principalmente porque teriam o apoio da família Gonçalves da Cunha, do Comendador Gabriel, então Governador, que daria a proteção policial, e Juca das Neves se comprometia a saldar as dívidas quando o lugar estivesse funcionando a contento.[v]
 
Ribamar apareceu resguardado pelo poder ficcional do segundo narrador. Este segundo, como representante legal do antigo poder em decadência, como representante daqueles que perderam o nome ilustre do passado (sobrenome), não se viu no direito de, para si mesmo, reivindicar uma demanda para um renovado poder sócio-político na Cidade de suas aspirações maiores, na Cidade de seu inolvidável amor filial. A população, até aquele momento, inferiorizada, menosprezada socialmente e politicamente, começava a reagir contra os abusos do antigo poder dos tiranos magnatas, naquele agonizante momento de impasse político. A criativa saída ficcional do escritor de O Amante das Amazonas, sem dúvida, um escritor de origem abastada (neto de Maurice Samuel, aquele magnata amazonense de origem judaico-francesa que perdeu tudo, à época da recessão, da crise), possuidor de interativa consciência literária, mas, felizmente, não-vigiada, foi delegar tal função ao seu primeiro narrador, o Ribamar (d’Aguirre) de Sousa, o representante do povo.


[i] Idem: 15.
[ii] Idem: 140 - 141.
[iii] Idem: 141.
[iv] Ibidem.
[v] Idem: 142.

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