terça-feira, 25 de março de 2014

Neuza Machado: O que deixou sem fazer

Neuza Machado: O que deixou sem fazer
 
[Neuza Machado faleceu sem terminar sua obra. Aqui estão alguns pontos que ainda ia analisar]
 
 
Esplendor e decadência do império amazônico
 
Sobre o romance O amante das amazonas de Rogel Samuel
 
 

XIII – Retrospectiva: Do Palácio do Seringal Manixi a Manaus

 

Pierre Bataillon X Frei Lothar: Música e lirismo no Manixi

 
Eu não sou. Sou de outra época. Sou do tempo de um capitalismo primitivo, arcaico, luxuoso, feito tricotado em ouro e pedras preciosas, de um outro modo, daquele tempo em que o Palácio era a imagem em busca de sua natureza profunda. Ali se dispunha de uma sala de música onde se ouvia principalmente Beethoven, de um piano Pleyel, a vitrine onde Pierre Bataillon ostentava sua coleção de violinos (...), as gravuras representando Viotti, Baillot, David, Kreuzer, Vieuxtemps, Joachim; a máscara mortuária de Beethoven, laureado em bronze, de Stiasny. A Biblioteca, em que alguém uma noite leu em voz alta versos de Lamartine. E salas e salas se interrogando para quê, salões e galerias e cômodos se intercomunicando por portas sucessivas que se abriam em galerias e corredores restritos, que se fechavam em si mesmos, ao som do piano de Pierre Bataillon dialogando com o violino de Frei Lothar uma sonata Mozart, como alguém que se concentra em si mesmo, de um poder mortal, ágil e terrível que se expressava nas paredes de estuque pintado, por irisações de um ouro esverdeado e escuro, na entrançadura de seus ritmos de galhadas e folhagens, de uma vegetação alucinada e japonesa que subia por aquelas formas pelo teto multirefletido nos bisotados espelhos de cristal, e nas flores dos lustres de modo a evocar a lembrança de exótico prazer. Sim, sou um velho de um outro século, e ali vivi, observando, aprendendo e comendo durante o longo daqueles anos todos, no círculo e em torno daquela povoação de objetos e móveis antigos, que descreviam monstros consumidores: como na cômoda veneziana a visão da atividade sexualizada da imagem; no armário de Boulle cenas de caça com javalis do consumo e cães mastigando sangrentas aves abatidas a tiros pelo Duque de Chartres e outros cavaleiros fidalgos na idiotia de vistosas calças vermelhas e botas pretas; no silêncio rigoroso do gabinete inglês, na dinâmica, na morfologia prostituta do divã de Delanois; na unidade e variante elíptica do canapé ─ e nos cipós, íris, cardos, insetos estilizados, poliformes, incorporando-se aos móveis e às linhas dos painéis franceses num delírio neo-rococó como não quis a natureza: estátuas sobre lambrequins, rocalhas e rosáceas ecléticas, urnas nas cimalhas dos balcões simbolizando a energia, a ontologia e o desejo do capitalismo de tudo consumir, de tudo gastar, de tudo produzir, de tudo poupar e de tudo faltar e apropriar-se, transbordando e abortando na loucura, na miséria e na morte.[i]  (p. 19)
 
Esgarçados sobre o tapete, brincam bordados com as sombras e luzes que saem da porta. Reverberações de luzes na lâmina do espelho, foco de velas nos castiçais de ferro e círios que cantam um momento lírico. Quando o coronel toca, elas parecem dançar. As lembranças familiares me levam num aporte imaginativo. (p.76)
 


[i] Idem: 19.

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