segunda-feira, 17 de março de 2014
NEUZA MACHADO: O FOGO DA LABAREDA DA SERPENTE
NEUZA MACHADO: O FOGO DA LABAREDA DA SERPENTE
SOBRE O AMANTE DAS AMAZONAS DE ROGEL SAMUEL
Em seu “sonho de origem” (proximidade do arcabouço mítico, orientado, em um plano superior, pelo bugre Paxiúba), o primeiro narrador, secundado interlinearmente pelo segundo, percorre a “correnteza negra” (amorfa) da intuição fértil, “extasiado e sem pensar, com as estrelas” , submetido ao próprio ser estrelado (corpo estrelado) daquele que é o plenipotenciário do ato de narrar. Nesse momento, o que está em pauta é o presente mítico do narrador principal, suas “horas noturnas” sublimadas (engrandecidas), suas “muitas horas entre sombras”, seus “segredos e lágrimas” se dissolvendo em meio às próprias angústias imponderáveis. Entretanto, esta matéria de sonho (ar) terá de ser temporariamente ativada pela magia do fogo revigorante (um fogo mítico extraordinário), para iluminar os gaseificados instantes (“raros instantes”) do “espaço adormecido” do criador ficcional pós-moderno. Para que o narrador Ribamar não se perdesse “em confusas lembranças “de uma noite estrelada, com segredos e lágrimas se dissolvendo”, a matéria ígnea (o fogo) foi ativada, para imolar “os parentes”, em benefício do comparecimento do bugre Paxiúba.
Da página trinta e sete a quarenta e sete, o conhecimento do arcabouço mítico amazonense - indígena - se iluminará em favor do segundo narrador, o qual, sonhadoramente, como explica Bachelard, buscará as mil lembranças de seu passado. Nas páginas do romance, estão todas as gravuras, existenciais e/ou míticas que marcaram a íntima solidão reflexiva. “O verdadeiro espaço do trabalho solitário é dentro de um quarto pequeno, no círculo iluminado pela lâmpada” , afirma Gaston Bachelard.
Esta incomum criação ficcional, distintamente, no instante do impasse narrativo, necessitou do auxílio do elemento fogo, principalmente do fogo mítico em sua forma destrutiva, para que, posteriormente, auxiliada pelo elemento água, pudesse realçar a imagem de uma Amazônia lendária e selvagem (feminina e masculina), ameaçada de extinção por obra e graça do poder do capitalismo selvagem. O fogo que iluminou o cogito reflexivo do segundo narrador não esmoreceu e nem se ateou de mais. Foi contemplado numa hora de ociosidade [ociosidade = repouso ativado] em toda a sua vivacidade e brilho para que o mesmo, a partir da página 48, pudesse revelar aos pósteros os grandiosos, inacreditáveis, e, posteriormente, extintos segredos capitalistas do Manixi.
De qualquer forma, a partir do incêndio transformador, a água será o elemento de condução criadora da narrativa ficcional rogeliana, substância esta já anunciada (no primeiro capítulo) como imprescindível para o desenrolar do relato. Depois do “fogo da labareda da serpente” - uma indicação de que o plano mítico se avizinhava/avizinha-se -, o narrador Ribamar de Sousa [mergulhou] “na invisível água do igarapé de treva fria e rápida, e [foi] levado e [se afastou] dali”. “Uma correnteza negra” [o abraçou, o envolveu, o levou]. O fogo, segundo Paul Valéry (citação de Bachelard), “é um agente essencial”, mas “de precisão temível” cujo “efeito maravilhoso é limitado” . Portanto, referendando a fase de transição para o plano mítico-ficcional, a consciência singular do segundo narrador, conhecedor das limitações ígneas, exige a distinção de uma substância que possa se tornar também propulsora de “surpresas de muitos outros ocorridos” .
Nesse impasse narrativo, há a incomum “aproximação” do fogo com a água, enquanto elementos naturais da extensão geográfica amazonense. Para tanto, para explicitar o repouso ativado (o sonho) e a necessidade de um interregno estimulante (representado pelo arcabouço mítico-ficcional da heroicidade ativada do bugre Paxiúba), a água se tornou/se torna “uma correnteza negra”, indício de que as lembranças dos caudalosos rios amazonenses, no momento, são “um convite à morte” (morte mítica), como explica Gaston Bachelard, em seu livro A Água e os Sonhos . As lembranças não são alentadoras ao narrador, são pesarosas. A “correnteza” aquática, cogitativa, ainda não se desprendeu dos “rolos negros da fumaça” do pensamento interativo, operador de incêndios literários grandiosos. O criador ficcional (tão somente ele, apesar de Roland Barthes, o da primeira fase estruturalista, continuar, fantasmagoricamente, a contaminar-me com a sua assertiva: o narrador é um personagem como outro qualquer, não se deve confundir o autor com o narrador) se encontra às voltas com a “dipsomania (impulso mórbido) da morte” .
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