sexta-feira, 21 de março de 2014

Os Relógios

Os Relógios

Rogel Samuel


Já, sim, a leitora o leitor já possuiu um daqueles relógios pequeninos, de pulso, quadrados, como para o tempo ali enquadrar no seu abraço de aço? Eu já. Vários. O primeiro, dourado. Dei à Stella. Que o usou até a vista ficar cansada, e as horas não ver. O segundo, com o Alfa e o Ômega, simples mas belo relógio de corda. O terceiro, um miúdo Mido, fino e lindo, presente de estima, está com minha amiga Jessuma, trocada a pulseira por uma coisa viva e animal. Todos eu os usava no curtir das horas. Sim, não chamava o tempo a vida o mínimo respeito. Como porém belo e charmoso este meu novo relógio, comprado a um camelô de Manaus, antes de retornar ao meu Rio de Janeiro. Porque custou pouco não o amo menos. O tampo, de cristal lapidado como as vidraças do Teatro Amazonas. Brilha. O fundo mostrador verde musgo, vêm da curva descendente que sai do verde-escuro para o verde-cré até a fímbria da saia de aço da sua fria lâmina de rio Amazonas, degradée, como o fundo do mar de nós mesmos. A pulseira de aço e «ouro», se distribui no corpo do braço como uma face, uma pele. Não, nem tem marca, mas corruptela disto. Inverte duas letras. Nele vejo o solo verde do meu amor em suas medidas e cores, o seu termo de sala aberta. Quero crer que sua força exibe o nosso tempo online, pós-industrial. O mapa da História jogado no chão da certeza dessa placa sulcada, elevada, no limite de seus giros de ponteiros, dia e noite, como em Cole Porter. Mas não bate. É construção silenciosa, marca o passo do compasso da espera da morte. Não. Nele, no Mostrador, vejo anunciado o termo final, o tempo que se esgota, que se estreita, que se exígua, que se míngua, que se encurta, que de repente se despeja como lixo no fundo de um hotel de luxo se despeja nos galões do beco imundo, sepulcral, onde mendigos batem os dentes, de frio e fome. O risco final da estrada, o próximo futuro terminal do encerrar-se no jardim feito de passagens vividas, deslocadas, em passo passado. Ouço sua voz silenciosa. Ouço. Vítrea lâmina de aço. Se esquece. Sabe vozes que se foram. Extintos perfumes, talvez você conheça aqueles relógios de plásticos, os sonoros limites que emitem os sons, seus cantos de morte, pois cada relógio anuncia a morte, cada tic-tac apressado põe a vida em marcha-ré, na diminuição, trêmulo esquecimento que os relógios comem como ratos o tempo roedores, e sabem come-los, esses monstros de corda e de bateria do passado, caixinhas de música funestas, quatros ornatos mortos, ponteiros de punhal do vento, beirais do nada enigmáticos, invenção de vultos, quermesse da conclusão, carril de finado.

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