Os Relógios
Rogel Samuel
Já, sim, a leitora o leitor já possuiu um daqueles relógios
pequeninos, de pulso, quadrados, como para o tempo ali enquadrar no seu
abraço de aço? Eu já. Vários. O primeiro, dourado. Dei à Stella. Que o
usou até a vista ficar cansada, e as horas não ver. O segundo, com o
Alfa e o Ômega, simples mas belo relógio de corda. O terceiro, um miúdo
Mido, fino e lindo, presente de estima, está com minha amiga Jessuma,
trocada a pulseira por uma coisa viva e animal. Todos eu os usava no
curtir das horas. Sim, não chamava o tempo a vida o mínimo respeito.
Como porém belo e charmoso este meu novo relógio, comprado a um camelô
de Manaus, antes de retornar ao meu Rio de Janeiro. Porque custou pouco
não o amo menos. O tampo, de cristal lapidado como as vidraças do Teatro
Amazonas. Brilha. O fundo mostrador verde musgo, vêm da curva
descendente que sai do verde-escuro para o verde-cré até a fímbria da
saia de aço da sua fria lâmina de rio Amazonas, degradée, como o fundo
do mar de nós mesmos. A pulseira de aço e «ouro», se distribui no corpo
do braço como uma face, uma pele. Não, nem tem marca, mas corruptela
disto. Inverte duas letras. Nele vejo o solo verde do meu amor em suas
medidas e cores, o seu termo de sala aberta. Quero crer que sua força
exibe o nosso tempo online, pós-industrial. O mapa da História jogado no
chão da certeza dessa placa sulcada, elevada, no limite de seus giros
de ponteiros, dia e noite, como em Cole Porter. Mas não bate. É
construção silenciosa, marca o passo do compasso da espera da morte.
Não. Nele, no Mostrador, vejo anunciado o termo final, o tempo que se
esgota, que se estreita, que se exígua, que se míngua, que se encurta,
que de repente se despeja como lixo no fundo de um hotel de luxo se
despeja nos galões do beco imundo, sepulcral, onde mendigos batem os
dentes, de frio e fome. O risco final da estrada, o próximo futuro
terminal do encerrar-se no jardim feito de passagens vividas,
deslocadas, em passo passado. Ouço sua voz silenciosa. Ouço. Vítrea
lâmina de aço. Se esquece. Sabe vozes que se foram. Extintos perfumes,
talvez você conheça aqueles relógios de plásticos, os sonoros limites
que emitem os sons, seus cantos de morte, pois cada relógio anuncia a
morte, cada tic-tac apressado põe a vida em marcha-ré, na diminuição,
trêmulo esquecimento que os relógios comem como ratos o tempo roedores, e
sabem come-los, esses monstros de corda e de bateria do passado,
caixinhas de música funestas, quatros ornatos mortos, ponteiros de
punhal do vento, beirais do nada enigmáticos, invenção de vultos,
quermesse da conclusão, carril de finado.
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