Neuza
Machado: Esplendor e decadência do império amazônico
Sobre
o romance O amante das amazonas de
Rogel Samuel
Ribamar de Sousa: O Ficcional Personagem-Representante do
Capitalismo Decadente da Cidade de Manaus
Oh, ruturas
rogelianas! Dona Mariazinha de Abreu e Souza (a dona da casa primordial
ficcional, “o bem da família” materna Abreu e Souza), certamente, é uma Grande
Mãe inesquecível, proprietária também de uma casa inesquecível
às lembranças e recordações de quem narra (“tinha sempre muito que fazer
naquela casa”). D. Mariazinha de Abreu ─ provavelmente, um símbolo da casa
materna do escritor ─ é uma das inúmeras vozes narrativas que, nesta terceira
fase do romance, colaboraram com o narrador principal, incluindo evidentemente
a já assinalada Sabá Vintém, a manicure, aquela que “sabia de todos os
escândalos da cidade, da vida íntima de todas as famílias” do lugar. Na casa
inesquecível do escritor amazonense Rogel Samuel, com seus personagens e
recantos secretos, como diria Gaston Bachelard, com toda a certeza,
D. Mariazinha de Abreu ocupava/ocupou lugar de destaque no coração de quem
narra. Repenso, reforçando o já anteriormente mencionado, que D. Mariazinha de
Abreu personificou a recriação ficcional da muito venerada e amada avó materna
do escritor.
O mundo real apaga-se de uma
só vez, quando se vai viver na casa da lembrança. De que valem as casas da rua
quando se evoca a casa natal, a casa de intimidade absoluta, a casa onde se
adquiriu o sentido da intimidade? Essa casa está distante, está perdida, não a
habitamos mais, temos certeza, infelizmente, de que nunca mais a habitaremos.
Então ela é mais do que uma lembrança. É uma casa de sonhos, a nossa casa
onírica. (...).
Sim, o que é mais real: a
própria casa onde se dorme ou a casa para onde se vai, dormindo, fielmente
sonhar? Eu não sonho em Paris, neste cubo geométrico, neste alvéolo de cimento,
neste quarto com venezianas de ferro tão hostis à matéria noturna. Quando os
sonhos me são propícios, vou para longe, numa casa na Champagne, ou nalgumas
casas onde se condensam os mistérios da felicidade.
Dentre todas as coisas
do passado, é talvez a casa que se evoca melhor, como diz Pierre Seghers [nota
de Bachelard: Pierre Seghers, Le domaine public, p. 70], a casa natal
“estar na voz”, com todas as vozes que se calaram: Um nome que o silêncio e
que as paredes me devolvem, / Uma casa para onde vou sozinho chamando, / Uma
estranha casa que está em minha voz.[i]
Quando o sonho se apodera
assim de nós, temos a impressão de habitar uma imagem. (...) o tempo
passa de um lado e de outro, deixando imóvel esta ilhota da lembrança. O
onirismo arraigado assim localiza de algum modo o sonhador. (...).
Quando se sabe dar a todas
as coisas o seu peso justo de sonhos, habitar oniricamente
é mais do que habitar pela lembrança. A casa onírica é um tema mais profundo
que a casa natal. Corresponde a uma necessidade mais remota. Se a casa natal
põe em nós tais fundações, é porque
responde a inspirações inconscientes mais profundas ─ mais íntimas ─ que o
simples cuidado de proteção, que o primeiro calor conservado, que a primeira
luz protegida. A casa da lembrança, a casa natal, é construída sobre a
cripta da casa onírica. Na cripta encontra-se a raiz, o apego, a profundidade,
o mergulho dos sonhos. Nós nos “perdemos” nela. Há nela um infinito.[ii]
Bachelard
sonhou, em Paris, com uma casa da região vinícola de Champagne, sua sempre
indelével terra natal. O escritor João Guimarães Rosa, nascido em Cordisburgo e
cidadão do mundo, sonhou com o Sertão de Minas Gerais, sua inesquecível casa
onírica. Juan Carlos Onetti criou uma entrópica cidade, Santa Maria, para
representar os problemas citadinos de seu país, o Uruguai, a sua indiscutível
“casa onírica”. Rogel Samuel sonhou e sonha no Rio de Janeiro e em suas viagens
pelo mundo com os monumentais Palácios da Era da Borracha (recriou-os
ficcionalmente por intermédio do Palácio Manixi) e com as casas de sua infância
e adolescência, onde se condensaram/condensam os mistérios de uma antiga
felicidade”. A casa de D. Mariazinha de Abreu é mais do que a casa
natal do escritor Rogel Samuel, é representante da Cidade amada, Manaus,
sua casa onírica, a casa dos sonhos felizes (por vezes,
infelizes), “onde se condensam os mistérios da felicidade” (também, os
mistérios dos momentos infaustos). Esta “casa onírica” rogeliana, se revela por
intermédio de “inspirações inconscientes profundas”, originárias do convívio
infanto-juvenil com uma avó materna especialíssima, extremamente idolatrada, e,
ao mesmo tempo, com uma externa realidade patriarcal angustiante. “O onirismo
arraigado assim localiza de algum modo o sonhador”, e este sonhador não poderá
se revelar apenas como um narrador, que, ao longo da
narrativa, se posiciona simplesmente como um personagem como outro qualquer
(Roland Barthes). Este segundo narrador, não, não será jamais um personagem
como outro qualquer. Ele é o porta-voz da consciência interativa
do escritor Rogel Samuel. No capítulo ONZE: RIBAMAR, o mundo real e o mundo mítico se desvanecem para
cederem o lugar à inesquecível casa onírica deste escritor amazonense
aqui reverenciado, e esta casa e sua proprietária D. Mariazinha de Abreu,
ternamente evocada, foram um poderoso alicerce na posterior realidade íntima
e/ou intelectualizada do escritor. Por tais razões, assinalo o romance O
Amante das Amazonas como um enérgico retorno à terra natal, ou uma retomada
dos antigos valores da terra natal.
Pode-se
encontrar a mesma direção para os valores inconscientes em imagens da volta à
terra natal. A própria noção de viagem tem um outro sentido se lhe
acrescentamos a noção complementar de volta à terra natal. Courbet espantava-se
da instabilidade de um viajante: “Ele vai ao Oriente. Ao Oriente! Então ele não
tem terra natal?”
A volta à
terra natal, o regresso à casa natal, com todo o onirismo que o dinamiza, foi
caracterizado pela psicanálise clássica como uma volta à mãe. (...).
Seria interessante apreender bem todas as imagens do regaço materno e
examinar o pormenor de substituição das imagens. Veríamos então que a casa tem
seus próprios símbolos, e se devolvêssemos toda a simbólica diferenciada do
porão, do sótão, da cozinha, dos corredores, do depósito de lenha...,
perceberíamos a autonomia dos diferentes símbolos, veríamos que a casa constrói
ativamente seus valores, que reúne valores inconscientes. O próprio
inconsciente tem uma arquitetura de sua predileção.[iii]
Para mostrar
a decadência da Cidade amada e provar que os “ratos” do capitalismo selvagem a
invadiram, a corroeram, levando-a ao isolamento, à falência, tornou-se
necessário, ao segundo narrador, apresentar, aos leitores, primeiramente, a
formosura de sua Grande Mãe, a principal habitante, e só posteriormente a
beleza de seu lugar de origem. Não havia/há limites geográficos para a situação
desta casa materna (“morava na Rua Barroso, numa casa cujos fundos davam
para o Igarapé do Aterro”), porque a casa, da Rua Barroso, era ampla e bem
arrumada (para conservá-la, sua proprietária contava com “uma legião de
empregadas”), portanto, é representativa do local da casa primordial
e de todas as ruas da amada Manaus. Os fundos da casa “dava para o Igarapé do
Aterro”, um símbolo de projeção social, já que foi nomeado pelo ficcionista.
Certamente, o local do Igarapé do Aterro, à época, não era simplesmente um
lugar comum. “Para os valores inconscientes em imagens da volta à terra natal”,
no mencionado Igarapé se concentram todos os outros que se entrelaçam pela
cidade de Manaus.
Mãe e casa,
eis os dois arquétipos (...). Seria muito simples se o maior dos dois
arquétipos, se o maior de todos os arquétipos, a Mãe, apagasse a vida de
todos os outros. No trajeto que nos leva de volta às origens, há primeiramente
o caminho que nos restitui à infância, à nossa infância sonhadora que desejava
imagens, que desejava símbolos para duplicar a realidade. A realidade materna
foi multiplicada imediatamente por todas as imagens de intimidade. A poesia da
casa retoma esse trabalho, reanima intimidades e recobra a grande segurança de
uma filosofia do repouso.[iv]
A prosa
ficcional de Rogel Samuel, repleta de matéria lírica (atenção: “matéria”
lírica, não pertence ao Gênero Lírico), reanimou intimidades e
recobrou a grande segurança da continuidade narrativa. Desse modo, pelo meu
ponto de vista, acrescido das informações filosóficas bachelardianas, a partir
da casa de D. Mariazinha (símbolo da avó-mãe querida) se dilatou/se dilata todo
o amor do ficcionista por sua cidade natal (a Cidade natal do sensibilíssimo
escritor-“amante das amazonas”). Para recuperar ficcionalmente a chave e
penetrar no recinto sagrado da Cidade de suas origens (infelizmente, já em
decadência), o ficcionista obrigou-se a pedir licença ao arquétipo maior de sua
infância e adolescência, sua Grande Mãe. E sua Mãe amada reinava na Cidade
amada. (“Era a senhora mais fina, mais elegante e mais bonita da época, sim,
que é assim mesmo, conforme o digo, este narrador”). Para falar ficcionalmente
com o ícone venerado, o seu outro eu, o Ribamar de Sousa, tirou o
chapéu, em sinal de respeito ao símbolo maior da anterior duração. Para
retornar à verdadeira “casa onírica” do passado, a Cidade de Manaus (há muito,
a Casa/Cidade estava fechada para ele), o ficcionista manauara primeiramente
buscou a vital proteção de uma imagem materna. Por um momento, a belíssima
aparição do arquétipo maior quase apagou a vida dos outros personagens.
Foi por um triz.
Nenhum comentário:
Postar um comentário