domingo, 2 de março de 2014

Neuza Machado: Esplendor e decadência do império amazônico

Neuza Machado: Esplendor e decadência do império amazônico
 
Sobre o romance O amante das amazonas de Rogel Samuel
 
Ribamar de Sousa: O Ficcional Personagem-Representante do Capitalismo Decadente da Cidade de Manaus
 
 
 
 
Oh, ruturas rogelianas! Dona Mariazinha de Abreu e Souza (a dona da casa primordial ficcional, “o bem da família” materna Abreu e Souza), certamente, é uma Grande Mãe inesquecível, proprietária também de uma casa inesquecível às lembranças e recordações de quem narra (“tinha sempre muito que fazer naquela casa”). D. Mariazinha de Abreu ─ provavelmente, um símbolo da casa materna do escritor ─ é uma das inúmeras vozes narrativas que, nesta terceira fase do romance, colaboraram com o narrador principal, incluindo evidentemente a já assinalada Sabá Vintém, a manicure, aquela que “sabia de todos os escândalos da cidade, da vida íntima de todas as famílias” do lugar. Na casa inesquecível do escritor amazonense Rogel Samuel, com seus personagens e recantos secretos, como diria Gaston Bachelard, com toda a certeza, D. Mariazinha de Abreu ocupava/ocupou lugar de destaque no coração de quem narra. Repenso, reforçando o já anteriormente mencionado, que D. Mariazinha de Abreu personificou a recriação ficcional da muito venerada e amada avó materna do escritor.
 
O mundo real apaga-se de uma só vez, quando se vai viver na casa da lembrança. De que valem as casas da rua quando se evoca a casa natal, a casa de intimidade absoluta, a casa onde se adquiriu o sentido da intimidade? Essa casa está distante, está perdida, não a habitamos mais, temos certeza, infelizmente, de que nunca mais a habitaremos. Então ela é mais do que uma lembrança. É uma casa de sonhos, a nossa casa onírica. (...).
 
Sim, o que é mais real: a própria casa onde se dorme ou a casa para onde se vai, dormindo, fielmente sonhar? Eu não sonho em Paris, neste cubo geométrico, neste alvéolo de cimento, neste quarto com venezianas de ferro tão hostis à matéria noturna. Quando os sonhos me são propícios, vou para longe, numa casa na Champagne, ou nalgumas casas onde se condensam os mistérios da felicidade.
 
Dentre todas as coisas do passado, é talvez a casa que se evoca melhor, como diz Pierre Seghers [nota de Bachelard: Pierre Seghers, Le domaine public, p. 70], a casa natal “estar na voz”, com todas as vozes que se calaram: Um nome que o silêncio e que as paredes me devolvem, / Uma casa para onde vou sozinho chamando, / Uma estranha casa que está em minha voz.[i]
 
Quando o sonho se apodera assim de nós, temos a impressão de habitar uma imagem. (...) o tempo passa de um lado e de outro, deixando imóvel esta ilhota da lembrança. O onirismo arraigado assim localiza de algum modo o sonhador. (...).
 
Quando se sabe dar a todas as coisas o seu peso justo de sonhos, habitar oniricamente é mais do que habitar pela lembrança. A casa onírica é um tema mais profundo que a casa natal. Corresponde a uma necessidade mais remota. Se a casa natal põe em nós tais fundações, é  porque responde a inspirações inconscientes mais profundas ─ mais íntimas ─ que o simples cuidado de proteção, que o primeiro calor conservado, que a primeira luz protegida. A casa da lembrança, a casa natal, é construída sobre a cripta da casa onírica. Na cripta encontra-se a raiz, o apego, a profundidade, o mergulho dos sonhos. Nós nos “perdemos” nela. Há nela um infinito.[ii]
 
Bachelard sonhou, em Paris, com uma casa da região vinícola de Champagne, sua sempre indelével terra natal. O escritor João Guimarães Rosa, nascido em Cordisburgo e cidadão do mundo, sonhou com o Sertão de Minas Gerais, sua inesquecível casa onírica. Juan Carlos Onetti criou uma entrópica cidade, Santa Maria, para representar os problemas citadinos de seu país, o Uruguai, a sua indiscutível “casa onírica”. Rogel Samuel sonhou e sonha no Rio de Janeiro e em suas viagens pelo mundo com os monumentais Palácios da Era da Borracha (recriou-os ficcionalmente por intermédio do Palácio Manixi) e com as casas de sua infância e adolescência, onde se condensaram/condensam os mistérios de uma antiga felicidade”. A casa de D. Mariazinha de Abreu é mais do que a casa natal do escritor Rogel Samuel, é representante da Cidade amada, Manaus, sua casa onírica, a casa dos sonhos felizes (por vezes, infelizes), “onde se condensam os mistérios da felicidade” (também, os mistérios dos momentos infaustos). Esta “casa onírica” rogeliana, se revela por intermédio de “inspirações inconscientes profundas”, originárias do convívio infanto-juvenil com uma avó materna especialíssima, extremamente idolatrada, e, ao mesmo tempo, com uma externa realidade patriarcal angustiante. “O onirismo arraigado assim localiza de algum modo o sonhador”, e este sonhador não poderá se revelar apenas como um narrador, que, ao longo da narrativa, se posiciona simplesmente como um personagem como outro qualquer (Roland Barthes). Este segundo narrador, não, não será jamais um personagem como outro qualquer. Ele é o porta-voz da consciência interativa do escritor Rogel Samuel. No capítulo ONZE: RIBAMAR, o mundo real e o mundo mítico se desvanecem para cederem o lugar à inesquecível casa onírica deste escritor amazonense aqui reverenciado, e esta casa e sua proprietária D. Mariazinha de Abreu, ternamente evocada, foram um poderoso alicerce na posterior realidade íntima e/ou intelectualizada do escritor. Por tais razões, assinalo o romance O Amante das Amazonas como um enérgico retorno à terra natal, ou uma retomada dos antigos valores da terra natal.
 
Pode-se encontrar a mesma direção para os valores inconscientes em imagens da volta à terra natal. A própria noção de viagem tem um outro sentido se lhe acrescentamos a noção complementar de volta à terra natal. Courbet espantava-se da instabilidade de um viajante: “Ele vai ao Oriente. Ao Oriente! Então ele não tem terra natal?”
 
A volta à terra natal, o regresso à casa natal, com todo o onirismo que o dinamiza, foi caracterizado pela psicanálise clássica como uma volta à mãe. (...). Seria interessante apreender bem todas as imagens do regaço materno e examinar o pormenor de substituição das imagens. Veríamos então que a casa tem seus próprios símbolos, e se devolvêssemos toda a simbólica diferenciada do porão, do sótão, da cozinha, dos corredores, do depósito de lenha..., perceberíamos a autonomia dos diferentes símbolos, veríamos que a casa constrói ativamente seus valores, que reúne valores inconscientes. O próprio inconsciente tem uma arquitetura de sua predileção.[iii]
 
Para mostrar a decadência da Cidade amada e provar que os “ratos” do capitalismo selvagem a invadiram, a corroeram, levando-a ao isolamento, à falência, tornou-se necessário, ao segundo narrador, apresentar, aos leitores, primeiramente, a formosura de sua Grande Mãe, a principal habitante, e só posteriormente a beleza de seu lugar de origem. Não havia/há limites geográficos para a situação desta casa materna (“morava na Rua Barroso, numa casa cujos fundos davam para o Igarapé do Aterro”), porque a casa, da Rua Barroso, era ampla e bem arrumada (para conservá-la, sua proprietária contava com “uma legião de empregadas”), portanto, é representativa do local da casa primordial e de todas as ruas da amada Manaus. Os fundos da casa “dava para o Igarapé do Aterro”, um símbolo de projeção social, já que foi nomeado pelo ficcionista. Certamente, o local do Igarapé do Aterro, à época, não era simplesmente um lugar comum. “Para os valores inconscientes em imagens da volta à terra natal”, no mencionado Igarapé se concentram todos os outros que se entrelaçam pela cidade de Manaus.
 
Mãe e casa, eis os dois arquétipos (...). Seria muito simples se o maior dos dois arquétipos, se o maior de todos os arquétipos, a Mãe, apagasse a vida de todos os outros. No trajeto que nos leva de volta às origens, há primeiramente o caminho que nos restitui à infância, à nossa infância sonhadora que desejava imagens, que desejava símbolos para duplicar a realidade. A realidade materna foi multiplicada imediatamente por todas as imagens de intimidade. A poesia da casa retoma esse trabalho, reanima intimidades e recobra a grande segurança de uma filosofia do repouso.[iv]
 
A prosa ficcional de Rogel Samuel, repleta de matéria lírica (atenção: “matéria” lírica, não pertence ao Gênero Lírico), reanimou intimidades e recobrou a grande segurança da continuidade narrativa. Desse modo, pelo meu ponto de vista, acrescido das informações filosóficas bachelardianas, a partir da casa de D. Mariazinha (símbolo da avó-mãe querida) se dilatou/se dilata todo o amor do ficcionista por sua cidade natal (a Cidade natal do sensibilíssimo escritor-“amante das amazonas”). Para recuperar ficcionalmente a chave e penetrar no recinto sagrado da Cidade de suas origens (infelizmente, já em decadência), o ficcionista obrigou-se a pedir licença ao arquétipo maior de sua infância e adolescência, sua Grande Mãe. E sua Mãe amada reinava na Cidade amada. (“Era a senhora mais fina, mais elegante e mais bonita da época, sim, que é assim mesmo, conforme o digo, este narrador”). Para falar ficcionalmente com o ícone venerado, o seu outro eu, o Ribamar de Sousa, tirou o chapéu, em sinal de respeito ao símbolo maior da anterior duração. Para retornar à verdadeira “casa onírica” do passado, a Cidade de Manaus (há muito, a Casa/Cidade estava fechada para ele), o ficcionista manauara primeiramente buscou a vital proteção de uma imagem materna. Por um momento, a belíssima aparição do arquétipo maior quase apagou a vida dos outros personagens. Foi por um triz.


[i] Idem: 75 - 76.
[ii] Idem: 76 - 77.
[iii] Idem: 93 - 94.
[iv] Idem: 94.

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