Neuza
Machado: Esplendor e decadência do império amazônico
Sobre
o romance O amante das amazonas de
Rogel Samuel
Ribamar de Sousa: O Ficcional Personagem-Representante do
Capitalismo Decadente da Cidade de Manaus
A intimidade
da casa bem fechada, bem protegida, reclama naturalmente as intimidades
maiores, em particular a do regaço materno, e depois a do ventre materno. Na
ordem da imaginação, as pequenas imagens reclamam as grandes. Toda imagem é um aumentativo
psíquico; uma imagem amada, acarinhada, é um penhor de vida acrescida.
Se
prestássemos mais atenção às imagens incoativas, imagens certamente muito
ingênuas, que ilustram os primeiros valores, nos lembraríamos melhor de todos
aqueles cantos sombreados da grande morada onde nossa pessoa “lucífuga”
encontrava o seu centro de repouso, lembrança do repouso pré-natal. Mais
uma vez, vemos que o onirismo da casa necessita de uma pequena casa dentro da
grande para que recobremos as seguranças primárias da vida sem problemas. (...)
todos os lugares de repouso são maternais.[i]
É a Cidade de
Manaus, a verdadeira e inesquecível “habitação onírica” do segundo narrador de
Rogel de Souza Samuel, “a casa de intimidade absoluta, a casa onde [ele]
adquiriu o sentido da intimidade”. Por isto, todos os personagens do lugar têm
algo a narrar: a bibliotecária Estela de Sousa (Estela de Sousa Samuel, mãe do
escritor, com pouquíssimas palavras pós-modernas/pós-modernistas,
brilhantemente homenageada), a manicure Sabá Vintém (representante de todas as
manicures do lugar, aquelas que sabiamente sabem conviver com suas poderosas e
luxuosas clientes), o homossexual Fernandinho de Bará (o conhecedor dos pecadilhos
sexuais “daqueles burgueses cheios de culpa que [o] freqüentaram”[ii]),
e Benito Botelho, o maior intelectual de Manaus, o filho da cozinheira Isaura,
aquele que, algures, estará, à moda de detetive de novela policial, às voltas
com o sumiço de Zequinha Bataillon ─, ansioso por descobrir o mistério de seu
desaparecimento. Todavia, se houve cooperadores importantes, para o
desenvolvimento criativo do relato ficcional rogeliano, certamente, nesta
terceira parte do romance a colaboração da manicure negra Sebastiana Vintém
propaga-se como uma das mais relevantes.
Entretanto a manicure veio
cedo, que estava com a tarde toda tomada (afinal, não era seu dia). Sebastiana
─ Sabá Vintém, a manicure ─ era uma negra barbadiana conhecidíssima em Manaus,
servia a todas as senhoras da sociedade com seus trabalhos impecáveis ─ pintava
florezinhas nas unhas das senhoras, e coraçõezinhos nas moças. Sabá era mesmo
poderosa, graças a suas relações. Sabia de todos os escândalos da cidade, da
vida íntima de todas as famílias, e por isso Sabá Vintém era o porta-voz
municipal: amantes, abortos, gravidezes ocultas ─ tinha a maneira especial para
tudo descobrir pois discreta compunha fragmentos de conversas ouvidas em várias
casas, pedaços que ela costurava e armava, como um policial atento. Por isso se
tornava preciosa para as madames, que a custas de boas gorjetas faziam-na
falar, passando-se por boba, fazendo-se confidente de todas, sem se indispor
com nenhuma, a todas dando a entender que era a preferida, que só a ela
confidenciava o que sabia.
Os segredos
manauaras foram revelados ao segundo narrador, o alter ego do escritor Rogel
Samuel, com certeza, por intermédio da poderosa Sabá Vintém, “o
porta-voz municipal”. No entanto, em todas as Urbes do Orbe, há
muitos influentes porta-vozes municipais. Quem seria então a poderosa
Sebastiana Vintém, esta passageira habitante da casa onírica do
escritor Rogel Samuel? Generalizando, não seria ela o somatório de todas as mexeriqueiras
de qualquer parte do mundo dito social (portanto, uma personagem universal)?
Por qualquer motivo, só do conhecimento do escritor, a manicure tem a sua
importância no desenrolar narrativo, pois, além de demonstrar, por contraste, a
elevada posição social de D. Mariazinha, a sua presença ficcional permitiu a
exteriorização de dois essenciais ambientes da inolvidável “casa imaginária” de
Rogel Samuel: o interior (a principal casa da infância e adolescência) e
o exterior (a cidade de Manaus).
Sonhamos com
ela também como um desejo, como uma imagem que às vezes encontramos nos livros.
Ao invés de sonhar com o que foi, sonhamos com o que deveria ter sido, com o
que teria estabilizado para sempre nossos devaneios íntimos. (...).[iii]
É a este sonho
fundamental que chamamos de casa onírica.[iv]
Uma das provas
da realidade da casa imaginária é a confiança que tem um escritor de nos
interessar pela recordação de uma casa da própria infância. Basta um sinal que
atinja o fundo comum dos sonhos.[v]
Neste
terceiro momento do romance O Amante das Amazonas ─ narrativa
pós-moderna/pós-modernista de Segunda Geração ─, a casa onírica
do escritor necessitou do elemento terra acasalado à água e dos devaneios
do repouso aliados aos devaneios da vontade (ação) para se
manifestar e apresentar aos leitores todos os seus recantos até então
insondáveis. Quem seria melhor do que D. Mariazinha de Abreu para permitir a
abertura da porta da Cidade de Manaus ao ex-retirante nordestino Ribamar de
Sousa (ao primeiro alter ego telúrico do escritor), oferecendo-lhe a possibilidade
de galgar futuramente os degraus da consideração social (universal)? A porta
principal da Cidade estava ali, bem pertinho, “ao lado”. A casa dela, além de
ficar situada na Rua Barroso, certamente um endereço importante da Cidade, “os
fundos davam para o Igarapé do Aterro”, um sinal de que, por enquanto, o
elemento que irá comandar o relato é a terra (por intermédio do Igarapé
do Aterro), mas não uma terra firme, sólida, inquebrantável, mas sim uma terra
(elemento firme) acasalada à água (elemento fluido, desordenado, entrópico,
pós-moderno). A terra, como produtora de devaneios sócio-políticos, certamente
unida à água (matéria eleita pelo ficcionista), direcionará, futuramente, a
visão interativa do criativo sonhador mítico-ficcional das águas amazonenses.
Ao longo de sua ficção, ele necessitou de outros elementos além da terra e da
água, tais como o fogo e o ar, para demonstrar, a partir das questões propostas
e/ou intuídas, o seu incomum amor pela terra natal. Naturalmente, ainda verei,
em seus dinâmicos aspectos interativos, profundos, fundamentais, as
intromissões desses dois elementos alternadores ─ o fogo e o ar ─ até ao final
do relato.
Diante dos espetáculos do
fogo, da água, do céu, o devaneio que busca a substância nos aspectos
efêmeros não era de modo algum bloqueado pela realidade. Estávamos
verdadeiramente diante de um problema da imaginação; tratava-se
precisamente de sonhar numa substância profunda o fogo tão vivo e tão
colorido; tratava-se de imobilizar, diante de uma água fugidia, a substância
dessa fluidez; enfim, era preciso, diante de todos os conselhos de leveza que
nos dão as brisas e os vôos, imaginar em nós a própria substância da liberdade
aérea. Em suma, matérias sem dúvida reais, mas inconsistentes e móveis,
reclamavam ser imaginadas em profundidade, numa intimidade da substância e da
força. Mas com a substância da terra, a matéria traz tantas experiências
positivas, a forma é tão manifesta, tão evidente, tão real, que não se vê
claramente como se pode dar corpo a devaneios relativos à intimidade da
matéria. Como diz Baudelaire: “Quanto mais a matéria é, em aparência, positiva
e sólida, mais sutil e laborioso é o trabalho da imaginação”. [Nota de
Bachelard: Baudelaire, Curiosités esthétiques, p. 317].[vi]
Inicialmente
e rapidamente a terra do Estado de Pernambuco se fez presente no romance
O Amante das Amazonas: Ribamar saíra da povoação de Patos, Pernambuco,
“na madrugada do Natal de 1897”, levando na “mala de amarrado” apenas duas
mudas de roupa, “com um Cosmorama onde se avistavam as paisagens de Manaus,
Belém, Paris, Londres, Viena e São Petersburgo”[vii].
A palavra “madrugada”, no princípio da narrativa, assinala uma futura vida de
realizações e glórias; o “Cosmorama”, representativo de uma Saga do Universo
determinou o desejo de dilatação ficcional universal. Mas, houve a necessidade
de se escalar a Serra da Borborema (ainda o elemento terra obstaculizante) para
atingir a finalidade do relato, ou seja, para futuramente interagir com a profunda
materialidade aquática da terra natal e elevá-la ao panteón literário. Até
chegar a uma experiência ficcional positiva com a matéria eleita, tão
“inconsistente e móvel”, muitos foram os obstáculos. Para que, ao final do
relato, pudesse apresentar aos leitores as inconformadas decadências
histórico-sociais da extração da árvore da borracha e da Cidade amada, o
narrador rogeliano obrigou-se a uma interação profunda com as matérias
compostas de sua primitiva realidade. Todas “reclamavam ser imaginadas em
profundidade”, mas a matéria água exigiu um esforço maior. A “mala de amarrado”
do primeiro Ribamar, encharcada de água de chuva e de lágrimas do narrador,
transformou-se gradativamente em “mala de madeira”. Ao chegar em Manaus, o
Ribamar de Sousa já trazia uma “mala de madeira enrolada na mão”, porque já não
era um simples retirante, mas um Brabo Homem/(Personagem) da Floresta em
busca de colocação na Cidade de Manaus (o representante ficcional daquele que
saiu da Floresta para buscar colocação na Cidade Grande, no Mundo).
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