segunda-feira, 3 de março de 2014

Neuza Machado: Esplendor e decadência do império amazônico

Neuza Machado: Esplendor e decadência do império amazônico
 
Sobre o romance O amante das amazonas de Rogel Samuel
 
Ribamar de Sousa: O Ficcional Personagem-Representante do Capitalismo Decadente da Cidade de Manaus
 
 
 
 
 
A intimidade da casa bem fechada, bem protegida, reclama naturalmente as intimidades maiores, em particular a do regaço materno, e depois a do ventre materno. Na ordem da imaginação, as pequenas imagens reclamam as grandes. Toda imagem é um aumentativo psíquico; uma imagem amada, acarinhada, é um penhor de vida acrescida.
 
Se prestássemos mais atenção às imagens incoativas, imagens certamente muito ingênuas, que ilustram os primeiros valores, nos lembraríamos melhor de todos aqueles cantos sombreados da grande morada onde nossa pessoa “lucífuga” encontrava o seu centro de repouso, lembrança do repouso pré-natal. Mais uma vez, vemos que o onirismo da casa necessita de uma pequena casa dentro da grande para que recobremos as seguranças primárias da vida sem problemas. (...) todos os lugares de repouso são maternais.[i]
 
É a Cidade de Manaus, a verdadeira e inesquecível “habitação onírica” do segundo narrador de Rogel de Souza Samuel, “a casa de intimidade absoluta, a casa onde [ele] adquiriu o sentido da intimidade”. Por isto, todos os personagens do lugar têm algo a narrar: a bibliotecária Estela de Sousa (Estela de Sousa Samuel, mãe do escritor, com pouquíssimas palavras pós-modernas/pós-modernistas, brilhantemente homenageada), a manicure Sabá Vintém (representante de todas as manicures do lugar, aquelas que sabiamente sabem conviver com suas poderosas e luxuosas clientes), o homossexual Fernandinho de Bará (o conhecedor dos pecadilhos sexuais “daqueles burgueses cheios de culpa que [o] freqüentaram”[ii]), e Benito Botelho, o maior intelectual de Manaus, o filho da cozinheira Isaura, aquele que, algures, estará, à moda de detetive de novela policial, às voltas com o sumiço de Zequinha Bataillon ─, ansioso por descobrir o mistério de seu desaparecimento. Todavia, se houve cooperadores importantes, para o desenvolvimento criativo do relato ficcional rogeliano, certamente, nesta terceira parte do romance a colaboração da manicure negra Sebastiana Vintém propaga-se como uma das mais relevantes.
 
Entretanto a manicure veio cedo, que estava com a tarde toda tomada (afinal, não era seu dia). Sebastiana ─ Sabá Vintém, a manicure ─ era uma negra barbadiana conhecidíssima em Manaus, servia a todas as senhoras da sociedade com seus trabalhos impecáveis ─ pintava florezinhas nas unhas das senhoras, e coraçõezinhos nas moças. Sabá era mesmo poderosa, graças a suas relações. Sabia de todos os escândalos da cidade, da vida íntima de todas as famílias, e por isso Sabá Vintém era o porta-voz municipal: amantes, abortos, gravidezes ocultas ─ tinha a maneira especial para tudo descobrir pois discreta compunha fragmentos de conversas ouvidas em várias casas, pedaços que ela costurava e armava, como um policial atento. Por isso se tornava preciosa para as madames, que a custas de boas gorjetas faziam-na falar, passando-se por boba, fazendo-se confidente de todas, sem se indispor com nenhuma, a todas dando a entender que era a preferida, que só a ela confidenciava o que sabia.
 
Os segredos manauaras foram revelados ao segundo narrador, o alter ego do escritor Rogel Samuel, com certeza, por intermédio da poderosa Sabá Vintém, “o porta-voz municipal”. No entanto, em todas as Urbes do Orbe, há muitos influentes porta-vozes municipais. Quem seria então a poderosa Sebastiana Vintém, esta passageira habitante da casa onírica do escritor Rogel Samuel? Generalizando, não seria ela o somatório de todas as mexeriqueiras de qualquer parte do mundo dito social (portanto, uma personagem universal)? Por qualquer motivo, só do conhecimento do escritor, a manicure tem a sua importância no desenrolar narrativo, pois, além de demonstrar, por contraste, a elevada posição social de D. Mariazinha, a sua presença ficcional permitiu a exteriorização de dois essenciais ambientes da inolvidável “casa imaginária” de Rogel Samuel: o interior (a principal casa da infância e adolescência) e o exterior (a cidade de Manaus).
 
Sonhamos com ela também como um desejo, como uma imagem que às vezes encontramos nos livros. Ao invés de sonhar com o que foi, sonhamos com o que deveria ter sido, com o que teria estabilizado para sempre nossos devaneios íntimos. (...).[iii]
 
É a este sonho fundamental que chamamos de casa onírica.[iv]
 
Uma das provas da realidade da casa imaginária é a confiança que tem um escritor de nos interessar pela recordação de uma casa da própria infância. Basta um sinal que atinja o fundo comum dos sonhos.[v]
 
Neste terceiro momento do romance O Amante das Amazonas ─ narrativa pós-moderna/pós-modernista de Segunda Geração ─, a casa onírica do escritor necessitou do elemento terra acasalado à água e dos devaneios do repouso aliados aos devaneios da vontade (ação) para se manifestar e apresentar aos leitores todos os seus recantos até então insondáveis. Quem seria melhor do que D. Mariazinha de Abreu para permitir a abertura da porta da Cidade de Manaus ao ex-retirante nordestino Ribamar de Sousa (ao primeiro alter ego telúrico do escritor), oferecendo-lhe a possibilidade de galgar futuramente os degraus da consideração social (universal)? A porta principal da Cidade estava ali, bem pertinho, “ao lado”. A casa dela, além de ficar situada na Rua Barroso, certamente um endereço importante da Cidade, “os fundos davam para o Igarapé do Aterro”, um sinal de que, por enquanto, o elemento que irá comandar o relato é a terra (por intermédio do Igarapé do Aterro), mas não uma terra firme, sólida, inquebrantável, mas sim uma terra (elemento firme) acasalada à água (elemento fluido, desordenado, entrópico, pós-moderno). A terra, como produtora de devaneios sócio-políticos, certamente unida à água (matéria eleita pelo ficcionista), direcionará, futuramente, a visão interativa do criativo sonhador mítico-ficcional das águas amazonenses. Ao longo de sua ficção, ele necessitou de outros elementos além da terra e da água, tais como o fogo e o ar, para demonstrar, a partir das questões propostas e/ou intuídas, o seu incomum amor pela terra natal. Naturalmente, ainda verei, em seus dinâmicos aspectos interativos, profundos, fundamentais, as intromissões desses dois elementos alternadores ─ o fogo e o ar ─ até ao final do relato.
 
Diante dos espetáculos do fogo, da água, do céu, o devaneio que busca a substância nos aspectos efêmeros não era de modo algum bloqueado pela realidade. Estávamos verdadeiramente diante de um problema da imaginação; tratava-se precisamente de sonhar numa substância profunda o fogo tão vivo e tão colorido; tratava-se de imobilizar, diante de uma água fugidia, a substância dessa fluidez; enfim, era preciso, diante de todos os conselhos de leveza que nos dão as brisas e os vôos, imaginar em nós a própria substância da liberdade aérea. Em suma, matérias sem dúvida reais, mas inconsistentes e móveis, reclamavam ser imaginadas em profundidade, numa intimidade da substância e da força. Mas com a substância da terra, a matéria traz tantas experiências positivas, a forma é tão manifesta, tão evidente, tão real, que não se vê claramente como se pode dar corpo a devaneios relativos à intimidade da matéria. Como diz Baudelaire: “Quanto mais a matéria é, em aparência, positiva e sólida, mais sutil e laborioso é o trabalho da imaginação”. [Nota de Bachelard: Baudelaire, Curiosités esthétiques, p. 317].[vi]
 
Inicialmente e rapidamente a terra do Estado de Pernambuco se fez presente no romance O Amante das Amazonas: Ribamar saíra da povoação de Patos, Pernambuco, “na madrugada do Natal de 1897”, levando na “mala de amarrado” apenas duas mudas de roupa, “com um Cosmorama onde se avistavam as paisagens de Manaus, Belém, Paris, Londres, Viena e São Petersburgo”[vii]. A palavra “madrugada”, no princípio da narrativa, assinala uma futura vida de realizações e glórias; o “Cosmorama”, representativo de uma Saga do Universo determinou o desejo de dilatação ficcional universal. Mas, houve a necessidade de se escalar a Serra da Borborema (ainda o elemento terra obstaculizante) para atingir a finalidade do relato, ou seja, para futuramente interagir com a profunda materialidade aquática da terra natal e elevá-la ao panteón literário. Até chegar a uma experiência ficcional positiva com a matéria eleita, tão “inconsistente e móvel”, muitos foram os obstáculos. Para que, ao final do relato, pudesse apresentar aos leitores as inconformadas decadências histórico-sociais da extração da árvore da borracha e da Cidade amada, o narrador rogeliano obrigou-se a uma interação profunda com as matérias compostas de sua primitiva realidade. Todas “reclamavam ser imaginadas em profundidade”, mas a matéria água exigiu um esforço maior. A “mala de amarrado” do primeiro Ribamar, encharcada de água de chuva e de lágrimas do narrador, transformou-se gradativamente em “mala de madeira”. Ao chegar em Manaus, o Ribamar de Sousa já trazia uma “mala de madeira enrolada na mão”, porque já não era um simples retirante, mas um Brabo Homem/(Personagem) da Floresta em busca de colocação na Cidade de Manaus (o representante ficcional daquele que saiu da Floresta para buscar colocação na Cidade Grande, no Mundo).


[i] Idem: 95.
[ii] SAMUEL, Rogel, 2005: 135.
[iii] BACHELARD, 1990: 77.
[iv] Idem:: 78.
[v] Idem: 79.
[vi] Idem, 1991: 2.
[vii] SAMUEL, Rogel, 2005: 9.

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