quinta-feira, 6 de março de 2014

Neuza Machado: Esplendor e decadência do império amazônico





[FOTO DE ROCHA]

Neuza Machado: Esplendor e decadência do império amazônico

 

Sobre o romance O amante das amazonas de Rogel Samuel

 

Ribamar de Sousa: O Ficcional Personagem-Representante do Capitalismo Decadente da Cidade de Manaus

 

 

Repenso agora o Ribamar rogeliano: “Ribamar desceu a Rua Barroso”. Ficcionalmente, poderia ter subido a Rua assinalada e permanecido por lá (a residência de João das Neves era vizinha a de D. Maria de Abreu), se o poder monetário de João das Neves estivesse firmemente se estabelecido no alto. O poder seja de que ordem for se estabelecerá sempre nas alturas, e no Centro, mesmo que o ambiente revele degradação social. Mas, a subida exige esforço físico, trabalho árduo, e um personagem, descendo, já não visualiza trabalho pesado, apenas mental. Descer a ladeira da rua comodamente, e ao longo da descida adquirir uma sólida riqueza (e o tesouro de Maria Caxinauá era sólido, não era roubado, era realmente dela e de Ribamar ─ ou seja, dos índios dominados e dos retirantes nordestinos escravizado ─ e não de Ifigênia Vellarde) e um papel de destaque no mundo político, seria mais prazeroso. A estadia no Seringal Manixi, como atencioso secretário de Ifigênia Vellarde, abriu-lhe as comportas do conhecimento monetário (e político). Não é por ventura uma função do secretário assessorar e resguardar a fortuna de seu patrão? E, por osmose, não é a partir de tal emprego que se aprende a arte de ganhar dinheiro e socializar-se, ao intermediar as transações pecuniárias do patrão? No entanto, graças ao segundo narrador, antes da aprazível “descida”, o Ribamar de Sousa teria de conhecer e demarcar seu novo ambiente social, o qual já sofria a “estagnação da crise econômica” pós-borracha.

 

Agora ele se admirava da bela rua, porque Manaus era bela. Calma, profunda, na estagnação da crise econômica, esquecida, abandonada, mas solene. Os grandes e belos palacetes, o ar de soberania art-nouveau ─ Manaus era uma espécie de cidade-fantasma, minimetrópole esquecida, batida pela claridade de um sol esplendidamente brilhante. O brilho escorria pelas pedras de morona das calçadas.

 

Ribamar descia devagar, passava pela portada da capela de Santa Rita ─ lugar tão sagrado, que não mais existe. A rua deserta. Todas as casas tinham portas e janelas fechadas. Mas um belo lugar, limpo. Lembrava Paris.

 

Ele se sentia feliz, como se estivesse no início do caminho de sua vitória. Manaus decaída aparecia, para ele, algo que ele podia reerguer e que amava.[i]

 

Ribamar “se admirava da bela rua, porque Manaus era bela. Calma, profunda, na estagnação da crise econômica”. “Manaus era uma espécie de cidade-fantasma, minimetrópole esquecida, batida pela claridade de um sol esplendidamente brilhante”. Reflito as informações sócio-ficcionais, mas necessito investigar a descida do personagem Ribamar pela rua de Manaus, ou seja, ao profundo mundo do segundo narrador rogeliano, auxiliada pela filosofia bachelardiana:

 

Seriam precisas longas páginas para expor, em todos os seus caracteres e com todos os seus planos de fundo, a consciência de estar abrigado. São inumeráveis as impressões claras. Contra o frio, contra o calor, contra a tempestade, contra a chuva, a casa é um abrigo evidente, e cada um de nós tem mil variantes em suas lembranças para animar um tema tão simples. Coordenando todas essas impressões e classificando todos esses valores de proteção, perceberíamos que a casa constitui, por assim dizer, um contra-universo ou um universo do contra. Mas é talvez nas mais frágeis proteções que sentiremos a contribuição dos sonhos de intimidade. Basta pensar, por exemplo, na casa que se ilumina no crepúsculo e nos protege contra a noite. Logo temos o sentimento de estar no limite dos valores inconscientes, sentimos que tocamos um ponto sensível do onirismo da casa.[ii]

 

Ribamar (depois da ascensão e queda do Seringal Manixi, buscando uma casa onírica que difunda uma luz incomum em seu diferenciado crepúsculo existencial) se sente “feliz”, a caminho de “sua vitória” sócio-político-ficcional, porque o segundo narrador iluminou-lhe o atual itinerário narrativo, uma vez que este segundo se sentia seguro, abrigado nos sonhos de sua própria intimidade, como profundo conhecedor daquelas imediações citadinas. Refletindo esta Casa/Cidade “esplendidamente brilhante”, ainda posso recuperar uma outra assertiva bachelardiana. A Casa/Cidade iluminou-se, quando da entrada de Ribamar, porque, naquele preciso instante (instante metafísico), ela era “uma ilhota de luz no mar das trevas” do escritor (trevas representativas do abandono da amada terra natal), e em sua “memória, uma lembrança isolada em anos de esquecimento”[iii]. Em verdade, quem está descendo comodamente e criativamente a Rua Barroso (um dos labirintos em declive, para o fundo, da inesquecível Casa/Cidade) é o dono do relato ficcional. Quem gostaria de reerguer a Cidade amada, “esquecida, abandonada, mas solene”, é o segundo narrador rogeliano. Quem está, em um presente histórico resgatado da própria casa onírica, a se sentir feliz, “como se estivesse no início do caminho de sua vitória”, avaliando a beleza da Cidade, é o escritor dos sonhos profundos aninhados nos íntimos segredos de sua “meia-noite psíquica onde germinam virtudes de origem”[iv]. O sonhador está a vaguear suas lembranças pelas ruas de sua cidade natal. É ele quem está a descer devagar a Rua Barroso, “passa pela portada da capela de Santa Rita”. É ele quem percebe solitariamente que a rua está deserta e é também o que enxerga todas as casas com as portas e janelas fechadas (fechadas para o escritor?).






[i] Idem: 109.


[ii] Idem: 87.


[iii] Idem: 88.


[iv] BACHELARD, Gaston, 1991: 160.


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