terça-feira, 4 de março de 2014

Ribamar de Sousa: O Ficcional Personagem-Representante do Capitalismo Decadente da Cidade de Manaus


(FOTO DO ROCHA em)
http://jmartinsrocha.blogspot.com.br/
Neuza Machado: Esplendor e decadência do império amazônico

 

Sobre o romance O amante das amazonas de Rogel Samuel

 

Ribamar de Sousa: O Ficcional Personagem-Representante do Capitalismo Decadente da Cidade de Manaus

 

 

 

 

 

A partir dali, o Ribamar teria/terá de desenrolar a sua “mala de madeira” e transformá-la em arca de tesouro. Para esta repentina transformação, para esta diferenciada incursão ficcional nos redutos da Cidade, para a elevação social do personagem Ribamar, o segundo narrador levou os passos do primeiro até à soleira da porta de D. Mariazinha de Abreu, a única que poderia permitir-lhe a entrada triunfal no reduto do filho ausente, há muito, distanciado da casa materna.

 

─ Bons dias, dona ─ disse-lhe aquele caboclo mal vestido, calças de brim, camisa de algodão cru de dura goma, chapéu de palha na cabeça e mala de madeira enrolada na mão. O homem tirara o chapéu para falar com ela.

 

─ A senhora sabe onde mora o Seu Juca das Neves?

 

Quando D. Maria viu aquilo empertigou-se, mas fez-se muito cortês ao responder, pois era assim que tratava aos que lhe ficavam abaixo de sua condição social.

 

─ Ao lado ─ disse, e retirou-se, vindo sentar-se ao lado da negra Sebastiana Vintém.

 

Era a senhora mais fina, mais elegante e mais bonita da época, sim, que é assim mesmo, conforme o digo, este Narrador.

 

E aquele homem era Ribamar (d’Aguirre) de Souza.

 

Ribamar “tirara o chapéu para falar com ela”. Este diálogo entre Ribamar (d’Aguirre) de Sousa e D. Maria de Abreu finaliza o capítulo ONZE: RIBAMAR, distinguido como homenagem sentimental à casa inesquecível do escritor e à sua sempre relembrada proprietária. Contudo, significa, também, a apresentação do novo personagem Ribamar de Sousa, agora ostentando um original apelido (sobrenome) socialmente mais condecorado, um diferenciado “d’Aguirre”, onomatopaicamente representativo de um “ânimo belicoso”, propenso a lutas titânicas ao longo do caminho da independência financeira. A “mala de madeira enrolada na mão” de Ribamar de Sousa ainda levaria/levará algum tempo para transformar-se em arca de tesouro. Ribamar teria/terá ainda de trabalhar bastante, tornar-se sócio de Juca das Neves, tornar-se um representante da burguesia manaura, casar-se com a rica Diana d’Artigues, tornar-se político influente, para, a partir de todas essas mudanças de vida, alcançar, nos capítulos finais, a novidade da riqueza.

No capítulo seguinte DOZE: MANAUS, o Ribamar, a face ficcional do segundo narrador, foi ao encontro de seu grandioso futuro destino, mas o “Juca das Neves não estava” em casa, naquele momento, estava no “Armazém das Novidades”, um espaço ainda desconhecido ao novo personagem itinerante.

 

Juca das neves não estava. Uma cabocla velha lhe disse:

 

─ Está no Armazém.

 

─ Onde fica? Perguntou Ribamar.

 

A cabocla se espantou. Como poderia haver alguém que não soubesse onde era o Armazém das Novidades a famosa loja de Manaus? Mas respondeu:

 

─ Ali, na esquina, na Eduardo Ribeiro.

 

Ribamar desceu a Rua Barroso. Pegou a 24 de Maio pelas sombras das mangueiras que ali estavam desde há muitos anos. Eram mangueiras colossais que davam largas sombras verde-claro e que foram cortadas cinqüenta anos depois.

 

Sem pai nem mãe, nem parente algum de que tivesse notícia ─ sem mesmo nenhum amigo nem ninguém naquele mundo ─ Ribamar descia a rua 24 de Maio. Mas, em vez de se sentir só, estava leve e aberto às múltiplas possibilidades daquela cidade. Tudo dentro dele dizia que ele pisava aquele solo para vencer.[i]

 

“Ribamar desceu a Rua Barroso”, “desceu a rua 24 de Maio”, mas, “em vez de se sentir só, estava leve e aberto às múltiplas possibilidades daquela cidade. Tudo dentro dele dizia que ele pisava aquele solo para vencer”. Oh, ruturas rogelianas! Quantas e inúmeras vezes, depois de cansativas subidas íngremes, o escritor amazonense aqui realçado viu-se descendo algumas ladeiras do Rio de Janeiro, em direção ao Centro da Cidade, “leve e aberto às suas múltiplas possibilidades” e consciente, apesar dos inúmeros obstáculos, de que estava pisando vitoriosamente o solo carioca. Tal qual o escritor do romance O Amante das Amazonas, em durações próximo-passadas, na cidade do Rio de Janeiro, descendo a ladeira do Bairro de Santa Teresa, o personagem ficcional, o Ribamar, desceu a Rua Barroso, encantando-se com a Cidade de Manaus, mas quem se percebeu devaneando enquanto seu personagem saía em busca do Armazém das Novidades, foi o segundo narrador, alter ego do escritor Rogel Samuel.

 

Se, com um passo solitário, devaneando, numa casa que traz os grandes signos da profundidade, descemos pela estreita escada obscura que enrola seus altos degraus em torno o eixo de pedra, logo sentimos que descemos a um passado. Ora, para nós não há nenhum passado que nos dê o gosto de nosso passado, sem que logo se torne, em nós, um passado mais longínquo, mais incerto, esse passado enorme que já não tem data, que já não sabe as datas de nossa história.

 

Tudo então simboliza. Descer, devaneando, num mundo em profundidade, em uma casa que assinala a cada passo a sua profundidade, é também descer em nós mesmos. Se prestamos um pouco de atenção às imagens, às lentas imagens que se nos impõem nessa “descida”, nessa “dupla descida”, não podemos deixar de surpreender-lhe os traços orgânicos. Raros são os escritores que os põem no papel. Mesmo que esses traços orgânicos surgissem da pena, a consciência literária os rejeitaria, a consciência vigiada os recalcaria. [Nota de no 14 de Gaston Bachelard, op. cit.: 96: “A consciência literária é, no escritor, uma realização íntima da crítica literária. Escreve-se para alguém, contra alguém. Felizes são aqueles que escrevem, libertos, para si mesmos”.] E, no entanto, a homologia das profundezas impõe tais imagens. Quem pratica a introspecção é o seu próprio Jonas (...).[ii]

 

No capítulo DOZE: MANAUS, o segundo narrador, enquanto consciência interativa do escritor (mas, felizmente, com uma criativa consciência não-vigiada), devaneando em seu mundo profundo, conduz seu personagem pelas ruas [entranhas, labirintos] de Manaus. Por sua vez, o Ribamar, descendo as Ruas de Manaus, secundado pelo segundo narrador, proporciona ao ficcionista e sua “consciência não-vigiada” (apesar de sua importante e fenomenológica “consciência literária”), um interativo retorno ao seu longínquo passado. Submetido ao “criatividade singular” de quem narra, e que conhece cada recanto da Cidade homenageada, o Ribamar terá de “descer” algumas das pouquíssimas ruas íngremes do Centro de Manaus, sombreadas por “mangueiras colossais” (“que ali estavam desde há muitos anos”, “que davam sombra verde-claro”, mas “que foram cortadas cinqüenta anos depois”). Ele terá de descer acoplado ao segundo narrador, repito, para reconhecer o íntimo espaço onírico (o diferenciado interior da Casa Onírica) daquele que é realmente o dono do ato de narrar (o narrador-proprietário); terá de descer “devaneando, em um mundo de profundidade”, porque, no momento, esse mundo especial estará/está representando o seu recente invólucro de atuação ficcional (agora simplesmente como personagem).

 

Um dia, como se tudo tivesse bem pensado, lhe disse a Caxinauá:

 

─ Agora você vai para Manaus...

 

Ele não disse nada, mas sabia que ela tinha razão. O Manixi não mais existia, e o Palácio onde ele agora morava estava em ruínas. A Caxinauá recomendou que ele procurasse Ivete e Juca das Neves. Em uma semana Ribamar saiu dali.[iii]

 

“Sem pai nem mãe, nem parente algum de que tivesse notícia”. Em um dia qualquer do presente histórico (“como se tudo tivesse bem pensado”, muito consciente de que a grandeza imperial do Manixi “não mais existia”, consciente de que “o Palácio onde ele agora morava”, em seus sonhos de “meia-noite psíquica”, “estava em ruínas”), o neo-personagem Ribamar de Sousa se vê afastado do posto de primeiro narrador, submete-se a um segundo narrador (que contará aos leitores a sua ascensão e glória na Cidade de Manaus), e, atendendo a um pedido de Maria Caxinauá, resolve mudar-se para Manaus.





[i] SAMUEL, Rogel, 2005: 108.


[ii] BACHELARD, 1990: 96.


[iii] SAMUEL, Rogel, 2005: 108 - 109.

Nenhum comentário: