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Neuza
Machado: Esplendor e decadência do império amazônico
Sobre
o romance O amante das amazonas de
Rogel Samuel
Ribamar de Sousa: O Ficcional Personagem-Representante do
Capitalismo Decadente da Cidade de Manaus
A partir
dali, o Ribamar teria/terá de desenrolar a sua “mala de madeira” e
transformá-la em arca de tesouro. Para esta repentina transformação,
para esta diferenciada incursão ficcional nos redutos da Cidade, para a
elevação social do personagem Ribamar, o segundo narrador levou os passos do
primeiro até à soleira da porta de D. Mariazinha de Abreu, a única que poderia
permitir-lhe a entrada triunfal no reduto do filho ausente, há muito,
distanciado da casa materna.
─ Bons dias, dona ─
disse-lhe aquele caboclo mal vestido, calças de brim, camisa de algodão cru de
dura goma, chapéu de palha na cabeça e mala de madeira enrolada na mão. O homem
tirara o chapéu para falar com ela.
─ A senhora sabe onde mora o
Seu Juca das Neves?
Quando D. Maria viu aquilo
empertigou-se, mas fez-se muito cortês ao responder, pois era assim que tratava
aos que lhe ficavam abaixo de sua condição social.
─ Ao lado ─ disse, e
retirou-se, vindo sentar-se ao lado da negra Sebastiana Vintém.
Era a senhora mais fina,
mais elegante e mais bonita da época, sim, que é assim mesmo, conforme o digo,
este Narrador.
E aquele homem era Ribamar
(d’Aguirre) de Souza.
Ribamar
“tirara o chapéu para falar com ela”. Este diálogo entre Ribamar (d’Aguirre) de
Sousa e D. Maria de Abreu finaliza o capítulo ONZE: RIBAMAR, distinguido como homenagem
sentimental à casa inesquecível do escritor e à sua sempre relembrada
proprietária. Contudo, significa, também, a apresentação do novo personagem
Ribamar de Sousa, agora ostentando um original apelido (sobrenome) socialmente
mais condecorado, um diferenciado “d’Aguirre”, onomatopaicamente representativo
de um “ânimo belicoso”, propenso a lutas titânicas ao longo do caminho da
independência financeira. A “mala de madeira enrolada na mão” de Ribamar de
Sousa ainda levaria/levará algum tempo para transformar-se em arca de
tesouro. Ribamar teria/terá ainda de trabalhar bastante, tornar-se sócio de
Juca das Neves, tornar-se um representante da burguesia manaura, casar-se com a
rica Diana d’Artigues, tornar-se político influente, para, a partir de todas
essas mudanças de vida, alcançar, nos capítulos finais, a novidade da
riqueza.
No capítulo
seguinte DOZE: MANAUS,
o Ribamar, a face ficcional do segundo narrador, foi ao encontro de seu
grandioso futuro destino, mas o “Juca das Neves não estava” em casa, naquele
momento, estava no “Armazém das Novidades”, um espaço ainda desconhecido ao
novo personagem itinerante.
Juca das neves não estava.
Uma cabocla velha lhe disse:
─ Está no Armazém.
─ Onde fica? Perguntou
Ribamar.
A cabocla se espantou. Como
poderia haver alguém que não soubesse onde era o Armazém das Novidades a famosa
loja de Manaus? Mas respondeu:
─ Ali, na esquina, na
Eduardo Ribeiro.
Ribamar desceu a Rua Barroso.
Pegou a 24 de Maio pelas sombras das mangueiras que ali estavam desde há muitos
anos. Eram mangueiras colossais que davam largas sombras verde-claro e que
foram cortadas cinqüenta anos depois.
Sem pai nem
mãe, nem parente algum de que tivesse notícia ─ sem mesmo nenhum amigo nem
ninguém naquele mundo ─ Ribamar descia a rua 24 de Maio. Mas, em vez de se
sentir só, estava leve e aberto às múltiplas possibilidades daquela cidade.
Tudo dentro dele dizia que ele pisava aquele solo para vencer.[i]
“Ribamar
desceu a Rua Barroso”, “desceu a rua 24 de Maio”, mas, “em vez de se sentir só,
estava leve e aberto às múltiplas possibilidades daquela cidade. Tudo dentro
dele dizia que ele pisava aquele solo para vencer”. Oh, ruturas rogelianas!
Quantas e inúmeras vezes, depois de cansativas subidas íngremes, o
escritor amazonense aqui realçado viu-se descendo algumas ladeiras do Rio de
Janeiro, em direção ao Centro da Cidade, “leve e aberto às suas múltiplas
possibilidades” e consciente, apesar dos inúmeros obstáculos, de que estava
pisando vitoriosamente o solo carioca. Tal qual o escritor do romance O
Amante das Amazonas, em durações próximo-passadas, na cidade do Rio de
Janeiro, descendo a ladeira do Bairro de Santa Teresa, o personagem ficcional,
o Ribamar, desceu a Rua Barroso, encantando-se com a Cidade de Manaus, mas quem
se percebeu devaneando enquanto seu personagem saía em busca do Armazém
das Novidades, foi o segundo narrador, alter ego do escritor Rogel
Samuel.
Se, com um
passo solitário, devaneando, numa casa que traz os grandes signos da
profundidade, descemos pela estreita escada obscura que enrola seus altos
degraus em torno o eixo de pedra, logo sentimos que descemos a um
passado. Ora, para nós não há nenhum passado que nos dê o gosto de nosso
passado, sem que logo se torne, em nós, um passado mais longínquo, mais
incerto, esse passado enorme que já não tem data, que já não sabe as datas de
nossa história.
Tudo então
simboliza. Descer, devaneando, num mundo em profundidade, em uma casa que
assinala a cada passo a sua profundidade, é também descer em nós mesmos. Se
prestamos um pouco de atenção às imagens, às lentas imagens que se nos impõem
nessa “descida”, nessa “dupla descida”, não podemos deixar de surpreender-lhe
os traços orgânicos. Raros são os escritores que os põem no papel. Mesmo que
esses traços orgânicos surgissem da pena, a consciência literária os
rejeitaria, a consciência vigiada os recalcaria. [Nota de no 14 de
Gaston Bachelard, op. cit.: 96: “A consciência literária é, no
escritor, uma realização íntima da crítica literária. Escreve-se para
alguém, contra alguém. Felizes são aqueles que escrevem, libertos, para si
mesmos”.] E, no entanto, a homologia das profundezas impõe tais imagens.
Quem pratica a introspecção é o seu próprio Jonas (...).[ii]
No capítulo DOZE: MANAUS, o
segundo narrador, enquanto consciência interativa do escritor (mas,
felizmente, com uma criativa consciência não-vigiada), devaneando em seu
mundo profundo, conduz seu personagem pelas ruas [entranhas,
labirintos] de Manaus. Por sua vez, o Ribamar, descendo as Ruas de
Manaus, secundado pelo segundo narrador, proporciona ao ficcionista e sua
“consciência não-vigiada” (apesar de sua importante e fenomenológica
“consciência literária”), um interativo retorno ao seu longínquo passado.
Submetido ao “criatividade singular” de quem narra, e que conhece cada recanto
da Cidade homenageada, o Ribamar terá de “descer” algumas das pouquíssimas ruas
íngremes do Centro de Manaus, sombreadas por “mangueiras colossais” (“que ali
estavam desde há muitos anos”, “que davam sombra verde-claro”, mas “que foram
cortadas cinqüenta anos depois”). Ele terá de descer acoplado ao segundo
narrador, repito, para reconhecer o íntimo espaço onírico (o diferenciado
interior da Casa Onírica) daquele que é realmente o dono do ato de
narrar (o narrador-proprietário); terá de descer “devaneando, em um mundo de
profundidade”, porque, no momento, esse mundo especial estará/está
representando o seu recente invólucro de atuação ficcional (agora simplesmente
como personagem).
Um dia, como se tudo tivesse
bem pensado, lhe disse a Caxinauá:
─ Agora você vai para
Manaus...
Ele não disse nada, mas
sabia que ela tinha razão. O Manixi não mais existia, e o Palácio onde ele
agora morava estava em ruínas. A Caxinauá recomendou que ele procurasse Ivete e
Juca das Neves. Em uma semana Ribamar saiu dali.[iii]
“Sem pai nem
mãe, nem parente algum de que tivesse notícia”. Em um dia qualquer do presente
histórico (“como se tudo tivesse bem pensado”, muito consciente de que a
grandeza imperial do Manixi “não mais existia”, consciente de que “o Palácio
onde ele agora morava”, em seus sonhos de “meia-noite psíquica”, “estava em
ruínas”), o neo-personagem Ribamar de Sousa se vê afastado do posto de primeiro
narrador, submete-se a um segundo narrador (que contará aos leitores a sua
ascensão e glória na Cidade de Manaus), e, atendendo a um pedido de Maria
Caxinauá, resolve mudar-se para Manaus.
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