Neuza
Machado: Esplendor e decadência do império amazônico
Sobre
o romance O amante das amazonas de
Rogel Samuel
Ribamar de Sousa: O Ficcional Personagem-Representante do
Capitalismo Decadente da Cidade de Manaus
“Como o sangue nas veias”!
Quando estudarmos mais particularmente o dinamismo dos corredores e dos
labirintos da imaginação dinâmica, haveremos de nos lembrar dessa observação.
Ela dá testemunho aqui da endosmose do devaneio e das lembranças. A imagem está
em nós, “incorporada” em nós, “repartida” em nós, suscitando devaneios bem
diferentes conforme sigam corredores que não levam a parte alguma ou quartos
que “encerram” fantasmas, ou escadas que obrigam a descidas solenes,
condescendentes, indo buscar lá embaixo algumas familiaridades. Todo esse
universo se anima no limite dos temas abstratos e das imagens sobreviventes,
nessa zona em que as metáforas adquirem o sangue da vida e depois se apagam na
linfa das lembranças.
Parece então que o sonhador
está pronto para as mais longínquas identificações. Ele vive fechado em si
mesmo, torna-se fechamento, canto escuro. As palavras de Rilke
expressam esses mistérios.[i]
O segundo
narrador rogeliano, ao contato com a “endosmose do devaneio e das lembranças”
(como se “a endosmose do devaneio e das lembranças” do escritor fosse “um
sangue nas veias” e a película que recobre o sangue das veias simbolicamente e
dinamicamente separasse o interior do exterior), buscou, em princípio, as
descidas de sua antiga morada. Em um primeiro momento interativo, o seu personagem
Ribamar foi ao encontro de suas antigas impressões infanto-juvenis, sobre a
Cidade de seus desejos intensos. A Casa/Manaus impunha ser revisitada, e exigia
uma descida às profundezas das lembranças (memória) e das recordações
(lirismo). Durante a renovada visita, o personagem Ribamar subiu e desceu,
para, posteriormente, subir como um vitorioso, as poucas ruas íngremes de
Manaus. (Não há morros em Manaus. Os limites do olhar dependem da Floresta).
Se quisermos
ultrapassar a história ou mesmo, permanecendo nela, destacar da nossa história
a história sempre demasiado contingente dos seres que a sobrecarregaram,
perceberemos que o calendário de nossa vida só pode ser estabelecido em seu
processo produtor de imagens. Para analisar o nosso ser na hierarquia de uma
ontologia, para psicanalizar o nosso inconsciente enterrado em moradas
primitivas, é preciso, à margem da psicanálise normal, dessocializar
nossas grandes lembranças e atingir o plano dos devaneios que vivenciávamos nos
espaços de nossas solidões. Para tais indagações, os devaneios são mais
úteis que os sonhos. E elas mostram que os devaneios podem ser bem diferentes
dos sonhos.
Então, diante
dessas solidões, o topoanalista interroga: o aposento era grande? O sótão
estava atravancado de coisas? O canto era quente? E donde vinha a luz? Como
também, nesses espaços, o ser tomava contato com o silêncio? Como ele saboreava
os silêncios tão especiais dos diversos abrigos do devaneio solitário?
Aqui o espaço
é tudo, pois o tempo já não anima a memória. A memória ─ coisa estranha! ─ não
registra a duração concreta, a duração no sentido bergsoniano. Não podemos
reviver as durações abolidas. Só podemos pensá-las, pensá-las na linha de um
tempo abstrato privado de qualquer espessura. É pelo espaço, é no espaço que
encontramos os belos fósseis de duração concretizados por longas permanências.
O inconsciente permanece nos locais. As lembranças são imóveis, tanto mais
sólidas quanto mais bem espacializadas. Localizar uma lembrança no tempo não
passa de uma preocupação de biógrafo e corresponde praticamente apenas a uma
espécie de história externa, uma história para uso externo, para ser contada
aos outros. Mais profunda que a biografia, a hermenêutica deve determinar os
centros de destino, desembaraçando a história de seu tecido temporal conjuntivo
que não atua sobre o nosso destino. Mais urgente que a determinação das datas
é, para o conhecimento da intimidade, a localização nos espaços da nossa
intimidade.
Com demasiada
freqüência a psicanálise situa as paixões “no mundo”. Na verdade, as paixões
cozinham e recozinham na solidão. É encerrado em sua solidão que o ser de
paixão prepara suas explosões ou seus feitos.
E todos os
espaços das nossas solidões passadas, os espaços em que sofremos a solidão,
desfrutamos a solidão, desejamos a solidão, comprometemos a solidão, são
indeléveis em nós. E é precisamente o ser que não deseja apagá-los. Sabe por
instinto que esses espaços de sua solidão são constitutivos. Mesmo quando eles
estão para sempre riscados do presente (...), mesmo quando não se tem mais o
sótão, mesmo quando se perdeu a mansarda, ficará para sempre o fato de que se
amou um sótão, de que se viveu numa mansarda. A eles voltamos nos sonhos
noturnos. Esses redutos têm valor de concha.[ii]
O segundo
narrador rogeliano ultrapassou a história de sua anterior realidade
sócio-mítico-substancial (“a história sempre demasiado contingente dos seres
que a sobrecarregaram”) e encaminhou o personagem Ribamar de Sousa até ao
profundo espaço de solidão do plenipotenciário do ato de narrar. O Ribamar, por
sua vez, levou o segundo narrador ao porão da casa de Juca das Neves. O porão
não era grande, “era um cômodo sem janela, debaixo da escada, e ali dentro
sentia-se muito calor, umidade e mofo”, mas, para Ribamar, “era um luxo”. Era
“um luxo” porque se substancializou como o lugar preferido d’O Amante das
Amazonas, depósito “atravancado de coisas” ─ saberes recebidos e saberes
adquiridos ─ indispensáveis àquele que soube tão bem saborear “os silêncios tão
especiais dos diversos abrigos do devaneio solitário”, ao decorrer de sua
própria existência. Ao longo da descida (ao porão dos “belos fósseis de duração
concretizados por longas permanências” reflexivas, lembrou-se das palavras de
Maria Caxinauá: “─ Agora você vai para Manaus...” Agora sim, o Ribamar teria de
dessocializar-se das históricas grandes lembranças e
atingir o espaço da solidão do escritor. O personagem Ribamar aceitou a
intimação, no lugar do outro narrador, aquele que realmente o conduzia, pois
sabia que em Manaus iria vencer (o seu guia ficcional, o “outro eu”, o alter
ego, qualquer que seja a nomenclatura para revelá-lo, já era um vencedor).
Mas, antes do triunfo, seu guia ficcional o obrigou a visitar o porão de sua
“casa onírica”. O porão também estava indelevelmente conservado no segundo
narrador, “como um fragmento” de antiga construção a ser desvendada. A casa de
Juca das Neves se mostrou/se mostra também como uma extensão da “casa onírica”
do escritor amazonense. Algum poderoso Ribamar da família Souza ou da família
Samuel certamente a habitou. Todas as casas desta terceira fase do romance
compõem apenas uma casa, Manaus, com seus corredores (ruas), suas escadas (as
imponentes e artísticas escadarias dos Palácios manauaras e as poucas ruas de
ladeiras) e seus diversos cômodos (as casas). Cada cantinho da cidade amada
formaliza a “casa onírica” do verdadeiro narrador rogeliano. Tudo está disperso
e, paradoxalmente, ligado ao escritor manauara Rogel Samuel. “Parece que o
sonhador está pronto para as mais longínquas identificações”. Fechado nele
mesmo, graças àquele movimento ficcional “para dentro”, por enquanto, o seu
personagem Ribamar terá de conhecer o porão, o “canto escuro” e sagrado de quem
realmente narra. O segundo narrador encaminhou os passos de Ribamar até à sua
própria gruta de solidão (à gruta de iniciação religiosa,
à gruta dos mistérios insondáveis). Bachelard explica tal
procedimento: “Há uma raiz onírica única na origem de todas essas imagens”[iii].
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