sexta-feira, 7 de março de 2014

Ribamar de Sousa: O Ficcional Personagem-Representante do Capitalismo Decadente da Cidade de Manaus

[FOTO DO ROCHA]


Neuza Machado: Esplendor e decadência do império amazônico

 

Sobre o romance O amante das amazonas de Rogel Samuel

 

Ribamar de Sousa: O Ficcional Personagem-Representante do Capitalismo Decadente da Cidade de Manaus

 

No entanto, “que belo lugar”! Tão “limpo”! “Lembrava Paris”. O Ribamar até então era apenas um “caboclo mal vestido, calças de brim, camisa de algodão cru de dura goma, chapéu de palha na cabeça e mala de madeira enrolada na mão”. Quem estava a se lembrar de Paris ao apreciar a Cidade de Manaus? O primeiro ou o segundo narrador? Ou um terceiro viajante-narrador, profundo conhecedor da Cidade de Paris? Como poderia o Ribamar de Sousa da “mala de madeira enrolada na mão”, ou mesmo o segundo narrador, lembrar-se de Paris? Seria a Paris decalcada no “Cosmorama”, aquele interessante aparelhozinho ótico que o acompanhou quando de sua peregrinação até ao Seringal Manixi?

 

Ele se sentia feliz, como se estivesse no início do caminho de sua vitória. Manaus decaída aparecia, para ele, algo que ele podia reerguer e que amava.

 

O último dos empregados do Armazém das Novidades fora-se da cidade tentar a vida em São Paulo e o emprego era seu. O Armazém, entretanto, estava quase fechando. Ribamar pouco receberia, trabalharia em troca de casa e comida, como faxineiro, balconista, confidente.

 

Naquela mesma noite, depois do jantar, o patrão conversava com ele. Ribamar contara a sua vida, (...).

 

Juca das Neves discorreu sobre suas doenças e sua desgraça.[i]

 

Naquela mesma noite Ribamar de Souza se instalou no porão. Encontrou abandonado o Armazém, e durante todo o dia em que ali esteve não se fez nenhum negócio. Era como se a peste desabasse sobre Manaus. A crise se demonstrava naquele silêncio quente, ao pôr-do-sol, luzes moribundas, o apagar do apogeu capitalista. A Amazônia ficou sem 80% de sua economia, um deserto morto, estéril, sobre a planície encharcada numa crise que durou meio século. As famílias ricas partiam para Paris, Lisboa. Quem ficou, estava quase morto. Fortunas colossais se reduziram a pó. Maurice Samuel, um dos ricos, perdeu até os móveis de sua casa, penhorados, e mudou-se para a pequena casa alugada na Silva Ramos. Jóias eram vendidas a qualquer preço. Mulheres ficavam viúvas, passavam a costurar, para sobreviver. O capital desapareceu. Tudo que era sólido se desfazia no ar e ruía como um castelo de cartas. O Teatro Amazonas foi abandonado, transformado em depósito de borracha velha. O que sobrou foi muito pouco, mas era o que eu mais amava.[ii]

 

Aquele era um cômodo sem janela, debaixo da escada, e ali dentro sentia-se muito calor, umidade e mofo.

 

Para Ribamar, um luxo. Naquele quarto, durante uma década, vivera a finada Benedita, velha empregada de Juca das Neves, muito asseada. Mas na parede mofada a umidade alargara duas manchas pardas. Ribamar armou a rede, deitou-se. Poderia sair sem ser visto pelas pessoas da casa, pelo corredor lateral. No primeiro andar, para onde se mudaria depois, ouvia-se o piano de Melina. Juca das Neves já se tinha recolhido. (...). [iii]

 

Diz o narrador de Rogel Samuel, ao refletir ficcionalmente o declínio sócio-econômico da Cidade de Manaus: “Tudo o que era sólido se desfazia no ar e ruía como um castelo de cartas. O Teatro Amazonas foi abandonado, transformado em depósito de borracha velha. O que sobrou foi muito pouco, mas era o que eu mais amava”. O Teatro Amazonas, mesmo transformado em depósito de borracha velha, era o local que o narrador mais amava. O Teatro Amazonas, o símbolo da Cidade manauara, se estabeleceu no alto, como marca do poder da era da borracha. Posteriormente, “em ruínas”, significou a decadência de um primitivo Império capitalista, o de base familiar. Uma outra forma de Capitalismo Selvagem estava a surgir no mundo: o Capitalismo sem freios das multinacionais estrangeiras. Naquele instante universalmente dinamizado, o Teatro tornou-se um artigo sem serventia para os manauaras, um monumento do passado em ruínas, abrigado em uma Cidade em ruínas sócio-financeiras. No entanto, para o narrador-cidadão do mundo, ainda era o lugar mais amado (não seria de se admirar o fato de que, no momento, neste ano de 2008, o escritor aqui realçado esteja a escrever um romance chamado Teatro Amazonas). Ao teorizar filosoficamente sobre a “endosmose do devaneio e das lembranças, Bachelard reinterpreta a “casa onírica” de Rilke:

 

Quando o sonho se apodera assim de nós, temos a impressão de habitar uma imagem. Nos Cadernos de Malte Laurids Brigge, Rilke escreve precisamente (trad. fr., p. 230): “Estávamos como numa imagem.” E precisamente o tempo passa de um lado e de outro, deixando imóvel essa ilhota da lembrança: “Tive o sentimento de que o tempo de repente estava fora do quarto.” O onirismo arraigado assim localiza de algum modo o sonhador. Em outra página dos Cadernos, Rilke exprimiu a contaminação do sonho e da lembrança, ele que tantas andanças fez, que conheceu a vida nos quartos anônimos, nos castelos, nas torres, nas isbás, vive agora “em uma imagem”. “Jamais tornei a ver desde então essa estranha morada... Tal como a encontro em minha lembrança com desenrolar infantil, não é uma construção; está completamente incorporada e repartida em mim; aqui um cômodo, ali um outro, e acolá um trecho de corredor que não liga esses dois cômodos, mas está conservado  em mim como um fragmento. É assim que tudo está disperso em mim, os quartos, as escadas que desciam com uma lentidão tão cerimoniosa, outras escadas, vãos estreitos subindo em espiral, em cuja obscuridade avançávamos como o sangue nas veias.” (p. 33)



[i] SAMUEL, Rogel, 2005: 109 - 110.
[ii] Idem: 116.
[iii] Idem: 119.


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