Nestas páginas
iniciais, em diálogo com Gaston Bachelard, o meu objetivo é demonstrar a
possibilidade de se alcançar o cogito(4) da realidade espiritual por
intermédio da Arte Literária, sem que, com isto, o indivíduo (orientado por
exigências do intelecto) se desequilibre no plano das atitudes de vida socialmente
aceitas.
Neste caso
específico, nos capítulos seguintes, estarei a dialetizar e a reinterpretar
algumas narrativas de Guimarães Rosa, seguindo uma provável cronologia,
intencionando provar que o Artista brasileiro, nato do sertão, conseguiu elevar-se
ao referido cogito no plano da Literatura-Arte.
O cogito(4), na filosofia bachelardiana, é um estágio de
pensamento de difícil ascensão, já ligado ao plano do Espírito, o qual
possibilita ao ser humano projetar-se para fora da linha vital. Por este ângulo,
Bachelard admite a possibilidade de vários cogitos superpostos, inclusive a
possibilidade de cogitos desconhecidos acima do cogito(4). Porém,
visando o equilíbrio mental/social do homem, destaca apenas três potências do
pensamento (cogito(1), cogito(2) e cogito(3)),
afirmando que estas forças são as únicas que ainda oferecem uma particular
felicidade ao indivíduo (conhecedor
do cogito(3) do pensamento puro), além de proporcionarem a aceitação
de idéias elevadas por parte dos representantes dos cogitos um e dois.
Por este ponto de vista, aqueles que alcançam o cogito(3)
não se desprendem totalmente dos cogitos um e dois, vivendo numa interação
salutar com os outros membros da sociedade, no plano do cogito ao cubo (plano
vital), e recebendo desses uma respeitosa reverência. Em outras palavras, os
que recebem a marca da individualidade são aceitos como excepcionais, mas não
são considerados totalmente excêntricos pelo grupo social a que pertencem, ao
contrário, suas idéias são bem recebidas e imitadas.
Enquanto os cogitos um e dois são lineares — cogito(1):
primário / cogito(2): transitivo —, o cogito(3) é lacunar, pois é propriedade exclusiva do
indivíduo que pensa além dos pensamentos instituídos. O cogito(3)
seria assim o plano mental do ser humano possuidor da chamada consciência pura (ou consciência singular). A consciência pura seria a
consciência daqueles que não se deixam envolver pelos valores vitais.
A ascensão ao cogito(4) (plano espiritual), segundo Gaston
Bachelard, oferece perigos ao pensador, pois se situa fora das exigências
vitais. Entretanto, poderá ser pressentido por estudiosos capacitados, por
intermédio de insólitos textos ou de estranhos desenhos das chamadas pessoas iluminadas.
No que diz respeito ao reconhecimento do cogito(4) nas
narrativas de Guimarães Rosa, as quais serão aqui realçadas, e certamente nos
capítulos a elas destinados, apresentarei a minha posição de teórico-crítica
exclusivamente ligada à Teoria Literária, uma vez que dialogarei com as teorias
filosóficas de Gaston Bachelard pelo ponto de vista da interdisciplinaridade,
reivindicando, sempre que for necessário, a minha condição dual de analista e
intérprete do texto literário, de acordo com os preceitos da
interdisciplinaridade. Centralizando meus argumentos interpretativos no cogito(4), procurando provar que o
referido cogito pode ser detectado no plano da Literatura-Arte, intenciono
desvincular-me das tradicionais barreiras dos modelos críticos
formalistas/cientificistas, por meio da contribuição de pensamentos oriundos da
filosofia assinalada, admitindo assim novas possibilidades de incursão crítica
no universo literário.
Entretanto, uma importante advertência devo aqui salientar: esta teoria
não é bachelardiana como parece ser. Utilizo-me de alguns pensamentos de
Bachelard, aproprio-me de algumas de suas idéias e estarei aqui em permanente
diálogo com seus textos, mas o argumento que me orienta relaciona-se com a
hermenêutica (a renovada hermenêutica do final do século XX e início do século
XXI), proporcionando-me distinguir no texto alheio o reflexo de meus próprios
conhecimentos. Por tais motivos, hermeneuticamente estarei dialogando com a
filosofia de Bachelard, uma filosofia ligada à razão, à sabedoria, às origens
do pensamento do homem e suas causas posteriores; uma orientação filosófica que
tem por base uma fenomenologia que imerge
na mais profunda raiz do pensamento ocidental. E, de certo modo,
conscientemente poderei dizer que este é o meu Bachelard, isto é, tenho de
Bachelard uma certa leitura e aproximação muito mais literária do que
filosófica.
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