NEUZA MACHADO - ESPLENDOR E DECADÊNCIA DO IMPÉRIO AMAZÔNICO
A Narrativa e os Personagens
No
princípio, o texto imita os autores amazonenses do auge da época da borracha,
que eram imitadores de Euclides da Cunha.[i]
Para
o critério de um resultado considerável de meu pensar reflexivo, sobre o
romance O Amante das Amazonas, de Rogel Samuel, o préstimo da Entrevista
do autor à jornalista Tânia Gabrielli-Pohlmann aparecerá, aqui, como registro
às minhas induções analítico-fenomenológicas sobre sua diferenciada
criatividade ficcional. Por este auxílio do próprio escritor, entendo os
desempenhos dos dois narradores deste relato ficcional, sobre o esplendor e
decadência do Império Amazônico, como autênticas rubricas
pós-modernas/pós-modernistas de Segunda Geração. Verifico, outrossim, por meio
de uma reflexão teórico-crítica abrangente, que o Ribamar-Narrador poderá ser
avaliado como alter ego do escritor comprometido com suas leituras diárias, e,
ao mesmo tempo, propenso a impregnar-se criativamente das mesmas,
transformando-as em fontes de produção literária ficcional.
Diz Rogel que,
no princípio, o seu texto buscou imitar os autores amazonenses do auge da época
da borracha, que eram também imitadores de Euclides da Cunha. O fato é que o
escritor de Os Sertões, aquele que tanto se impressionou com os
problemas do sertanejo, principalmente os habitantes do Alto Sertão (os
realmente “fortes”), em confronto com os “enfraquecidos” sertanejos da caatinga
(os próximos, do “brejo”, onde, à época, desnutridos, a seca os exterminava com
maior facilidade), ao visitar a região amazonense, e ao escrever sobre a mesma,
impressionou-se teluricamente (atentar para a etimologia da palavra),
legando aos historiadores (e apreciadores de impecáveis estilos literários)
sensibilíssimas páginas de puro encantamento, mas não logrou traduzir em palavras
plurissignificativas ─ criativas ─ aquilo que entendo por verdadeira arte
literária (fosse no âmbito da miséria humana, que grassava no Amazonas do
princípio do século XX, ou da beleza estonteante de um lugar reconhecidamente
de pura maravilha e incríveis singularidades). Euclides da Cunha, diferente de
sua atuação como criador ímpar em Os Sertões, em seus textos sobre o
Amazonas, ao ocupar-se das virtudes e/ou os problemas daquela região, não
alcançou (pelo meu ponto de vista), no âmbito da criação literária, suas
peculiaridades riquíssimas, atuando, por outro lado, como repórter
impressionista, a observar tensamente, mas por uma ótica sintagmática, as
inúmeras mazelas que assolavam aquele “paraíso” já maculado por exigências
capitalistas (o que poderia ser um dado singular no espaço da criatividade
paradigmática), excluindo assim a possibilidade de recriar o ambiente da
Floresta artisticamente e de obter o ensejo de transformar aqueles textos
(reconhecidamente de impecáveis qualidades discursivas, no entanto, lineares)
em algo “incômodo” (incomum criação literária) para os leitores de sua época e
para os leitores do futuro.
Euclides da
Cunha colocou o Amazonas à margem da história pois se encontrava
submisso à idéia de que a região estava separada dos ideais políticos do Novo
Mundo Americano, desde a conquista colonial dos espanhóis ao norte da América
do Sul (século XVI) e, posteriormente, século XVII, de 1580 a 1640, quando os
reis espanhóis se apropriaram do trono português e da Colônia do Brasil. A
verdade é que o anterior pensamento euclidiano permaneceu incólume até aos anos
finais do século XX, porque a região amazônica resistiu aos liames da
colonização espanhola nos países fronteiriços, à época colonial, e,
posteriormente, à colonização portuguesa da Terceira Dinastia Orleans e
Bragança, após à regeneração. Até meados do século XIX não se tornaram
notórios, naquelas paragens do Estado do Amazonas e Acre, mais próximas da
fronteira com Peru e Bolívia, os conhecidos, historicamente falando, assentamentos
comerciais dos colonizadores. Esta constatação evidencia a sobredita
“marginalidade” constatada por Euclides da Cunha nos anos iniciais do século
XX. O que Euclides percebeu e comprovou, em seu escrito documental sobre a
região amazônica, próxima às fronteiras de domínio espanhol, é que a
“marginalidade” do território, apesar dos aventureiros que ali se estabeleceram
desde o início da colonização, principalmente os não-portugueses ou
pouquíssimos portugueses, se encontrava politicamente aquém do desenvolvimento
colonial das outras regiões do Brasil.
Por este
ângulo, percebo o Manixi rogeliano, originário do final do século XIX, um
Manixi governado por um ditador sui generis de origem francesa. Enquanto
os espanhóis, primeiramente, e portugueses, posteriormente, colocaram a região
distanciada dos valores aproximados das antigas regras coloniais,
transformando-a numa espécie de local periférico, um lugar desconhecido, onde
poucos aventureiros ousavam explorar, lá pelos idos do século XVIII e início do
XIX, aventureiros de outras nacionalidades por ali aportaram, submetendo alguma
etnias indígenas e os caboclos ao seus domínios. Na verdade, os colonizadores
(espanhóis e portugueses) possuíam extensões de terras brasileiras menos
problemáticas para a colonização e, por isto, não persistiram na busca
exploratória, devido às dificuldades de locomoção, às doenças tropicais, aos
ataques dos indígenas, aos ataques dos animais ferozes da Floresta, e muitos
outros empecilhos. Tais embaraços não perturbavam os aventureiros de outros
reinos europeus, em seus anseios de domínio e enriquecimento de livre comércio.
Sobre esse itinerário dificultoso, o narrador-personagem de Rogel Samuel, o
Ribamar de Sousa, iniciando a sua viagem ficcional em 1897, oferece-me informações
estimáveis:
Porém
embarcado chegaria em Manaus sem tropeços depois de 6 dias de viagem a 8 milhas
por hora. E 2 dias mais tarde passava pela Boca do Purus, 5 dias após entrava
na Foz do Juruá. Não navegávamos dia e noite? Na Foz do Juruá o Rio Solimões
mede 12 km de largura e pássaros de vôo curto (o jacamim, o mutum, o cojubim)
não conseguem atravessar, morrendo cansados afogados no fundo de ondas
pinceladas de amarelo da travessia. Em 8 dias de navegação pelo Juruá
chegávamos no Rio Tarauacá e atracávamos em São Felipe, de 45 casas, vila
bonita, e arrumada. 9 dias depois entrávamos no Rio Jordão, de onde não
prosseguiu o Barão, que não tinha calado, a gente seguindo desse modo de
canoa pelo Igarapé Bom Jardim, subindo pois e encontrando nosso termo e destino,
a ponta do nosso nó, o término, o marco extremo de nós mesmos, o mais longínquo
e interno lugar do orbe terrestre ─ atingíamos finalmente o Igarapé do Inferno,
limite do fim do mundo onde se encontrava, e envolto no peso de sua surpresa e
fama, o lendário, o mítico, o infinito Seringal Manixi ─ 40 dias depois de
minha partida de Belém, 3 meses e 5 dias desde a minha partida de Patos.[ii]
Mas não disse
que vinha à procura de Tio Genaro e meu irmão Antônio, aviados no Manixi. Não.
Pois eles tinham sido trabalhadores seringueiros do Rio Jantiatuba, no Seringal
Pixuna, a 1.270 milhas da cidade de Manaus, onde anos depois naufragaria o
Alfredo. Eles freqüentaram o Rio Eiru, numa volta quase em sacado, e dali
partiram em chata, barco e igarité até ao Rio Gregório, onde trabalharam para
os franceses, e de lá partiram para o Rio Um, para o Paraná da Arrependida,
aviados livres que eram, subindo o Tarauacá até o ponto onde dizem foi morto o
filho de Euclides da Cunha, que delegado era, numa sublevação de seringueiros.
Depois viajaram. E foram para o Riozinho do Leonel, seguiram para o Tejo, pelo
Breu, pelo belo Igarapé Corumbam – o magnífico! –, pelo Hudson, pelo Paraná
Pixuna, o Moa, o Juruá-mirim até o Paraná Ouro Preto onde, pelo Paraná das
Minas entraram pelo Amônea, chegando ao Paraná dos Numas, perto do Paraná São
João e de um furo sem nome que vai dar num lugar desconhecido.[iii]
Os
aventureiros europeus, como os franceses e alemães, à época, por não se acharem
os “donos” da Colônia, penetraram naquele templo de pureza mítica, conhecido
como Floresta Amazônica, com a intenção evidente de apropriação do local. O
fato era que os colonizadores espanhóis e/ou portugueses, cada um em seu tempo
histórico, estavam mais preocupados com a costa brasileira, alvo de vários
ataques de navios piratas (ingleses, holandeses, franceses), do que
propriamente, por motivos óbvios, com a região amazônica da fronteira
latino-americana: julgavam que terras tão inóspitas não iriam merecer a atenção
dos aventureiros de outros reinos de Além-Mar. Por este aspecto, retomando as
minhas inferências sobre o Manixi ficcional rogeliano, a partir do
reconhecimento histórico de uma região sem igual, além de repensar a presença
do personagem francês Pierre Bataillon, como chefe importante da região, medito
sobre a presença missionária dos padres católicos alemães, na figura do
personagem Frei Lothar, objetivando catequizar os indígenas e mestiços, mas
sofrendo os males da expatriação, afundando-se no desmazelo corporal e no vício
da bebida, e, conseqüentemente, na desilusão espiritual.
O valor
histórico dos textos de Euclides é inestimável. Os textos, sobre a realidade
amazonense do início do século XX, são bem elaborados (não há como contestar a
capacidade discursiva do escritor), há ali a marca dos que sabem escrever e
transmitir pensamentos e conhecimentos em forma de narrativa, mas, reafirmo,
não há o “desconforto” verticalizante do texto artístico (a possibilidade de o
leitor interagir com os cogitos superiores do escritor). Por exemplo, a Ilha de
Marapatá, para Euclides, é o “mais original dos lazaretos ─ um lazareto de
almas! Ali, dizem, o recém-vindo deixa a consciência...”[iv].
Esta horizontal informação de Euclides não atinge o cogito reflexivo do leitor,
em outras palavras, não promove a “eternização” literária do lugar, mesmo que
demonstre textualmente que a Ilha de Marapatá é o espaço da angustiante
solidão. No entanto, o Pós-Moderno/Modernista de Primeira Geração Mário de
Andrade recebeu a informação, com certeza por via euclidiana, avaliou-a, e
soube transformá-la em ficção-arte. Com sua capacidade de interagir
criativamente com as palavras, Mário de Andrade obsequiou os leitores de seu
presente histórico (e os do futuro) com uma lendária Ilha de Marapatá, onde seu
personagem Macunaíma havia deixado a consciência ao sair para o espaço
universal.
[iv] CUNHA, Euclides. “Terra sem
História: Amazônia”. À Margem da História. São Paulo: Martin Claret,
2006: 28.
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