Lucilene
Gomes Lima
A ABORDAGEM DO CICLO DA BORRACHA NA
FICÇÃO AMAZONENSE
O
romance Coronel de barranco centra-se
mais na margem e expõe o sistema extrativista da borracha através da personagem
Cipriano, seringalista rude que desconhece as determinações econômicas do ciclo
e ignora os riscos a que está exposto, confiando apenas na exploração da
borracha nativa. Como A selva, o
romance tem o objetivo claro de ensinamento conforme se nota nessa passagem
em que a personagem Matias elucida para
a personagem Cipriano o sistema de funcionamento econômico do ciclo:
- Veja bem,
coronel. Todos os domingos, os seus seringueiros chegam aqui no armazém, para
se aviar, levam tudo que precisam, a comida, a cachaça, o querosene, alguma
ferramenta, remédios, uma peça de roupa...
- Levam tudo
que precisam. Está aqui o besta velho pra dar tudo que eles querem, fiado.
- Exatamente.
Eles não pagam ao senhor, não é verdade? Tudo fiado, não é verdade? A Casa
Flores manda os vapores carregados de aviamentos...
- Manda, não.
Mandava.
- Sempre
mandou, Coronel. Mas, bem. A Casa Flores lhe manda tudo que o senhor pedir e
até o que não pedir. Cobra do senhor à vista? Algum dia marcou data certa para
o senhor pagar?
-
Mas a minha seringa está lá no armazém deles.
-
Perfeitamente. Chegaremos lá. E como a Casa Flores compra essas mercadorias,
todas importadas do [sic] outros Estados ou do estrangeiro? Sobretudo do
estrangeiro. Onde ela vai buscar o
dinheiro, se o dinheiro só pode entrar depois que a seringa for vendida?
- Pra que é que
eles têm a burra cheia de dinheiro?
- Que burra
cheia de dinheiro, Coronel? O dinheiro eles vão sempre buscar nos bancos,
Coronel. E em que bancos? Nos bancos estrangeiros. E como é que se pagam os
bancos, Coronel? Não é como o seu seringueiro para o senhor, quer dizer, quando
puder, quando Deus ajudar.
- Quando paga.
E se o cabra foge? Ou morre? Ou leva o diabo?
- Também não é
assim que o senhor paga a Casa Flores?
- Nunca deixei
de pagar.
- Claro. Mas
paga quando chega a Manaus. Quando a borracha já foi vendida. Quando o senhor
chega lá para acertar as contas, sem data certa, porque o senhor tem crédito.
- Tenho porque
mereço.
- E como é que
a Casa Flores paga o banco?
- Quando
quiser? Só quando puder? Não senhor, Coronel. Numa data certa, num prazo fixo.
E quando chega o fim desse prazo, se não tiver dinheiro, a Casa Flores tem de
reformar a dívida, dar um tanto por conta, para os juros, para esperar vender a
borracha que o senhor mandou e ver entrar o dinheiro. Quer dizer, no fim da
safra.
- Então? Que
novidade, seu Albuquerque.
- Pois bem.
Agora, Coronel, neste ano fatídico de 1914, nesta hora em que se está esperando
uma guerra na Europa, uma guerra em que a Inglaterra terá também de entrar...
- Entrar pra
quê? Besteira de guerra.
- Nesta hora
difícil, Coronel, as matrizes dos bancos de lá mandam ordens às suas filiais de
Manaus para não reformarem os títulos; querem o dinheiro na data marcada, no
prazo fixado. Compreendeu agora, Coronel? Se a Casa Flores não paga, o banco
pede a falência da Casa Flores.
- E por que o
filho do Comendador, homem moço, não vai lá no banco dos bifes e quebra o
focinho do gerente? Se fosse comigo, era assim. Ou um tiro nas ventas.
- Para não
falir, a Casa Flores consegue a muito custo um último prazo, e pede ao senhor
que pague a ela as mercadorias que lhe mandou a crédito durante o ano inteiro.
Pergunto agora, o senhor pode obrigar o seu seringueiro a lhe pagar o que o
senhor vendeu a ele fiado? O resto o senhor já sabe. E não se esqueça que citei
a Casa Flores só para dar um exemplo. Todas as casas aviadoras estão vivendo a
mesma situação, igualzinha, ou até pior. Compreendeu agora o funcionamento da
máquina, Coronel? Compreendeu a situação?[1]
A
presença constante do tema do “ciclo da borracha” na ficção amazonense levou
Mário Ypiranga Monteiro, em Fatos da
literatura amazonense, a criticar o filão em torno desse tema, observando:
“[...] lamentavelmente todo contista que se inicia ou mesmo romancista já
experimentado se deixa seduzir pelo denominador comum da economia da borracha
[...].[2]
Para o autor, o tema do ciclo é o principal motivo do infernismo literário, o
qual consiste em escandalizar a paisagem e explorar a tragédia em torno da
figura opressora do coronel da borracha e da conseqüente submissão do
seringueiro. A ficção da borracha padeceria, segundo sua avaliação, de um
tautologismo ao repetir desgastadamente sempre os mesmos aspectos.
Opondo
o infernismo do “ciclo da borracha” ao edenismo do ciclo do cacau, Monteiro
demonstra as diferenças fundamentais entre esses ciclos. Observa que o ciclo do
cacau promoveu a fixação à terra, criou condições para que se estabelecesse uma
cultura expressiva do sedentarismo burguês. A própria estrutura arquitetônica
da casa-grande do ciclo econômico do cacau ostentava permanência, comodidade,
com sua variedade de janelas, seus quartos amplos, suas salas de jantar e de
estar, seus móveis em estilo clássico e as redes armadas nas salas de jantar ou
à sombra dos cacauais. Já o “ciclo da borracha” apresentou um panorama social
bastante diverso. Sendo economia de transplantação, suas características eram
as relações de desconfiança entre patrão e freguês, suas moradias ostentavam o
aspecto da improvisação dos que não tomavam assento definitivo à terra. Nas
palavras de Monteiro, a sociedade econômica do ciclo
[...] conduz os
trabalhadores da ‘margem’ para o ‘centro’, da liberdade para a reclusão,
isola-os, explora-os, escravíza-os ao regime da conta sem-fim, animalíza-os,
brutalíza-os, inutilíza-os até para a satisfação sexual, instaurando um quadro
de renúncia forçada aos acenos ambiciosos da vida, um estatuto de anacoretismo
em que parece mais evidente o contexto da sabedoria popular: mente desocupada é
oficina de satanás. A ausência da fêmea, nutrindo a preocupação dos machos
famintos de associação e presença, é suprida pela imaginação sofredora e
urgentiza a paródia, a busca de soluções desesperadas. Daí para os conflitos
sangrentos é um passo.
Nasce o
infernismo literário, produto da economia predatória e da paixão solitária.[3]
[1] Cláudio
de Araújo LIMA, Coronel de barranco,
p. 311-315.
[2] Mário
Ypiranga MONTEIRO, Fatos da literatura
amazonense, p. 297.
[3] Mário
Ypiranga MONTEIRO, Fatos da literatura
amazonense, p. 41.
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