sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

NEUZA MACHADO - ESPLENDOR E DECADÊNCIA DO IMPÉRIO AMAZÔNICO

Cada capítulo de O Amante das Amazonas é um close que aumenta e ilumina o espaço narrado, um close dilatado pelo olhar ficcional poetizado de um escritor-narrador repleto de matéria lírica. Nas páginas rogelianas, o chamado “simulacro pós-moderno” se agiganta, transformando o Palácio Manixi em um local digno de grandiosas filmagens cinematográficas. Não importa que a história se localize no passado histórico em confronto com um verossímil presente ficcional, o que vale é a representação da mesma no presente cronológico, para que seja reavaliada no futuro, quando a Floresta e seus míticos personagens não mais existirem. Os leitores do futuro se sentirão vazios com a perda, como hoje nos sentimos despejados de um passado de glórias, ao lermos as grandes obras literárias que nos foram legadas. Satisfazemo-nos (os leitores-eleitos reflexivos) com os preenchimentos prazerosos ou mentalizados desse vazio, com nossas incomodações culturais, com nossa ânsia de crescimento intelectual.
Mesmo que o autor afirme, em suas Entrevistas, que, desde as primeiras páginas, imitou os autores amazonenses da época do auge da borracha, os quais também foram imitadores de Euclides da Cunha, mesmo que diga que a sua obra, como um patchwork quilt (só para expressar-me como os autênticos críticos brasileiros pós-modernos, os quais preferem reverenciar as expressões estrangeiras, em detrimento de suas falas tupiniquins), explicita as suas dilatadas leituras teórico-filosóficas, posso afirmar que o todo de sua narrativa se vale da intencionalidade ficcional. A intencionalidade ficcional vai segurar e assegurar o diferente fio narrativo, transformando em novidade, em criação, o já instituído. A visão distendida de Rogel Samuel sobre o seu espaço romanesco é maior do que as informações que ele colheu nos livros (em suas leituras filosóficas ou ficcionais). É uma visão transcendental, particularíssima, que ele procura desmistificar, como se ele não tivesse o direito de reivindicar a autoria plena de seu texto ficcional. Ele “finge” saber menos do que os seus personagens (“o poeta é um fingidor”, já disse Fernando Pessoa), por isto a criação de dois narradores visíveis, fora os invisíveis que muito contribuíram. Por meio dessa aparente simulação, ele refez/refaz os aspectos e atitudes dos personagens perante a vida na Floresta, evitou/evita os juízos pré-concebidos dos leitores desatentos, mas o propósito de criação ficcional permaneceu/permanece direcionando o fio narrativo. Seus narradores expuseram/expõem (e vão continuar a expor) seus pontos de vista sobre a realidade da Grande Floresta, sobre aquele lendário universo que eles desejaram/desejam perpetuar, para apresentá-lo aos leitores do futuro. A criação ficcional é alguma coisa que independe de preço, porque a história do conflito entre as duas realidades – a social e a mítica – poderá ser reavaliada futuramente, quando os “verdadeiros” leitores de Rogel Samuel, desconhecedores dessas passadas durações grandiosas, começarem a interagir com as camadas ocultas de seu romance pós-moderno/pós-modernista. Enquanto não aparecem esses futuros leitores, naturalmente os leitores privilegiados, aproprio-me de minhas reflexões e passo a afirmar que, se há mais de um narrador atuando, isto prova a intencionalidade ficcional. E se suas faces são incomuns, reduplicadas, estas são próprias das autênticas narrativas ficcionais da pós-modernidade.
Enquanto o(s) narrador(es) rogeliano(s) refletem os atuais problemas insolúveis da Grande Floresta e, por acréscimo, os problemas da cidade de Manaus (e o personagem pós-moderno/pós-modernista de Segunda Geração desta diferente narrativa ficcional é a Floresta Amazonense), a autêntica criatividade ficcional de Rogel Samuel vai-se materializando ante o entendimento catártico do leitor do presente (e assim será com o leitor do futuro). Tal intencionalidade do(s) narrador(es) de Rogel Samuel, resguardada evidentemente por uma linguagem especialíssima, vai permitindo que os movimentos e percepções dos personagens, restritos ao interior da Grande Floresta, se presentifiquem, revelando aos leitores uma específica realidade, saída do particular conhecimento do criador ficcional, conhecedor, por sua vez, dos diversos graus da chamada “linguagem figurada”.
E, graças a esse conhecimento anti-convencional, o(s) narrador(es) desta ficção rogeliana, em particular, vão interagindo com a intertextualidade, aquela intertextualidade que já foi considerada a marca de nascença das narrativas do final do século XX. Os estudos literários, as análises e interpretações, as sistematizações de textos-base (e foram muitos os textos-base sistematizados, segundo o próprio escritor) possibilitaram a transformação da Grande Floresta em ocorrência maravilhosa (atentar para a etimologia desta palavra). A Grande Floresta como espetáculo, dinâmico, interativo, e que, a qualquer momento, atingirá também outras mentes, aquelas que ainda não tiveram o privilégio de dialogar com este instigante texto ficcional.
Se há intertextualidade, esta se liga aos assuntos míticos da Floresta, às questões políticas do Amazonas, às reflexões particulares do autor. Essas controvérsias, diversas e desencontradas (ou se quiserem ajustadas), colocam em destaque, apenas, um personagem principal. E este personagem principal é a própria Floresta, com seus segredos e alucinações, uma Floresta estranha e diferente, terrivelmente insólita, Floresta que nenhum outro escritor amazonense da atualidade conseguiu resgatar, criativamente falando, em forma de ficção (apenas o escritor Rogel Samuel, nobilitado no terceiro cogito da consciência singular).
A visão do(s) narrador(es) rogeliano(s), em um primeiro momento, poderia ser considerada como uma “visão de fora”, ou seja, uma visão de narradores de narrativas pós-modernas/pós-modernistas projetando a objetividade da câmara (como querem os estudiosos da ficção da pós-modernidade), mas, a valorização da Floresta Amazônica, subentendida, é maior do que a objetividade alienante. Mas é também esta aparente “visão de fora” que impede a análise psicológica, tão do gosto dos anteriores pós-modernos-modernistas. Ela se calca nas invenções do século XX, como o cinema e a televisão. De certa forma, relaciona-se com o novo (já antigo) romance francês da década de quarenta, mas não se prende totalmente a essa forma narrativa, também conhecida como a “escola do olhar” (de Robbe-Grillet, Claude Ollier, Jean Ricardou; ou mesmo, dos escritores portugueses do pós-sessenta ao final dos anos oitenta: Augusto Abelaira, Almeida Faria e outros), ao contrário, nesta fase atual, dos anos noventa até ao momento, o imaginário-em-aberto do escritor pós-modernista de Segunda Geração se dilatou. Os dois narradores desta narrativa de Rogel Samuel se apresentam em pessoas diferentes: o Ribamar de Sousa em primeira pessoa e um segundo narrador em terceira pessoa. São os alternados egos do próprio escritor amazonense se confundindo com os inúmeros personagens, todos importantes, todos eles fases-faces do próprio criador. Além disso, há muito mais: esses narradores são porta-vozes de quem escreve, porque, ao longo da narrativa, percebe-se que, independentes das assumidas colagens (colchas-de-retalho ou patchwork quilt), aqueles que enunciam (anunciam) têm poder, possuem o poder dos que se colocam como testemunhas importantes, de momentos incrivelmente importantes, momentos do próprio autor, nato de um lugar que se localiza para além da imaginação comum, resguardados pelos mistérios ocultos, mistérios diferenciados subjacentes na Imensurável Floresta Amazonense.

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